sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018


16 DE FEVEREIRO DE 2018
DAVID COIMBRA

Eles preferiam morrer a comer porco


A carne de porco, essa injustiçada. Ninguém, nem Temer, desperta mais rejeição do que um dia despertou a carne de porco. Sobre ela pesa severo interdito de duas das grandes religiões monoteístas: judeus e muçulmanos a consideram uma das chamadas "carnes imundas".

"Não comereis o porco, porque ele tem a unha fendida, mas não rumina", ordena a Bíblia.

Agora me diga: se ruminasse, o porco poderia ser comido? E essa história da unha fendida: é coisa boa ou ruim? Isso as sagradas escrituras não explicam. Mas sei qual é o problema dos antigos legisladores com a carne suína. É que, naquela época, os homens davam restos de comida e até excrementos para alimentar os porcos. Donde, "porcaria" tornar-se sinônimo de sujeira. Afinal, a carne do porco tão mal criado passava terríveis verminoses a quem a consumia e, não raro, matava.

Os porcos, portanto, tinham péssima fama. E, de certa forma, a mereciam.

Jesus, inclusive, ao praticar um exorcismo, perguntou a identidade do demônio que habitava o infeliz possuído. A resposta foi assustadora:

- Legião, porque somos muitos.

Jesus mandou que Legião deixasse o homem em paz e os diabos pediram para não serem expulsos daquela região. O que muito me intriga. O que lá havia que tanto agradava aos demônios? Clima bom? Vista para o mar? Seja. O fato é que eles perguntaram se podiam entrar em uma vara de porcos que por ali passava. Jesus permitiu, e os demônios possuíram os porcos, 2 mil ao todo, que se atiraram de um despenhadeiro, caíram em um lago e se afogaram.

Dois mil porcos, e ninguém se incomodou porque eles praticaram suicídio coletivo.

A carne de porco tinha tão pouco prestígio, que alguns daqueles hebreus antigos preferiam morrer a comê-la. Um rei que conquistou a Judeia, o sírio Antíoco, quis obrigar o velho Eleazar a provar carne de porco. Mandou que seus soldados abrissem a boca do homem, que já tinha 90 anos de idade, e lhe empurrassem lombinho goela abaixo. Ele cuspiu tudo e disse que ser executado era melhor do que aquele almoço.

Foi executado.

Depois disso, Antíoco prendeu uma viúva e seus sete filhos e avisou que, se eles não comessem porco, seriam torturados e mortos um a um. Eles disseram que não iam comer. Antíoco cumpriu a ameaça. Os suplícios foram horríveis: pés, mãos e língua cortados, esfolamentos, cozimento em água fervente... se os descrevesse em pormenores, você ficaria mareado. Não o farei, portanto. Apenas conto que eles teimaram e não comeram porco. Morriam com dores atrozes, mas não descumpriam a lei.

Aí cheguei onde queria: a lei.

Essas histórias da Bíblia, evidentemente, não aconteceram exatamente como relata o livro. Os autores guardavam segundas intenções, ao contá-las. Neste caso, pretendiam ressaltar como era importante a observância da lei. E foi só isso, a lei, que impediu que o povo judeu fosse dissolvido e incorporado a outros durante todos os séculos em que nem país eles tiveram para chamar de seu. Foi um fenômeno: sem terra, sem bandeira, sem nem uma língua em comum, os judeus mantiveram sua unidade. Porque se guiavam pela lei. Pelo livro.

Os brasileiros têm um vasto espaço territorial consolidado, têm tradições, têm uma população homogênea, mas o país está se esfacelando na violência. Não há respeito por autoridade alguma, ninguém está a salvo, tudo pode acontecer. Porque o brasileiro despreza a lei. Até os legisladores, ou principalmente eles, desafiam a lei. Terrível. Porque mesmo uma lei obsoleta, mesmo uma lei ultrapassada, até mesmo uma lei injusta é melhor, para uma nação, do que a indiferença à lei.

DAVID COIMBRA

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