terça-feira, 19 de setembro de 2017



19 DE SETEMBRO DE 2017
DAVID COIMBRA

Cachorros que não latem


Cachorro, aqui, não late. Aqui, que digo, são os Estados Unidos. Já desconfiava disso. Tive certeza quando o Tulio Milman veio me visitar, semana passada. Estávamos em uma mesa redonda do Maggiano?s, restaurante italiano do centro de Boston, quando o Tulio, casualmente, comentou:

- Cachorro americano não late...

Arregalei os olhos e, a dois decibéis do grito, exclamei:

- Pois não é que não late?!?

Foi importante essa informação, porque os cachorros da Nova Inglaterra eu já sabia que não latiam, mas o Tulio está morando na Filadélfia. Isto é: em outra região. Isso significa que não se trata de fenômeno local. Preciso, agora, perguntar ao Fetter, que está ainda mais ao Sul, em Orlando, se também lá os cães não ladram.

Bem. Neste momento, cabe uma explicação. Não é que os cachorros americanos sejam mudos; é que não se ouve o latido deles. O Tulio acredita que isso se deve à educação: os donos os ensinam a não latir, para não incomodar os vizinhos.

Será possível tanta disciplina? Um ser humano consegue ensinar seu cão a ficar quieto?

De qualquer forma, não se ouve latido algum, em momento algum do dia. Até porque não existem vira-latas vagabundeando pelas ruas. É espantoso. Em mais de três anos morando nos Estados Unidos, nunca vi um cachorro desacompanhado.

Outro dia, estava almoçando naquela cantina toscana em que vou sempre, quando o dono, o italiano Andrea, entrou esbaforido no lugar, anunciando:

- Chamem a polícia! Vi um cachorro sozinho ali do outro lado da rua.

Olhei para o Andrea. Achei que ele estava brincando. Mas, não. Não era brincadeira: ele não apenas queria chamar a polícia como chamou. Em dois minutos, chegou uma viatura no maior espalhafato com aquela sirene, e eles recolheram o solitário e perplexo cachorro. Esses caras não têm o que fazer, ponderei comigo mesmo.

Para mim, o cachorro tornou-se critério para avaliar o nível de desenvolvimento de um lugar. É fácil. Basta fazer a pergunta: lá tem vira-lata? Se tiver, o lugar é subdesenvolvido.

Li uma vez, na National Geographic, que o vira-lata brasileiro foi considerado o animal mais inteligente do mundo. Esse galardão me encheu de orgulho. Porque o vira-lata é meio que um símbolo do que há de melhor no Brasil: a capacidade de improviso, a adaptação ao meio adverso, a flexibilidade.

O vira-lata, antes de tudo, é um forte.

Nós, pessoas brasileiras, também.

Agora mesmo, mês passado, quando estava no Brasil, vi muitos vira-latas pelas ruas, e os saudei em silêncio, como se reencontrasse velhos amigos.

E uma noite, quando acordei de súbito, fiquei quieto na cama, ouvindo o silêncio. Toda a cidade dormia, mas, de longe, bem longe, veio um som. Era um cachorro que latia em alguma rua distante. Prestei atenção naquele ruído entre nostálgico e melancólico, que ecoava pelo céu escuro de Porto Alegre. Pensei que um latido na madrugada seria algo impossível nos Estados Unidos, que aquele era um momento tipicamente brasileiro.

Imaginei o guaipequinha que latia. Devia ser meio bege, de pelo curto e tamanho médio. Devia ter os olhos pidões e o focinho magro. Devia estar provocando algum cachorro de pedigree que o encarava de trás das grades de uma boa casa de alvenaria. Devia ser um cachorro simpático, alegre, amigo dos guris da vizinhança. Pensar nesse pequeno brasileiro me fez sorrir e me deu certa preguiça. Então, virei de lado. Puxei o cobertor até a orelha. E, aos poucos, adormeci, enquanto o cãozinho latia lá longe, bem longe.

DAVID COIMBRA

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