sábado, 4 de novembro de 2017



04 DE NOVEMBRO DE 2017
DAVID COIMBRA

Renato, o novo Foguinho

Conheço muita gente que entende de futebol. Porteiros de edifício. Motoristas de ônibus. Médicos. Taxidermistas. Cientistas. Conheço até alguns jogadores, dirigentes e técnicos que entendem de futebol. Entre eles, o Renato.

Renato entende muito de futebol, mas não é essa a sua principal qualidade, e talvez nem seja a principal qualidade que um treinador de futebol deva ter.

Tive a chance de acompanhar de perto o trabalho de vários dos melhores treinadores do Brasil, de conversar com eles e compreender o que faziam e por que faziam. Qual deles entendia mais de futebol?

Talvez o Foguinho.

Oswaldo Rolla, o "Foguinho", foi um revolucionário. Certo dia, escrevi uma matéria sobre ele e coloquei no título: "O inventor do futebol gaúcho". Foi o que ele foi. Visitei-o inúmeras vezes em seu apartamento, na Senhor dos Passos. Então, ele já se dizia "uma página virada" do futebol e exprimia sua nostalgia a todo momento. Uma manhã, desceu para abrir a porta do edifício para mim. Vestia pijama. Entramos no elevador e perguntei se ele estava bem.

- Eu estava bem quando tinha a sua idade - respondeu-me, melancólico.

De outra feita, pediu que me acomodasse em um sofá, foi para dentro de casa e de lá voltou com uma caixa de papelão cheia de fotos e recortes de jornal. Ia mostrando suas relíquias e fazendo comentários. Puxou uma foto em que aparecia o ex-deputado Pinheiro Machado, pai dos meus amigos Ivan e José Antônio. Disse, com reverência:

- Pinheiro Machado foi o maior homem que conheci.

Depois, mostrou-me uma pequena e esmaecida foto do centroavante Luiz Carvalho, que jogou com ele no Grêmio dos anos 1930. Suspirou:

- Todos os dias eu penso no Luiz Carvalho...

Achei bonito.

O futebol era a razão de existir do velho Foguinho. No fim da vida, acometia-lhe um sonho recorrente: que marcava o maior gol da sua carreira, feito no chamado Gre-Nal do Centenário, de 1935. No silêncio da madrugada, Foguinho fazia de novo aquele gol, o Grêmio vencia outra vez o campeonato e ele, por fim, acordava com o grito da torcida. Ficava deitado na cama, de olhos abertos no escuro, sentindo o sabor daquele prazer antigo esvair-se devagar na realidade.

Foguinho sabia tudo de bola e fazia o diagnóstico de um jogador ou de um time rapidamente, assistindo apenas a um jogo ou, incrível!, analisando a postura do jogador em uma foto de jornal. O lateral Edson Madureira me contou que Foguinho foi a Criciúma para vê-lo jogar e, antes de contratá-lo, pediu que caminhasse um pouco no pátio de um colégio. Madureira era então lateral-esquerdo do Comerciário. Caminhou para lá e para cá, meio acanhado e, quando parou diante de Foguinho, ele sentenciou:

- O senhor vai ser contratado. Mas para jogar na lateral-direita, não na esquerda.

E Madureira jogou na lateral-direita, e fez bom sucesso.

Mas você vai reclamar que estou escrevendo sobre Foguinho, quando devia estar escrevendo sobre Renato, devia estar contando qual é a qualidade mais importante que ele tem. Tenho motivos para isso. É que Renato, de certa forma, é o novo Foguinho. Ambos se consagraram no Grêmio em situações semelhantes: Foguinho foi ídolo como jogador no antigo Estádio da Baixada e foi ídolo como treinador no novo Estádio Olímpico, enquanto Renato foi ídolo como jogador do velho Olímpico e é ídolo como técnico na nova Arena.

Mas Foguinho não tinha o tal predicado que tem Renato: o poder de cativar as pessoas. Os jogadores veem mais do que sinceridade nele: veem lealdade. Por isso, jogam por ele. Foguinho despertava respeito, despertava admiração, mas era algo distante dos jogadores, chamava-os de "senhor", não era dado a intimidades. Renato é olhado pelos jogadores como se fosse eles amanhã. Isso vale mais do que uma jogada ensaiada ou do que uma tática bem treinada.

Se, no final deste mês, Renato for campeão da América, terá superado Foguinho. Então, todos, porteiros de edifício, motoristas de ônibus, médicos, taxidermistas, cientistas e até jogadores, dirigentes e técnicos dirão dele o que diziam de Foguinho: esse entende muito de futebol.

DAVID COIMBRA

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