sábado, 23 de setembro de 2017



23 DE SETEMBRO DE 2017
JÚLIA DANTAS

POLÊMICA NÃOFOI SOBRE A ARTE

Desde o encerramento precoce da exposição Queermuseu, diversos artistas têm se manifestado a favor da liberdade de criação. Admiro as manifestações e assino embaixo, mas arrisco dizer que o maior perigo nessa história é outro.

O MBL e os militantes de extrema direita que deram ao caso suas dimensões estratosféricas não estavam interessados em debates artísticos: os ataques sobre a exposição e seus visitantes foram baseados em mentiras e distorções que pretendiam apenas associar a comunidade LGBT a crimes de pedofilia e abuso infantil. 

A partir de uma obra de Adriana Varejão, que retrata abusos do período colonial, surgiu a estapafúrdia acusação de incentivo à zoofilia (não posso imaginar quem levantaria tão absurda bandeira, nem que espécie de movimento se beneficiaria da popularização da zoofilia, muito menos o que ganharia com isso, mas vou encerrar aqui esse parêntese); a partir de uma obra de Bia Leite construída em cima de publicações do tumblr Criança Viada se alastraram os gritos de pedofilia. É importante notar que, a partir de um recorte, youtubers em fúria bradaram a todos os lados que a mostra inteira era de "putaria e sacanagem".

Por que a mostra inteira? Porque é queer. Tivesse a mesma seleção de obras recebido outro nome e os supostos defensores da moral provavelmente nem teriam entrado na exposição. A discussão não é sobre arte. É sobre LGBTfobia. É recorrente que os mais preconceituosos tentem associar homossexualidade a pedofilia, num vínculo tão falso quanto cruel. 

Chamar de pedofilia ou de pornografia a imagem de uma criança vestida posando de forma inocente para uma foto apenas porque ela se intitulou "criança viada" é o exemplo mais didático que poderíamos ter da heteronormatividade. Ninguém acha problemático supor que uma criança seja hétero, que um menininho tenha uma namoradinha, mas, quando uma criança manifesta outro tipo de comportamento, sofre bullying e, muitas vezes, violências piores, seja em casa ou na escola. O tumblr de Iran Giusti é sobre isso, sobre o respeito às diferenças desde cedo. O objetivo dos protestos nunca foi salvar as crianças de obras de arte "perversas"; apenas violentar tudo que remete à população LGBT.

Pouco depois dos ataques à exposição, em Jundiaí, uma decisão judicial impediu apresentações da peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu. Inúmeras obras de arte já foram feitas em cima de imagens religiosas, mas as que suscitaram protestos foram essas: Jesus na pele de uma atriz trans, e a obra de Fernando Baril, 

Cruzando Jesus Cristo com Deusa Schiva, em Queermuseu. Não é coincidência. Porque, assim como não estamos falando de arte, não estamos falando de religião. Estamos falando do país que mais mata transexuais no mundo, o país que agora voltou a permitir que se trate homossexualidade como doença num retrocesso de quase 30 anos, do país que joga às margens todas as suas minorias. Não estamos falando de arte, estamos falando de ódio.

JÚLIA DANTAS

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