sexta-feira, 3 de novembro de 2017



Dia dos infindáveis 

Melhor chamar o Dia de Finados de Dia dos Infindáveis. Não há comprovação científica da vida depois da morte. Alguns acreditam em reencarnação ou metempsicose (transmigração da alma para um ser vivo animal ou vegetal). Morrer, pagar impostos e ver o Inter Tetracampeão Mundial são as únicas certezas futuras. 

Não gosto de pensar na morte e nos impostos, cada vez mais altos, impostos por governos cada vez mais baixos. Um brocardo latino dizia: mors omnia solvit, a morte resolve tudo. Juristas gostam dele, mas acho furado. Os mortos, suas lembranças e problemas estão aí, ao menos até serem lembrados. Guimarães Rosa disse que as pessoas não se vão, ficam encantadas. Sei lá o que acontece ou não no além, e não estou muito curioso. 

Quando criança, tinha medo do diabo, do inferno e de ser enterrado vivo, como diziam ter acontecido com o jornalista J. Bronquinha e com o ator Sérgio Cardoso. Tinha medo de adormecer e não acordar. Aos sete ou oito anos, achava que tinha muita coisa para viver no dia seguinte e nos outros. Impressionado com as notícias do jornal e com a catalepsia (síndrome que faz alguém parecer morto), tinha medo de ser enterrado vivo. 

Nos Estados Unidos, inventaram um túmulo com comida, água e uma cordinha que acionava um sino, do lado de fora, para avisar se estava vivo. Melhor não pensar na morte, assobiar no escuro, fazer de conta que não existe. Ou pensar só para ter gana de fazer coisas em vida. Melhor não pensar demais nos mortos, se não eles chamam a gente para o andar de cima antes da hora. Os que se foram não foram, deixaram palavras, gestos, afetos, exemplos, emoções, fotografias, razões, piadas, gols e bens materiais. 

Pessoas só morrem mesmo depois que ninguém lembra mais delas. Não preciso de Dia de Finados ou datas de aniversário para lembrar os entes. Lembro com frequência de meus avôs, pai, sogros, irmão, tios, primos e amigos que se foram. Não vou muito ao cemitério, nem penso demais nos infindáveis para não lhes tirar a paz. É cedo ainda para o reencontro, se houver. Se não, estão de ótimo tamanho as lembranças e os "reencontros" aqui. Anos atrás, sonhei com meu pai e meu irmão, que se foram cedo. 

Pareciam mais altos e mais gordinhos do que aqui. Me disseram, com os olhos, que não era a hora da reunião. Por enquanto, reúno as lembranças. Às vezes, quando tenho que resolver algo mais complicado, fico imaginando o que eles fariam. Às vezes, alguma resposta; outras vezes, o silêncio me diz para me virar por aqui. É a vida. É a morte. No México, o Dia de Finados é festivo, com caveiras e esqueletos coloridos, comidas para os defuntos e humor. Poderia ser assim no mundo todo. 

Hoje, as pessoas não morrem mais em casa. Morrem nos hospitais ou ruas, em acidentes e assassinatos. Velórios e cerimônias são rápidos, em locais impessoais. Infelizmente não tem mais piadas de velório. A morte, o sentimento de morte e as cerimônias demoradas morreram. Às vezes tem música, comida e bebida para os vivos e maquia-se o infindável, que não se fina tão cedo. 

A propósito... 

Neste Dia de Finados, do jeito que estamos, é bom lembrar brasileiros infindáveis que nos deixaram legados, obras e exemplos luminosos: Irmã Dulce, Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Mario Covas, Leonel Brizola, dom Helder Câmara, Betinho, Tom Jobim, Carmen Miranda, Cauby Peixoto, Ayrton Sena, Garrincha, Pixinguinha, Lupicínio, Noel Rosa, Oswaldo Cruz, Clarice Lispector, Erico Verissimo, Barbosa Lima Sobrinho e Machado de Assis completam a lista. 

Desculpem-me os muitos não citados. Sintam-se lembrados e vivos, nos governem, mas o imortal em vida Barão de Itararé disse: "os vivos são cada vez mais governados pelos mais vivos". Sempre vivo, querido barão, vovô da imprensa e do humor. - Jornal do Comércio (http://jcrs.uol.com.br/_conteudo/2017/10/colunas/livros/594006-obras-primas-do-terror-e-do-suspense.html)

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