quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018


28 DE FEVEREIRO DE 2018
PEDRO GONZAGA

ALÉM DA IMAGINAÇÃO



Conheça o sr. Henrique Bemis, um pedaço do passado ainda incrustado no presente, um pequeno e cordial funcionário público com seus imensos garrafais, um leitor inveterado, veja como ele nos saúda, insciente de que está prestes a encontrar seu destino no início da tarde mormacenta em Porto Alegre, num lugar Além da Imaginação.

Tragado pelo vaivém da Rua da Praia, onde mergulha todos os dias no horário do intervalo, o sr. Bemis chega à banca na qual há anos se abastece de jornais e revistas, pois, anacrônico como um monóculo, precisa do negror sólido das letras e do contato dos dedos no papel para sentir que lê. Acessório adir que nosso herói não tem celular e que mantém uma relação litigiosa com computadores e assemelhados. Entre os colegas, é o único leitor orgânico. Mais preciso seria dizer que é o único leitor, mas isso talvez soasse ofensivo ao resto da equipe de empréstimos e crediários.

Logo o dono da banca o saúda, como está, Ó Henrique, que vamos querer para hoje?

Nosso bom homem ajeita os óculos e percorre lentamente com os dedos as tantas ofertas. A ele não agradam as capas muito coloridas. Em sonhos, vê as publicações monocráticas, como na juventude. Gosta de notícias tradicionais: economia, política, a seção internacional, e de alguns articulistas mais sérios. De uns anos para cá, sente que ninguém mais nas redações pensa em gente como ele. 

De um lado, uma revista anuncia o declínio dos canudinhos de plástico; de outro, um tabloide celebra uma atriz por perder 10 quilos; ao centro, 15 manchetes iguais sobre a lesão de um certo craque, mais uma receita fantástica de bolo sem glúten, a maldade das grandes potências, outro dia de perda nas bolsas, a convenção da ONU a garantir apenas a existência de mais uma convenção da ONU.

Um fulminante cansaço faz o sr. Bemis buscar uma réstia de sombra onde fecha os olhos e respira. Ele só queria um jornal como aquele que lia para a mãe quando criança.

De súbito, volta a abrir os olhos e abismado topa com uma publicação desconhecida, com os tipos borrados de antigamente. Apanha o achado com alegria, força um pouco a vista e lê a manchete:

Última edição impressa

O corpo do texto diz: Morreu nesta tarde em Porto Alegre o sr. Henrique Bemis, abatido no coração por aquilo que mais temia. E Bemis não volta para o expediente.

PEDRO GONZAGA

28 DE FEVEREIRO DE 2018
GESTÃO

Em discurso para empresários, Marchezan defende fim de estatais


PREFEITO FEZ PALESTRA ontem em primeira reunião-almoço do ano da Associação Comercial de Porto Alegre
Com discurso focado na crise financeira da Capital, temperado com brincadeiras e até um "autobullying" sobre os problemas de capina, o prefeito Nelson Marchezan apresentou ontem a empresários suas propostas para retomar o desenvolvimento. Falou em extinção de estatais e, após um ano de atritos com municipários, em arrependimento pelo corte de assessores com cargos em comissão (CC).

Diante de cerca de 230 pessoas na primeira reunião-almoço do ano da Associação Comercial de Porto Alegre, Marchezan destacou que passa pela Câmara Municipal a maior parte das propostas para equilibrar receitas e despesas e realizar as Parcerias Públicos-Privadas apresentadas como solução para a falta de recursos.

- O nosso maior empecilho é conseguir maioria para aprovar os projetos. Esse é o foco e o grande entrave hoje - disse, sem pontuar mudanças na abordagem a vereadores para aprovar as pautas rejeitadas na Câmara em 2017.

Depois da reprovação no Legislativo, Marchezan pretende enviar à Câmara um projeto atualizado de revisão da planta do IPTU - ele voltou a destacar que "Porto Alegre tem o IPTU mais injusto socialmente do Brasil" -, além de apresentar projetos tidos como de baixo e médio impactos, com resultados imediatos, como o que se refere ao cadastro de devedores de Porto Alegre.

A uma plateia amistosa, o prefeito fez declarações incisivas sobre reduzir a estrutura pública. Disse ser necessário extinguir a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), tirando a assistência social "das mãos de uma estrutura partidarizada". E voltou a ressaltar os problemas da Carris, afirmando que a empresa dá prejuízo de R$ 60 milhões ao ano:

- Tem de extinguir a Carris, tem. Alguém aqui quer comprar? Alguém aqui conhece algum comprador?

DEFESA DE CARGOS EM COMISSÃO

Marchezan voltou a exibir gráficos que mostram o aumento do déficit das contas públicas nos últimos anos, comentando sobre o cenário delicado com a perda do aval do Ministério da Fazenda para financiamentos internacionais. Ele destacou também as medidas tomadas no seu primeiro ano de gestão para reduzir despesas. Ao citar o corte de assessores com cargos em comissão (CC) realizado no ano passado, provocou:

- Estou até arrependido. Porque quando tem greve, quem segura é o CC. Quem vai cozinhar na Bom Jesus, nos abrigos, é a diretoria CC.

Alegando que "a gestão tem limites", Marchezan comentou assuntos pelos quais foi criticado nas últimas semanas, como os buracos no asfalto e problemas com capina - o município ficou entre setembro e janeiro sem o serviço. Arrancou risos quando perguntou quem queria reclamar da grama alta, e mais ainda ao dispensar que o público levantasse a mão, porque taparia a vista do palestrante. Na sequência, levantou a questão:

- Para tapar buraco, precisa de dinheiro para comprar o asfalto. Escolho pagar a merenda da creche ou o asfalto e a capina?

O prefeito citou ainda a retomada das obras da Copa, prevista para as próximas semanas em razão de um financiamento no Banrisul.

Presidente da Associação Comercial de Porto Alegre, Paulo Afonso Pereira destacou que a entidade está apoiando a prefeitura em busca do equilíbrio de despesas e receitas, executando um "movimento de aproximação com o Legislativo" - já realizaram reuniões com o prefeito e com vereadores no Palácio do Comércio.

- Queremos ajudar que essa realidade seja percebida, para que haja uma ação conjunta - comentou.

Integrante do sindicato hoteleiro, o empresário Ricardo Ritter disse ter havido evolução em relação às propostas apresentadas por Marchezan no ano anterior.

- Ano passado, foi mais o quadro negativo. Agora, já há propostas - disse.

jessica.weber@zerohora.com.br - JÉSSICA REBECA WEBER

28 DE FEVEREIRO DE 2018
OPINIÃO DA RBS

OS ENTRAVES DA BR-116


Obras vitais para o Estado, como as de duplicação da BR-116, que já patinam com a falta de recursos, não podem ser desaceleradas durante tanto tempo devido a questões burocráticas

É inconcebível que, além de não contar com os recursos no montante necessário para imprimir mais ritmo às obras, a duplicação da BR-116 até Pelotas continue às voltas com outros tipos de entraves, que na prática tendem a provocar mais atrasos ainda nos trabalhos. A dificuldade mais recente envolve uma discussão com o Tribunal de Contas da União (TCU) a respeito de um acordo que permita a retomada dos trabalhos de pavimentação, suspensos em consequência da nova política de preços da Petrobras. Questões como essa acabam provocando ainda mais atraso nas obras, além de elevar seu custo final. Enquanto os trabalhos se arrastam, a rodovia segue provocando vítimas fatais, além de prejuízos irreparáveis à economia.

O impasse atual surgiu pelo fato de as remarcações no preço do asfalto terem passado a ocorrer com mais frequência, enquanto os reajustes para os responsáveis pela execução dos serviços são anuais. A repactuação dos contratos, vista como alternativa para resolver o problema, é o tipo de discussão que tende a se prolongar, por envolver aspectos burocráticos.

Por isso mesmo, é preciso criar as condições para que esse obstáculo possa ser removido no menor prazo de tempo possível. Obras vitais para o Estado, como as de duplicação da BR-116, que já patinam com a falta de recursos, não podem ser desaceleradas durante tanto tempo devido a questões burocráticas.

Já chega a falta de dinheiro, que tem sido uma constante. Para este ano, por exemplo, há apenas R$ 99,5 milhões disponíveis, valor menor do que o previsto inicialmente. A diminuição se deve ao fato de o Congresso ter reduzido a parcela proveniente de emendas impositivas, com o objetivo de bancar parte do fundo público de financiamento de campanha eleitoral. O resultado é que as verbas servem apenas para evitar a paralisação das obras, mas não asseguram a tão esperada liberação de trechos. A BR-116 já consumiu recursos demais - nada menos de R$ 760 milhões - para que os trabalhos de duplicação sejam descontinuados com tanta frequência.

Por isso, pressões como a liderada pela frente parlamentar em defesa da duplicação precisam continuar, de forma permanente. Sem a manifestação de um interesse claro por parte das comunidades e de seus representantes políticos, dificilmente a duplicação estará concluída sequer em 2020, como prevê o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit). O Estado não tem como esperar mais tempo.

28 DE FEVEREIRO DE 2018
+ ECONOMIA

NA OUTRA MÃO DA 101


Rede gaúcha que vende de lingerie a geladeira, a Lebes vai testar novo modelo focado em moda. A Lebes Modas estreia em 22 de março, em Triunfo e Camaquã. A nova aposta, conforme Otelmo Drebes, presidente da empresa, é "mais uma possibilidade de expansão". Além de vestuário feminino, masculino e calçados, esses pontos de venda terão ilhas de celulares, mais um posto de Lebes Digital, que oferecerá o catálogo das lojas para venda online. 

De olho nessa convergência, a Lebes implanta em junho sua diretoria de inovação, que funcionará em Miami, comandada por Priscila Drebes, filha do empresário. A fórmula "tudo em um" da Lebes é quase idêntica à da catarinense Havan, que acaba de confirmar a entrada no Rio Grande do Sul, por Passo Fundo e Caxias do Sul. Sobre a concorrência, Drebes afirma que "há oportunidade para todos", e que o varejo gaúcho se destaca exatamente pela diversidade, pela quantidade de redes e pela qualidade do atendimento.

Coincidentemente, a Lebes, que só tinha uma unidade fora do Estado, vai reforçar as baterias do lado de lá da divisa. Abre ainda neste ano lojas em Sombrio, Araranguá e Tubarão. Em 2017, a Lebes teve aumento de 10% em vendas físicas de 10%, de 20% em lucro e 10% no quadro de funcionários, com a contratação de 300 pessoas. 

A loja da Restinga, que a coluna antecipou em agosto passado, vai abrir até outubro, informa Drebes. Terá 1,2 mil metros quadrados, vai contratar ao menos 20 funcionários no bairro da zona sul de Porto Alegre. Embora as admissões só comecem entre junho e julho, a empresa já recebe currículos no site.

marta.sfredo@zerohora.com.br - MARTA SFREDO

28 DE FEVEREIRO DE 2018
NÍLSON SOUZA

Vidas secas


Este céu azul lindo que encobre Porto Alegre, e que Mario Quintana pensou em levar para o céu dos poetas, é um sinal de desgraça para Hulha Negra, Bagé e demais municípios afetados pela estiagem naqueles rincões do Estado. As chuvas de janeiro foram escassas na região e fevereiro já está terminando sem que as orações dos agricultores comovam São Pedro, padroeiro do Rio Grande e, segundo a crença religiosa, responsável divino por chuvas e trovoadas:

- O que ligares na Terra será ligado nos céus - teria dito Jesus a ele.

Porém, nem São Pedro nem o Cléo Kuhn devem ser responsabilizados pela tragédia que arrasa lavouras, mata animais, fragiliza a economia e reduz a qualidade de vida de populações inteiras. Também é muito fácil atribuir culpa unicamente ao fenômeno La Niña (resfriamento das águas do Oceano Pacífico), que aumenta as precipitações no Sudeste e as reduz por aqui.

Antes deles, estão autoridades negligentes e cidadãos desavisados, que não investem em alternativas para a irrigação das plantações, não preveem recursos para emergências e não constroem açudes e reservatórios para os cíclicos períodos de escassez. Isso sem falar na degradação do meio ambiente, que invariavelmente tem as impressões digitais do bicho-homem.

Mas a situação é tão grave, que parece perda de tempo e energia ficar procurando culpados. Pelas notícias que nos chegam das áreas afetadas pela seca, já há pessoas passando sede e bebendo água contaminada. Portanto, não há mais tempo a perder com burocracias e disputas políticas.

Sem desconsiderar a oração, é hora de ação.

Cada vez que o governo cria um ministério novo, como está fazendo agora com o Ministério Extraordinário da Segurança Pública, me lembro do país fictício e totalitário imaginado pelo escritor britânico George Orwell, no seu célebre romance 1984.

A Oceânia (assim era chamado o país continental) tinha quatro ministérios emblemáticos: o Ministério da Verdade, que falsificava a história, censurava manifestações culturais e destruía documentos para que a versão oficial prevalecesse; o Ministério da Paz, que só existia para organizar a estratégia da guerra; o Ministério da Fartura, que passava o tempo todo mascarando a escassez e a fome; e o Ministério do Amor, que oprimia, torturava e sedava os cidadãos para manter a nação em ordem.

Por aqui, já tivemos no passado um Ministério da Desburocratização, que até patrocinou alguns avanços (entre os quais a criação dos antigos Juizados de Pequenas Causas), mas acabou gerando mais cargos públicos e teve muitas de suas ações revogadas depois de sua extinção. Mais recentemente, uma ministra dos Direitos Humanos se disse vítima de trabalho escravo por não poder acumular dois vencimentos superiores a R$ 30 mil.

Nesse contexto, sabe-se lá o que virá desse tal Ministério da Segurança.

nilsonlsouza31@gmail.com - NÍLSON SOUZA

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018


27 DE FEVEREIRO DE 2018
CAPA

Celebração à vida e à música


PHIL COLLINS, um dos gigantes da música pop, está de volta aos palcos e faz hoje seu primeiro show solo na Capital

Da sofisticação do rock progressivo a melodias singelas, da produção musical à composição de trilhas sonoras para a Disney. A carreira de Phil Collins, que já supera quatro décadas, parece ter de tudo. E suas aventuras renderam incontáveis prêmios (incluindo oito Grammys e um Oscar) e mais de 200 milhões de discos vendidos. Apesar da saúde fragilizada, Collins emocionou 122 mil fãs nos três shows já realizados no Brasil seus primeiros como artista solo no país. Hoje à noite, será a vez de Porto Alegre assistir a esse gigante da música pop mais de 40 anos após dois shows históricos do Genesis no Gigantinho, em 1977.

No Rio de Janeiro e em São Paulo, Collins apareceu no palco munido de uma bengala e permaneceu sentado durante o show. Suas apresentações têm sido assim devido a problemas na coluna, entre outras limitações, como a perda de sensibilidade nos dedos, que o impedem de ficar muito tempo em pé e também de tocar bateria. Em entrevista a ZH, Collins confirmou que não espera retomar o instrumento com o qual começou a carreira, no Genesis:

- Não consigo. Minha mão esquerda não responde bem, meu pé direito também. Se eu não sou capaz de tocar tão bem como no passado, prefiro não tocar nem um pouco.

Mas Collins garante que os problemas não impactam o show. E as críticas das apresentações no Brasil (leia mais na página 3) indicam que a força de seus hits e a potência da voz têm compensado a falta de mobilidade. Além disso, o músico de 67 anos se apresenta na companhia de uma banda numerosa: dois guitarristas, baixista, tecladista, percussionista, quatro vocais de apoio e naipe de sopros. Seu filho Nic Collins, de 16 anos, é o baterista.

O show, com cerca de 1h40min de duração, traz uma sequência de hits, abrindo com Against All Odds (Take a Look at me Now) e Another Day in Paradise. O Genesis é lembrado com Throwing It All Away, Follow You Follow me e Invisible Touch. Outro momento esperado pelos fãs vem com In the Air Tonight, sucesso que fez a carreira solo de Collins decolar, com o disco Face Value, em 1981.

CANTOR DIZ QUE SENTIA FALTA DOS APLAUSOS


A turnê leva o mesmo título da autobiografia de Phil Collins, que acaba de chegar às livrarias brasileiras: Not Dead Yet ("ainda não morri", traduzida como Ainda Estou Vivo). As duas iniciativas foram lançadas em 2016, quando Collins retomou a carreira interrompida com sua aposentadoria, anunciada em 2011, período em que lutou contra o alcoolismo. O músico conta na autobiografia que, ao longo dos anos 1980, jamais se viciou em drogas ou tocou embriagado. Fazia sucesso tanto com o Genesis quanto como artista solo. O vício era no trabalho, e isso lhe custou três casamentos e o convívio com os filhos - mas aposentar-se fez mais mal do que bem.

- Quando me aposentei e não tinha coisas para fazer todos os dias da forma como tinha antes foi aí que o problema começou. Especialmente quando eu e a minha família nos separamos. Isso lhe dá muito tempo e não muito o que fazer. Hoje em dia posso tomar um drinque ou dois.

Uma das pessoas a trazê-lo de volta aos holofotes foi Adele, que o convocou para compor músicas ao seu lado para o álbum 25, e o seu próprio filho, Nic, que o impressionou como baterista. O garoto é até mesmo cotado para participar de uma reunião do Genesis.

- É engraçado porque Tony (Banks, tecladista do Genesis) veio nos ver tocar no Albert Hall, em Londres, e Mike (Rutherford, baixista e guitarrista do Genesis) também. E ambos amaram o jeito de Nicholas tocar. Eu lembro de dizer a eles que, se o Nic pudesse tocar bateria conosco, talvez pudéssemos fazer algo juntos. Não sei. Mas tudo é possível.

Essa sensação de possibilidade contagia Collins, que admite ter sentido "falta dos aplausos":

- Não estou morto ainda, vêm mais coisas por aí, e vamos ver o que é isso - completa, referindo-se ao título da turnê e do livro.

luiza.piffero@zerohora.com.br - LUIZA PIFFERO


27 DE FEVEREIRO DE 2018
AEROPORTO

Empresas querem aumentar cota de gastos em free shops

As empresas administradoras de aeroportos querem aumentar dos atuais US$ 500 para US$ 900 a cota que passageiros de voos internacionais podem gastar nas lojas francas, sem pagar impostos. A proposta foi apresentada na quarta-feira passada ao ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, que ficou de analisar e dar uma resposta ao grupo.

- São 26 anos sem ajuste - justificou o presidente da Associação Nacional das Empresas Administradoras de Aeroportos (Aneaa), Jorge de Moraes Jardim Filho. - O que estamos pedindo é simplesmente a correção pela inflação dos Estados Unidos.

Outro argumento é de que a queda no poder de compra da cota tem levado ao empobrecimento da oferta. Produtos como carrinhos de bebê e aparelhos de áudio, vídeo e celular, por exemplo, deixaram de ser vendidos porque seu preço ultrapassou o valor máximo para compras sem impostos.

Nos últimos 10 anos, afirmam as empresas, a participação das lojas francas nos gastos dos brasileiros no Exterior caiu de 3,4% para 1,8%. Em nota, dizem que, com isso, houve "perda dos benefícios gerados para o país em termos de retenção de divisas, geração de emprego e arrecadação de impostos e contribuições". Segundo Jardim, a elevação da cota poderia gerar cerca de 3 mil novos empregos. 

As administradoras argumentam, ainda, que as vendas em lojas duty free são a principal fonte de geração de receitas comerciais não só para as concessionárias, mas também para a Infraero. Em outras ocasiões, a Receita Federal já negou a alteração.

27 DE FEVEREIRO DE 2018
CAPA

Marfa, um oásis no deserto


A melhor palavra que tenho para descrever Marfa é peculiar. Em pleno deserto de Chihuahua, em uma região árida cheia de caubóis, na intersecção das rodovias US 90 e 67, a cidade de apenas 2 mil habitantes é um destino dominado por arte contemporânea, cultura, estrelas e muita mística, no caminho ao Big Bend National Park.

Os prédios baixinhos, que parecem caixotes, estão aqui e ali, meio solitários nas grandes quadras cortadas por largas avenidas. Em toda Marfa, há somente um semáforo - com só quatro quilômetros quadrados de área, ela realmente não precisa mais do que isso.

Mas é a noite que começou a colocar esse lugar no mapa turístico. Desde o final do século 19, avistam-se as misteriosas "luzes de Marfa", descritas no site de turismo dos EUA como "uma iluminação estranha, aparentemente sem origem" que "dança pelo horizonte, resultando em um fenômeno inexplicável". Cogitou-se que elas fossem resultado de luzes automotivas e da iluminação elétrica, mas povos nativos as documentaram muito antes do surgimento dessas invenções.

Ajuda o fato de Marfa estar um tanto isolada, o que deixa a noite mais escura e facilita a observação das estrelas. Há, inclusive, uma espécie de mirante oficial, a Marfa Lights Viewing Area, a 145 quilômetros a leste da cidade, na Highway 90, que atrai muita gente todos os dias para simplesmente observar os astros em silêncio.

Se o turista quiser ir além, pode visitar o McDonald Observatory, a 48 quilômetros de Marfa, que conta com alguns dos maiores telescópios de pesquisa do mundo. Fomos a um evento de observação, bem comuns por lá, mas, infelizmente, o tempo não permitiu que víssemos grande coisa.

Essa mística pode ser vivida em um dos maiores ícones locais, o El Cosmico, um hotel/acampamento meio hippie, onde é possível se hospedar em trailers vintage coloridos e muito bem equipados. Se você curte decoração, vai enlouquecer com a loja de suvenires, que oferece produtos estilosos, especialmente pôsteres. Lugar que reúne artistas, o El Cosmico recebe todos os anos o Trans-Pecos Festival of Music + Love, em setembro. Se você preferir uma hospedagem mais tradicional, opte pelo Hotel Paisano, que recebeu o elenco de Assim Caminha a Humanidade, filme estrelado por Elizabeth Taylor e James Dean, rodado em Marfa nos anos 1950.

A cidade também é um destino de peregrinação para os apaixonados por arte minimalista graças à Judd Foundation. Em 1971, Donald Judd (1928-1994) abandonou Nova York para se instalar e abrigar suas grandes obras nas espaçosas e abandonadas terras de um antigo quartel-geral do Exército, hoje conhecida como La Mansana de Chinati, ou, informalmente, como The Block. Li em algum lugar que foi inspiração de Bernardo Paz na criação de Inhotim, em Minas Gerais.

Você pode fazer uma visita guiada que o levará a hangares com inúmeras estantes e vastos pátios cheios de esculturas de concreto. Confesso que não consegui apreciar o trabalho de Judd, mas um crítico de arte me disse que o artista é muito relevante em sua área. Vá e depois me diga o que achou.

Outro ícone da região é a Prada Marfa, que não é uma loja da famosa grife, mas uma instalação de pop-art às margens da US 90. Trata-se de uma pequena construção no meio do nada que remonta a uma vitrine da Prada, com bolsas e sapatos da marca à mostra. Interprete a obra como quiser; alguns na vizinhança acharam um tanto presunçoso: um tempo depois, surgiu outra pequena construção perto dali, entre as cidades de Marathon e Alpine, com o logo da Target, loja de artigos populares dos EUA. Essa eterna dúvida de entender ou não a arte, de não saber o que é genial ou apenas presunção, é bastante aparente na série I Love Dick (2017), comédia da Amazon Prime ambientada em Marfa.


27 DE FEVEREIRO DE 2018
LUÍS AUGUSTO FISCHER

MATTE AMARGO


Gustavo Matte vai me perdoar o trocadilho, que está ali só pra fisgar o leitor e serve para introduzir o comentário sobre seus dois livros, publicados pela editora Kazuá. Um ensaio, Menos Tropical e Mais Tropicalista: Subtropicalista, outro um romance com o cifradíssimo (no limite, incompreensível) título Demo Via, Let?s Go!. São duas partes de uma mesma conversa, que o autor quer estabelecer. Com quem?

Já respondo. Antes, a notícia: o ensaio é uma memória/reflexão dedicados a relatar o caso do autor mesmo, nascido em Chapecó e agora habitante de Porto Alegre, um pensador insatisfeito que se coloca problemas sobre sua identidade. "O que é que a colona tem?" é uma pergunta irônica que sintetiza a bronca: como é que é ser de uma cidade muito jovem, periferia de seu Estado, povoada por descendentes de alemães e italianos antes aclimatados no Rio Grande do Sul, mas atropelado pela cultura de massas dos anos 1990, já com a internet funcionando? Cidade próspera, muito fora da linha de força escravagista, monocultora e latifundiária; cidade feita sobre os escombros da vida ameríndia, reduzida a uns poucos agora marginalizados.

O romance, largamente inventivo, narrado segundo estilos variados (e com torções gráficas bacanas), aqui melancólico, ali irônico, fabula a vida de um sujeito como esse descrito no parágrafo anterior, em duas partes: Delirium Colonum e Catástrofe e Êxodo. Tem momentos de alta tensão narrativa, outros mais frouxos, mas um conjunto não apenas legível, como forte - "genuíno" é o adjetivo que me ocorre.

Mas há a amargura, baixo-contínuo dos dois livros. Com quem? Com o mesmo alvo a quem ele parece se dirigir: Porto Alegre, sua juventude intelectualizada, o suposto mundo culto. Em mais de um momento a cidade é denunciada como indiferente, impenetrável, para o sujeito que ali se expressa e que quer encontrar uma identidade (e não hesita em convocar o nome "tropicalismo" aqui, embora lembre a "estética do frio" ramiliana).

Às vezes dá a impressão de ser uma briga errada, essa - mas ela não é irrelevante. Os livros são irmãos de sangue de Os Famosos e os Duendes da Morte (Iluminuras), ótimo romance de Ismael Caneppele, na mesma geração, e de Riobaldo e Eu - A Roça Imigrante e o Sertão Mineiro (BesouroBox), sensacional ensaio de J. H. Dacanal, na geração anterior. E só essa companhia já mostra que estamos falando de um problema forte e duradouro, que Gustavo Matte ataca com gana forte e boa força estética.

LUÍS AUGUSTO FISCHER

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018


26 DE FEVEREIRO DE 2018
CÍNTIA MOSCOVICH

POVO SEM VIRTUDE


Foi o jornalista Roger Lerina quem, na semana passada, levantou certeiramente, e ainda uma outra vez, essa lebre tantas vezes levantada: a expressão artística de Porto Alegre está encolhendo - o Teatro de Câmara Túlio Piva e a Usina do Gasômetro estão fechados, o Teatro do IPE está atirado às traças, a Fundação Iberê Camargo abre apenas dois dias na semana, o Teatro Novo DC, que era administrado pela companhia fundada pelo saudoso diretor Ronald Rahde, não teve seu aluguel renovado. Um caos.

Sem se furtar a creditar parte dessa miséria à crise, embora reconheça que os problemas que atingem cada uma dessas instituições têm origem distinta, Lerina faz uma observação diante da qual nenhum de nós, porto- alegrenses ou gaúchos, podemos ficar insensíveis: mais do que ocorre em outras capitais, nossa reação é de apatia absoluta.

Fosse no Recife, no Rio ou em São Paulo, a população estaria protestando ferozmente às portas das autoridades - e não se quer dizer que "eles" são melhores do que "nós". Nós é que aprendemos com o gado uma imobilidade pacatíssima - e isso quem diz é o Roger, mas também sou eu.

Ao mesmo tempo, o projeto da Sala Sinfônica da Ospa, que seria construída no Parque Maurício Sirotsky Sobrinho, foi abandonado, optando-se pela agora chamada Casa da Música, que consiste na reciclagem do auditório do Centro Administrativo para transformá-lo numa sala de concertos - algo que custará cerca de oito vezes menos e que, imagina-se, terá proporcionalmente menos qualidade. 

Seguindo a mesma toada do mudo-calado, não ouvi ninguém discutir nadica de nada, como se a Ospa não fosse um dos nossos orgulhos e como se a casa para nossa orquestra-cigana fosse um detalhezinho qualquer. Li duas matérias aqui em Zero Hora e continuo me perguntando: como assim transformar um auditório em sala de concertos?

A conclamação é a mesma de sempre, vamos pensar nisso, entender por que tudo o que se relaciona com arte e cultura é desdenhado, rejeitado e passado a plano inferior. Povo que não tem virtude etc.

cintiamoscovich@gmail.com - CÍNTIA MOSCOVICH


26 DE FEVEREIRO DE 2018
ENTREVISTA

"Me arrependo de não ter fechado mais escolas"


RONALD KRUMMENAUER - Secretário estadual da Educação

Segundo o secretário estadual de Educação, Ronald Krummenauer, a diminuição no número de alunos nos últimos anos - fruto, também, da queda na taxa de natalidade - deve inevitavelmente levar ao fechamento de mais escolas da rede. No ano passado, 2 mil turmas foram fechadas em todo o Rio Grande do Sul. Confira, a seguir, trechos da entrevista concedida na última quarta-feira na sede da secretaria.

A queda no número de matrículas na educação básica deve significar o fechamento de mais escolas?

O fato é que diminuiu barbaramente o número de alunos. Vou confessar uma coisa: me arrependo de não ter fechado mais escolas nesse primeiro momento. Não porque eu gosto ou porque acho correto, mas porque você tem uma possibilidade de utilizar aqueles professores em uma outra escola, onde está faltando. Às vezes, é um deslocamento muito pequeno. Sem falar naquelas escolas que eu acabei não fechando porque sociedade, deputados, veículos de comunicação (se opuseram).

Foi possível dar início a discussões sobre o plano de carreira dos professores, como o senhor pretendia?

Não vejo alternativa para um dia o Rio Grande do Sul pagar o piso nacional sem se trabalhar o plano de carreira, que é de 1974. Você tem um orçamento de R$ 9 bilhões na Secretaria de Educação, R$ 2 bilhões a mais do que toda a prefeitura de Porto Alegre, e quase R$ 8,1 bilhões são da folha de pagamento. Se dermos R$ 500 de aumento, entre ativos e inativos, vamos acrescentar R$ 1,3 bilhão no orçamento do Estado. E mesmo assim não pagaríamos o piso. 

Há ainda outras coisas: o sistema educacional, que é da década de 1960. O difícil acesso, que foi atualizado pela última vez em 1992 e que deveria ser atualizado todos os anos. Mas não acho que essas coisas têm que ser tratadas isoladamente. O sistema educacional é que precisa ser revisto. Porque, isoladamente, parece que você está querendo punir. Essa discussão vai ser colocada ainda em 2018.

O senhor já disse que considera a palavra "meritocracia" muito vinculada à iniciativa privada. Mas cogita aplicar algum tipo de remuneração aplicada ao desempenho nas escolas?

Acho absolutamente injusto considerar todo mundo, em qualquer área, inclusive na educacional, como se tivessem desempenhos equivalentes, ou esforços equivalentes. Se você é um professor dedicado de matemática, que busca alternativas, suas avaliações são ótimas, seus alunos têm um aprendizado bom, têm um ótimo resultado, passam de ano e vão muito bem no ano seguinte, você ganha (por exemplo) R$ 1 mil. Um professor de matemática também no mesmo nível que você, em termos escolares, mas que não tem um desempenho tão bom, não está muito preocupado, ele também ganha os R$ 1 mil. Na minha avaliação, você está financiando ele. Porque talvez ele tivesse de ganhar R$ 700 e você, R$ 1,3 mil, desses mesmos R$ 2 mil. Isso não é uma coisa fácil de ser feita. O momento político para fazer isso vai ter de ser decidido pelo governo.

Como o senhor avalia a iniciativa de convocar o trabalho de professores voluntários nas escolas da rede pública?

Em nenhum momento pensei naquilo como voluntário substituindo professor. Minha intenção era abrir a possibilidade de se poder regulamentar o trabalho voluntário na educação. Pode ser uma aula que não esteja sendo dada de história que a gente vá preencher, um trabalho a ser feito na própria escola, uma atividade de esportes no contraturno. Acho que nós nos explicamos mal. Até porque era durante a greve, o que talvez tenha colaborado para isso. O que estamos fazendo para retomar (o projeto): temos uma parceria com a ONG Parceiros Voluntários, que vai nos ensinar a trabalhar com voluntários. Agora vamos ver como o voluntariado pode funcionar.

guilherme.justino@zerohora.com.br - GUILHERME JUSTINO


26 DE FEVEREIRO DE 2018
SEGURANÇA

Marido de contadora desaparecida e outro suspeito estão presos

RAPAZ DETIDO DISSE ter recebido R$ 50 mil e armas de Paulo Landfeldt para matá-la. Político nega
APolícia Civil agiu forte para tentar esclarecer o desaparecimento da contadora Sandra Mara Lovis Trentin, 48 anos, de Boa Vista das Missões, que não é vista desde 30 de janeiro. Ela desapareceu em Palmeira das Missões, onde teria ido fazer exames médicos. Nunca mais se teve notícias da mulher. Os policiais prenderam dois homens na sexta-feira - um deles, o marido de Sandra, Paulo Ivan Landfeldt, 47, que é presidente da Câmara de Vereadores da cidade onde ele e a mulher vivem. Ele foi eleito pelo PSDB.

O outro detido é um jovem de 22 anos que estaria envolvido no sequestro de Sandra. As prisões causaram terremoto emocional na região, especialmente em Boa Vista das Missões, com 2 mil habitantes.

O passo decisivo para o que pode ser o esclarecimento de uma trama macabra ocorreu quando os policiais suspeitaram de contradições no depoimento do vereador, que havia sido ouvido uma vez e foi interrogado de novo na sexta-feira. Na segunda conversa com os agentes, foi confrontado com mensagens de WhatsApp trocadas com um grupo de pessoas do Alto Uruguai, no qual prometia repassar a elas R$ 50 mil. Em sua defesa, Landfeldt declarou que era extorquido, que pediam resgate por sua mulher e preferia não avisar a polícia.

VERSÃO SINISTRA EM DEPOIMENTO

Mediante quebra de sigilo telefônico e telemático (mensagens), os policiais chegaram a moradores de duas cidades próximas a Frederico Westphalen, envolvidos em tráfico de drogas. Eles teriam se refugiado numa cidade de Santa Catarina. Os agentes foram lá e prenderam um dos supostos envolvidos.

Esse rapaz, com antecedentes por tráfico, deu versão sinistra: teria assassinado Sandra e a enterrado em cova rasa. Disse que cometeu o crime a mando do marido. O relato foi usado para justificar a preventiva do vereador. O jovem disse que receberia R$ 50 mil e armas, mas só parte do dinheiro teria sido paga.

humberto.trezzi@zerohora.com.br - HUMBERTO TREZZI


26 DE FEVEREIRO DE 2018
L.F. VERISSIMO

Preferências

Não me lembro quem era. Faz tempo. Numa roda, discutiam-se as preferências de cada um e alguém declarou "Pra mim, é Pio XII e Marta Rocha". Podia ter dúvidas em outras categorias, menos nas de melhor papa e melhor Miss Brasil. A frase fez sucesso, apesar da incongruência assumida, pois havia uma clara incompatibilidade entre as duas escolhas. Como alguém podia gostar ao mesmo tempo do ascético papa Pio XII e da bela baiana que só não fora Miss Universo porque suas formas eram generosas demais? 

(Ver Padrões e Medidas do Brasil Antigo, capítulo "Formas e folclore", verbete "Violão, mulher tipo"). Mas o importante era o tom definitivo da declaração. É preciso ter algumas definições prontas para o caso de você ser cobrado de surpresa. Melhor papa. Melhor Miss Brasil. Melhor Tarzan. Melhor música do Tom...

Não é fácil estar com as suas preferências sempre em dia. Quem tem uma coluna regular na imprensa e dá palpite sobre tudo muitas vezes só descobre o que pensa sobre um assunto quando o comenta, e não é raro começar com uma opinião e terminar com outra. Tenho posições firmes sobre o aleitamento materno (a favor) e o câncer (contra), mas e a clonagem humana? E dois volantes de contenção, sim ou não? E Israel e os palestinos? Alguém já disse que não existe frase pior, para um profissional do palpite, do que "por outro lado". 

Sempre tem o maldito outro lado! Não é uma questão de ser objetivo e imparcial. Com um espaço assinado no jornal, você é pago para ser subjetivo. Todos os imparciais são iguais mas cada um é parcial à sua maneira, e se for um preconceituoso é ainda mais divertido. O problema é como ser subjetivo sem ser injusto e saber por que você é parcial. Ou o que, para você, é pão e é queijo. Ou Pio XII e Marta Rocha.

(Ninguém me perguntou, mas lá vai: João XXIII, Ieda Maria Vargas, Johnny Weissmuller e Inútil Paisagem).

L.F. VERISSIMO

sábado, 24 de fevereiro de 2018



24 DE FEVEREIRO DE 2018
LYA LUFT


Somos fênix

A estranha ave lendária que se imolava no fogo e dele renascia é muito usada como metáfora de nosso próprio renascimento de horas ou fases muito difíceis.

Ninguém, eu acho, olhando sua vida, pode dizer que jamais teve esta sensação: "Agora, acabou; nada faz sentido". Ou: "Não vou aguentar". Ou: "Isso eu não vou poder suportar". Coisas desse gênero.

No entanto, me ensinou a vida, mesmo quando estamos numa UTI emocional, como a perda de alguém muito amado, esperando ou até desejando o fim e a paz, um dia conseguimos levantar, somos liberados dos aparelhos que nos mantinham vivos, chegamos até a porta... somos transferidos para um quarto mais promissor.

Dali, podemos espiar o corredor, andar por ele quem sabe apoiados em alguém ou de bengala, e finalmente conseguimos respirar. "Estou respirando livremente. A pedra pesada e escura no meu peito aliviou. Um pouco. Mais um pouco. Talvez eu nunca me livre dela inteiramente, mas estou aprendendo a lidar com ela. Tenho para isso o resto da minha vida." 

Tenho agora a força do pensamento de que o ser amado que se foi está em outra dimensão, outro registro, mas presente, gostaria que eu saísse da sombra da dor e voltasse a viver: em sua homenagem também, porque a vida deve ser vivida, merece ser vivida. Pessoas queridas nos ajudaram, confortaram, ou simplesmente foram uma presença bondosa e quieta. A gente sabia sem grande escarcéu: ele, ela, está ali para mim.

Estamos vivos. Saímos das próprias cinzas. Existe o mundo com suas belezas e crueldades, existem as pessoas com seus amores ou maldades, existem a loucura, a neurose, o rancor inexplicado, a violência e a guerra, mas também existe vida. Esse primeiro movimento para alguma claridade é como comprar uma flor e botar no vaso à nossa frente quando pouca coisa parece sobrar. E depois, a janela aberta sobre a floresta, ou o mar, ou o belo parque, a porta aberta para algumas pessoas especiais, porque multidão ainda não aguentamos. Essas que, longe ou perto, estiveram ao nosso lado ao redor da fogueira sabendo, torcendo para que a gente pudesse renascer do montinho de cinza em que tínhamos nos transformado.

Descobrimos ou redescobrimos o valor dos afetos, das coisas simples, daquela voz no telefone, aquele e-mail ou Whats, daquele passo no corredor, aquele gesto afetuoso ou um simples olhar de cumplicidade - pois nem todos sabem, ou conseguem, grandes abraços e palavras, mas estão ali conosco. E tudo isso nos fez de novo viver.

A fênix incansável volta a andar, a abrir as asas, a tentar seu voo: isso somos, até que um vendaval mais forte nos carregue também. Em paz.

LYA LUFT


24 DE FEVEREIRO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

As minúcias


Todos sabem: chato é aquele que, ao ser perguntado se está tudo bem, não consegue responder simplesmente que está. Ele acha que a pergunta foi pra valer, então ele discorre sobre tudo o que tem passado e sobre como anda sem esperança na humanidade. Como avisá-lo, sem que ele se sinta ainda mais deprimido, que foi apenas um cumprimento e nada mais?

Minúcias a gente guarda para o nosso advogado. Ele certamente vai precisar delas para nos inocentar.

Minúcias podem ser reservadas também para a família, já que nossos pais e filhos adoram saber o que já aprontamos, aqueles segredos que só podemos contar depois que o crime prescreveu e tudo vira piada.

Por fim, minúcias são bem-vindas em livros, na defesa de teses e em consultas médicas. Em nenhuma outra situação que eu me lembre. Nem mesmo (e principalmente) em conversa ao pé do ouvido com seu amor. Não quebre o clima levando a conversa para muito longe de onde vocês estão.

Ao telefone, evite. Seu neto se machucou na escola? Tadinho. Pule rápido para a parte em que ele se recuperou e ficou tudo bem. Adote a presteza do WhatsApp. O quê? Você discursa pelo WhatsApp? Chegou de que planeta?

Minúcias em festas, nem pensar. Alugar um convidado com uma história comprida é uma inconveniência. As pessoas querem circular, dançar, e não saber detalhes da sua operação no joelho. Você não operou o joelho? Sério, acabou de fazer o caminho de Santiago de Compostela? Ótimo, condense a odisseia em seis minutos. Sete, se foi tão fantástico assim. E troque para outro assunto, a não ser que seu ouvinte pegue você pelo braço, leve-o até um canto e implore pelos pormenores.

Quando estamos falando sobre nós mesmos, é quase incontrolável fazer uma retrospectiva detalhada das nossas experiências, mas lembre-se que a maioria das pessoas prefere o compacto dos melhores momentos. É mais que suficiente.

Entendi, você não está falando sobre si mesmo, e sim sobre seu primo que foi casado com não-sei-quem, que ele conheceu numas férias não-sei-onde. Você está falando do seu professor de matemática da quarta série que tinha propensão a ter acne. Você está falando da sua tia-avó falecida que fazia ótimos bolinhos de chuva. Você está falando de pessoas que não tivemos a honra de conhecer - e falando por horas, sem que a história empolgue. Não se magoe, mas tente lembrar se você não teve um primo que ficou preso no elevador com a Madonna, uma tia-avó que traficava maconha dentro dos bolinhos de chuva, um professor que foi preso político. Se não teve, invente.

Conversar é uma delícia: trocar confidências, falar de sentimentos, opinar sobre o mundo, dar dicas culturais, narrar aventuras, contar episódios divertidos - a tarde inteira, a noite inteira. Mas se o assunto for de uma banalidade extrema, não especifique demais. A gente ama você, mas ninguém está com tanto tempo sobrando.

MARTHA MEDEIROS

24 DE FEVEREIRO DE 2018
CARPINEJAR

Sonhadores vitalícios

"Posso fazer melhor" é uma frase com dois sentidos.


Se você diz "posso fazer melhor", quando erra e é criticado, representa culpa. Alguém apontou o vacilo e se viu questionado a se pronunciar. Não foi uma manifestação espontânea. Pretende apenas corrigir uma falha com a esperança, mas não significa que realmente queria ter feito melhor, é uma desculpa social, coletiva, para ser perdoado e seguir burocraticamente em frente. É um remorso por ser criticado pelos outros, uma vergonha engolida a seco, não traz revolução interior e impulso para se aperfeiçoar de verdade.

Se você diz "posso fazer melhor" quando acerta, daí é criatividade. Enxerga muito além do óbvio. Não houve pressão externa, e sim resolução de seus próprios pensamentos. Tem um nível de exigência e disciplina que não permite ser corrompido pelo elogio ou se facilitar pela bajulação. Sabe o que pode oferecer, é o quanto é acima ou abaixo de seu potencial. 

Alguns comentarão que está sendo perfeccionista, entretanto partilha uma noção de que acertar é estar em movimento, jamais comemorar uma vitória - as vitórias são momentâneas e parciais, à semelhança dos fiascos. Trata-se de um realista otimista, que vive se cobrando antes de ser cobrado. É filho da resiliência, de um rigoroso diagnóstico de suas vontades. Não se perturba com o não, e tampouco com um sim. O grande motivo de carreiras cortadas é a acomodação. Quando é dado só o que é solicitado, não mais, não o impossível.

Walt Disney, antes de fazer sucesso, faliu com o seu primeiro estúdio. Steve Jobs não completou a escola e foi expulso de sua própria empresa aos 30 anos. Michael Jordan terminou cortado da equipe de basquete de seu colégio por não corresponder às expectativas. Assim como Thomas Edison enfrentou a suposição de retardado.

Todos têm em comum a obstinação positiva. Não desanimaram com o julgamento exterior, já que se autoexaminavam com constância, e se dobraram em esforço para arcar com as suas ambições. Sussurravam para si "posso fazer melhor" mesmo quando atingiram a excelência depois. Não se acovardaram com as opiniões alheias. Não se intimidaram com os obstáculos e o medo externo da aprovação. Não engavetaram as suas ideias, pois se mantiveram fiéis às suas crenças e objetivos. Não mudaram de trajetória por quedas eventuais. Não recolheram os seus projetos e migraram para tarefas estáveis, seguras e menos pessoais.

"Posso fazer melhor" é sonhar. Quem fala isso para si mesmo, e nunca espera alguém de fora falar, jamais desiste.

CARPINEJAR


24 DE FEVEREIRO DE 2018
PIANGERS

Alguém tem que fazer

Desde garoto, minha mãe me ensinou a realizar atividades domésticas. Ensinou é um substituto elegante para obrigou. Louça, cama, chão, banheiro, lixo, almoço, cuidar da minha irmã. Não tínhamos empregada nem babá. Lembro de detestar tirar o pó da casa, o pano molhado ia ficando preto, uma desgraça. Minha mãe era linha dura, chegava do trabalho e estava tudo brilhando. Hoje em dia as crianças nos chamam depois de fazer cocô até os trinta anos. Paiê! Manhê!

Acabei desenvolvendo predileções. Atualmente, minhas atividades domésticas favoritas são lavar a louça, ferver água e distribuir entre as garrafas da geladeira, ir catando os sapatos e brinquedos espalhados pela casa e ir realocando para seus devidos aposentos e arrumar as camas. Nada mais bonito do que uma cama arrumada. Meus ofícios menos favoritos são tirar a roupa lavada da máquina e estender, recolher os lixos do banheiro e da cozinha (lixo seco sou de boa) e limpar o chão da cozinha.

Limpar o chão da cozinha é um negócio desmoralizante. Você passa a vassoura, depois pega um pano e fica de quatro, arrastando o pano de um lado pro outro, tentando tirar os farelos presos no chão esfregando com o polegar, joelhos no azulejo frio, o pano solta mais sujeira do que absorve. Existem aqueles esfregões modernos, mas me arrisco dizer que só uma boa esfregada de pano enrolado no polegar tira todos os farelos de comida grudados no chão. 

Tem aquela técnica também de ir com os dois pés em cima do pano, cheng chong cheng chong, os passos pequenos arrastando o pano pela cozinha, parece que você é um pinguim. Me recuso. Se for pra limpar o chão da cozinha eu me submeto, é um trabalho desmoralizante, mas alguém tem que fazer. Melhor eu que outra pessoa. Ainda mais se a outra pessoa faz o passo do pinguim.

O lixo dos banheiros tenho nojo. Recolho apenas quando a tampa já não fecha. Sou daqueles que tira a sacola de supermercado cheia de papel higiênico usado e mantêm longe do corpo, segurando na ponta dos dedos, dando o nozinho com os braços esticados. O lixo da cozinha é um terror, porque sempre que você vai tirar ele está todo arregaçado, boca de bêbado dormindo, uma parte do lixo está dentro do saco e a outra caiu pra dentro da lata. Tem que pegar com a mão aquelas cascas de banana, aquela gordura da picanha, aquela borda de pizza que sua filha não come, colocar tudo no saco bonitinho, dar o nozinho com os braços esticados, colocar os sacos no corredor, na frente da porta do apartamento. 

Que coisa infame colocar sacola de lixo na frente da porta pra descer depois. Mas eu faço. O pior é quando alguém come melancia, joga no lixo e forma uma aguinha no saco, quando você vai tirar o lixo sai pingando tudo pela casa. Se não percebe, forma uma poça na frente da porta do apartamento. Aí, então, você tem que pegar um pano molhado e ficar de quatro limpando bem aquela sujeira toda. Que seu filho não pode fazer porque está cansado de tanto ficar no celular.

PIANGERS


24 DE FEVEREIRO DE 2018
CLAUDIA LAITANO

mães e FILHAS


No início de Lady Bird, um dos filmes que disputam o Oscar no próximo final de semana, uma adolescente se atira de um carro em movimento para se livrar da voz (e da presença) da mãe, que está ao volante. Pode parecer exagerado, e é, mas não há filha ou mãe que não tenha sentido vontade, em algum momento, de encenar um gesto grandiloquente como esse - principalmente tendo a garantia de que ninguém, a não ser o bom senso, sairia ferido.

Exagerada tanto em amor quanto em cobranças e expectativas mútuas, a relação entre mães e filhas pode ser sublime e exasperante em igual medida. Duas mulheres espelhadas e diferentes, íntimas mas não necessariamente próximas. Duas pessoas que podem se amar incondicionalmente e ainda assim não se gostar muito - como sugere, aliás, um dos melhores diálogos do filme.

Em Três Anúncios para um Crime, outro concorrente ao Oscar deste ano, acompanhamos a jornada uma mãe em busca de uma solução para o assassinato da filha. À sua maneira, a personagem vivida por Frances McDormand age como as mães e avós da Praça de Maio e tantas outras mulheres da vida real que não se conformaram com a morte ou o desaparecimento dos filhos, lutando por justiça mesmo quando a própria vida estava em risco. A certa altura da história, ficamos sabendo que a relação desta mãe incansável com a filha nem sempre foi fácil - o que não chega a ser surpreendente, dado o temperamento da personagem. Amor materno às vezes é briguento, cricri, sem noção, mas não deixa de ser sublime mesmo quando é exasperante.

Minha mãe e eu sempre fomos muito diferentes. Em nossos universos separados, por temperamentos e ambições, encontramos uma área neutra onde o afeto era mais importante do que a afinidade. O fato de que muitas coisas que eu considero essenciais eram irrelevantes para ela, e vice-versa, deixou de ter qualquer importância depois que me tornei adulta.

Eu já tinha uma filha quando deixei de ser a filha de alguém com quem eu podia brigar e fazer as pazes logo em seguida. Assistir à morte da minha mãe, segurar sua mão até o fim, foi para mim uma experiência tão intensa e reveladora quanto dar à luz. Foi naquele momento de dor e perda que eu entendi a dimensão do vínculo que me une às duas mulheres mais importantes da minha vida. As duas pontas da minha história.

Na infância, sentimos como se a mãe fosse uma parte de nós. Mais tarde, é preciso cortar esse cordão, sair do ninho, marcar diferença, inventar um destino (ou um nome, como a jovem personagem de Lady Bird). Para algumas mulheres, entre as quais me incluo, a sensação de que somos atravessadas, de forma visceral, pela relação que tivemos com nossas mães se torna ainda mais evidente depois que temos filhas. Nossas mães são como uma figueira centenária plantada no centro da nossa vida, com raízes que se estendem muito além daquilo que é visível. Nossas filhas são os frutos que nos levam a voar pelo mundo - até onde a imaginação delas, e a nossa, for capaz de ir.

CLAUDIA LAITANO

24 DE FEVEREIRO DE 2018
DRAUZIO VARELLA

AMERICAN WAY OF LIFE



A expectativa de vida de quem nasce nos Estados Unidos caiu pelo segundo ano consecutivo. Em 1960, os norte-americanos tinham a expectativa de vida mais alta do mundo. Era 2,4 anos maior do que a média dos países da Organization for Economic Cooperation and Development (OECD). Fazem parte da OECD Alemanha, Áustria, Bélgica, Canadá, Chile, República Tcheca, Dinamarca, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Hungria, Coreia, Israel, Japão, Holanda, Noruega, Estados Unidos, Suécia e outros.

A partir dos anos 1980, a diferença começou a diminuir. Em 1998, a expectativa de vida americana foi superada pela média dos países da OECD. Hoje, ela é um ano e meio mais baixa: 78,7 contra 80,3 anos.

No ano de 2013, pesquisadores do Institute of Medicine procuraram entender as razões pelas quais o país levava desvantagem crescente. Verificaram que, em relação aos habitantes da OECD, os americanos apresentavam maior número de homicídios, traumas, gravidez na adolescência, mortes por parto, HIV/aids, obesidade, diabetes e doenças cardiovasculares.

Contribuíam para a piora relativa dos indicadores de saúde, hábitos e comportamentos ligados ao estilo de vida da população: dieta hipercalórica, consumo de drogas psicoativas, centros urbanos que privilegiam o automóvel em detrimento das bicicletas e de andar a pé, serviços de saúde inacessíveis aos mais pobres, laços sociais e comunitários frouxos.

Graças à disseminação do abuso de opioides, o número de óbitos por overdose aumentou 137%, no período de 2000 a 2014. Apenas no ano de 2015, ocorreram 64 mil dessas mortes (cinco a mais do que as ocorridas na guerra do Vietnã).

A epidemia de opioides é a parte mais visível dos dramas que afligem a classe média do país. Ela esconde o aumento das mortes por alcoolismo e suicídio, chagas sociais que afetam principalmente homens brancos de 25 a 59 anos e as mulheres.

Nos últimos anos, a performance educacional dos americanos decaiu, a desigualdade social aumentou, os salários da classe média estagnaram e os índices de pobreza aumentaram em relação aos demais países industrializados. O "sonho americano" que animou gerações anteriores está cada vez mais distante. A mobilidade social dos jovens já não é aquela do tempo de seus pais. A continuar assim, a geração atual viverá menos do que a anterior.

Os Estados Unidos são de longe o país que pratica a medicina mais cara do mundo e o que mais gasta em assistência médica: 17% do PIB. Como em 2016, o PIB americano foi de US$ 18,75 trilhões, eles investiram somente nesse ano cerca de US$ 3,1 trilhões, quantia que corresponde a quase duas vezes o PIB brasileiro.

Tanto dinheiro para resultados tão pífios. Nós, muito mais pobres e com problemas político-administrativos gravíssimos, chegamos a 75,8 anos de expectativa - contra os 78,7 deles -, no mesmo ano.

O exemplo dos Estados Unidos deixa claro que recursos financeiros são condição necessária para o bom funcionamento do sistema de saúde, mas não suficiente.

drauziovarella.com.br - DRAUZIO VARELLA


24 DE FEVEREIRO DE 2018
JJ CAMARGO

ESPERANDO O MAR CANSAR

Numa extensão de uns cem metros, o mar descarregou na praia uma enxurrada de algas escuras, decompostas e malcheirosas. A areia emporcalhada era varrida com persistência por um grupo de garis, todos idosos, que iam ensacando os dejetos em bolsas de plástico preto, que eram empilhadas à espera de que o caminhão da coleta as recolhesse mais tarde.

Ondas pequenas, mas carregadas de lixo marinho, prenunciavam que a operação iria continuar por muitos dias. Mas isso não parecia criar nenhum desconforto na equipe de limpeza, que seguia com seu trabalho obstinado, silencioso e inútil. Compadecido, me acerquei do mais velho deles e perguntei: "O senhor não desanima de ficar varrendo essa sujeira, se as ondas não param de trazer mais porcarias?". O velhinho me olhou com cara de alívio pela pausa justificada e disse: "Eu nunca penso nisso porque sei que, um dia, o mar vai cansar!". Resisti a vontade de abraçá-lo e retomei a caminhada. Tinha de digerir essa lição de filosofia do cotidiano. E não fora uma simples aula de conformismo: havia ali muito de sabedoria.

No caminho de volta, cutucado pela obviedade, me dei conta de que nós, conscientes ou não, gastamos um tempo enorme do nosso dia varrendo sujeira, real ou metafórica, trazida pelas circunstâncias, à revelia do nosso desejo, para atravancar nossa esperança e deturpar nossos sonhos. Há muitos anos, convencido de que quem se desinteressa pelo passado não se habilita a construir o futuro, fui me envolvendo progressivamente com história do Brasil e, então, percebi, constrangido, que de tanto ver o presente repetindo o passado, é utópico acreditar no país do futuro sem questionar: "Que futuro, se ele parece cada vez menos com um país?". 

O mar de lama tem transportado para a praia do nosso ânimo essa enxurrada de corrupção e pobreza de espírito responsável pela debandada das melhores cabeças de uma juventude que precisou de menos tempo do que a nossa geração para descrer. A menos de um ano de uma eleição decisiva para o que resta da dignidade nacional, choca a pobreza das opções e constrange a discussão, dolorosamente realista, de qual candidato é menos ruim. Muitas vezes, tenho invejado a convicção daquele velhinho, porque os anos vão passando, e eu cada vez acredito menos que, um dia, esse mar de desilusão vá cansar.

jjcamargo.vida@gmail.com - JJ CAMARGO

24 DE FEVEREIRO DE 2018
OPINIÃO RBS

FALTA DE TRANSPARÊNCIA

É preciso que a maior clareza propiciada pela Petrobras contribua de fato para explicar, de forma definitiva, por

que há tanta variação no valor final da gasolina


APetrobras deu um passo à frente com a decisão de divulgar diariamente o preço médio do litro da gasolina vendido nas refinarias, como forma de habituar o consumidor à sua nova política de preços, em vigor desde o ano passado e que prevê reajustes mais frequentes. Ainda assim, a decisão vem servindo mais para mostrar que, na prática, o consumidor arca com um valor muito superior ao razoável nos postos, sem que essa maior transparência o ajude a entender as razões. Por mais que esse mercado precise atuar sem interferência externa, os brasileiros têm direito a maior atenção sobre as razões de uma oscilação tão acentuada nos preços.

No Rio Grande do Sul, em apenas seis meses, o preço final superou em até 10 vezes a inflação registrada no período. E, hoje, o valor cobrado nas bombas chega a corresponder a quase três vezes o da refinaria, o que precisa ser explicado melhor. Num mercado que pouco liga para os organismos de fiscalização, por conhecer a fundo suas deficiências, o consumidor precisa ter seus interesses levados um pouco mais em conta.

A Petrobras garante que, desde o anúncio de sua nova política de preços, foi responsável por apenas um sexto do valor final. A explicação mais alegada por quem atua na área, a do peso dos tributos, faz sentido. Combustível é altamente taxado, tanto em âmbito federal quanto no caso do governo gaúcho. Os Estados ganham no Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS). 

O governo federal fica com a arrecadação da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e do PIS/Pasep. A questão é que, quando são criadas condições para uma redução no valor final, isso dificilmente ocorre na prática. Já os aumentos costumam ser colocados em prática de imediato.

O fato concreto é que combustível é um insumo de alto impacto no bolso do consumidor, com repercussão sobre preços de maneira geral. Quem arca com o ônus, portanto, não são apenas os proprietários de veículos, mas todos os brasileiros. Daí a importância de uma atuação mais firme por parte dos organismos de fiscalização. É preciso que a maior clareza propiciada pela Petrobras contribua de fato para explicar, de forma definitiva, por que há tanta variação no valor final da gasolina.

24 DE FEVEREIRO DE 2018
INFORME ESPECIAL

SARCASMO À NORUEGUESA


O nome é Histórias da Noruega, mas, não fossem o cenário branco pela neve e os personagens todos bem agasalhados, bem que poderia se chamar Histórias do Brasil. O programa de TV, que é o maior sucesso tanto em Oslo quanto no interior, faz uma releitura sarcástica de fatos reais vividos no país, sempre líder no ranking de desenvolvimento humano.

Na semana passada, por exemplo, foi apresentado o caso da construção de um trampolim gigante para mergulhos às margens do lago Mjøsa. Orçada em US$ 190 mil, acabou custando US$ 3,8 milhões aos cofres públicos. Alternando entrevistas reais com dramatização musical, o programa mostra de maneira didática como o projeto foi todo mal planejado e que no final ninguém levou a culpa. Qualquer semelhança com a realidade brasileira, como se vê, é mera coincidência. Num país apaixonado por reality shows como o nosso, seria um estouro de audiência.

No show dos irmãos Ylvis e Bjarte, ninguém sai ileso. O devaneio de quem teve a ideia, a megalomania do arquiteto e a omissão dos conselheiros do município estão todos lá. Fica explícito como a combinação desses ingredientes gera toda a bagunça. Bastaria acrescentar algumas dezenas de milhões nas cifras gastas e uma boa dose de corrupção e sairia do forno um típico prato brasileiro.

Nem só projetos públicos que tiveram o orçamento estourado alimentam a criatividade dos idealizadores do programa. Num dos episódios mais ácidos, a dupla satiriza o deslumbramento norueguês durante a visita de Justin Bieber ao país. O frenesi de adolescentes que viajaram centenas de quilômetros para ver o cantor, a cobertura da imprensa, que "rapidamente esqueceu-se das histórias chatas dos sírios refugiados" e a aflição dos donos de hotéis para deixar tudo impecável para receber o astro ganham contornos hilários quando se sabe o final da história: depois de se irritar com fãs, Bieber abandonou o palco logo após a primeira música.

Saber rir de si mesmo é uma arte.

informe.especial@zerohora.com.br - CADU CALDAS