segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016


29 de fevereiro de 2016 | N° 18460 
MARCELO CARNEIRO DA CUNHA

UM DOCE LAR CERCADO DE ZUMBIS


The Walking Dead está de volta, e com ela volta a nossa sensação de que o mundo é um lugar para ser apreciado nos poucos instantes em que ele nos permite algum tipo de descontração. Alexandria, o lar doce lar transformado em zona de guerra, precisa de quem o defenda. Quem vai lutar pelo seu lar, doce lar, é a questão. E a resposta é, nessa metade de temporada, todos.

Até agora havia essa dúvida. Os mauzinhos sobreviventes, Rick Grimes e sua gangue, ou os Alexandrinos bonzinhos e incapazes de se defender com a violência necessária? Quem seria a salvação do paraíso perdido e invadido por zumbis? O paralelo aqui parece claro. Rick e turma representam os Republicanos, os lobos do homem. Os Alexandrinos são Democratas até os dentes, sempre pensando em coisinhas como direitos humanos e igualdade, quando o momento pede mesmo é um bom tacape. TWD é paródia da política americana, ora vejam.

O que vemos é a união de todos na hora do tacape, e tacape é o que eles soltam à mancheia, no maior festival de zumbis sendo desconstruídos por humanos desde que surgiu TWD, com direito a uma grand finale com a utilização de bazucas. A Batalha de Alexandria é medieval, os humanos precisam retornar ao passado para terem algum futuro, e só a violência constrói. Os humanos, pra nossa sorte, vencem. Se não gostamos dos métodos, aprovamos o resultado. Agora, todos unidos, eles vão viver algum futuro, por algum tempo, o que é mais ou menos o que se pode esperar de um mundo apocalíptico que preste.

A temporada nos surpreende (über spoiler agora), com Michonne e Rick criando um momento beleza entre dois seres muito iguais. Rick e Daryl saem pelo mundo na procura de mantimentos, e encontram, ora vejam, Jesus. TWD, caros leitores, está sendo mais ela mesma do que nunca. Por isso mesmo, grudem, e não desgrudem.

Fica a dica.


29 de fevereiro de 2016 | N° 18460 
DAVID COIMBRA

Pensem no bem que o PT fez

Todos esses milhões, esses bilhões que regurgitam esgoto afora, nas operações anticorrupção, me deixam confuso. O que é muito dinheiro? O que é pouco. Já não sei mais. Sei o que é muito ou pouco PARA MIM. Mas para o apetite Deles?...

É tudo hiperbólico nesse sistema. Estamos diante da nossa pirâmide de Quéops, da nossa Basílica de São Pedro, da nossa Grande Muralha. Essa obra urdida nos últimos 14 anos talvez seja a maior operação político-criminosa da história da humanidade. Não é exagero. As confissões do marqueteiro João Santana e sua mulher expõem o que as pessoas, de certa forma, já intuíam: foi articulado um gigantesco e caudaloso esquema internacional de corrupção.

Santana e a mulher admitiram ter recebido pagamento saído do caixa 2 em lugares como Angola, Panamá e Venezuela. São países de regimes semelhantes ao brasileiro. Esse dinheiro entrou no caixa 2 a partir de obras tocadas pela empreiteira Odebrecht.

O ex-presidente Lula admite que visitou esses “países amigos” a fim de “abrir mercados” para a Odebrecht. A Odebrecht admite que pagou milhões ao ex-presidente Lula para que ele desse palestras nos países amigos, ensinando-os como salvar seus respectivos povos da fome. João Santana foi o marqueteiro deles todos: de Lula, de Dilma e dos dirigentes dos países amigos, quase todos pequenos ditadores, Stálins caboclos.

Ao mesmo tempo, surge a assombrosa história do sítio de Lula. A defesa de Lula diz que o filho de um amigo de Lula resolveu comprar o sítio para que Lula usasse. Só que Lula não sabia disso. Aí, a Odebrecht fez reformas no sítio. Só que Lula não sabia disso. A OAS fez a cozinha. Só que Lula não sabia disso. As coisas de Lula saíram do Planalto em caminhões de mudança e foram para o sítio. Só que Lula não sabia disso. Finalmente, a Oi instala ao lado do sítio uma grande antena. Só que Lula não tem celular.

Por favor!

Está tudo muito claro. Mas tenho de ressaltar: não sou desses indignados com a corrupção, a despeito de a corrupção ser digna de indignação. Sempre sublinhei que o maior problema desse governo foi não ter feito as reformas de que o Brasil necessita, mesmo tendo sido Lula uma espécie de rei por pelo menos por uma década.

Tampouco me agradam as alternativas que se apresentam ao PT, seja o amorfo PSDB, seja esquisitices como Bolsonaro ou o PSOL. Finalmente, reconheço que o brasileiro tem de fato uma cultura por demais flexível em relação à lei. Sempre houve algum tipo de contravenção em todos os estamentos da sociedade.

Mas não dessa dimensão.

Essa máquina intercontinental de uso do dinheiro público para manutenção no poder e de manutenção no poder para uso do dinheiro público é de uma sofisticação e de uma abrangência inéditas. É uma rede interconectada de governos, empresas, organizações supostamente sem fins lucrativos, escolas, universidades e até associações religiosas. Tudo liderado pelo Brasil.

Mais: tudo só tornado possível graças à boa vontade de milhões de mulheres e homens figadalmente honestos. Mais ainda: só tornado possível por existirem muitos outros milhões de mulheres e homens carentes das mínimas condições de vida decente.

É verdade que Lula ajudou a matar a fome de milhões. É verdade. E isso é muito importante. Um esquema desses só funciona baseado em algum mérito. O mérito de Lula e do PT foi dar um pouco de atenção a quem não ganhava nem olhar de pena.

É preciso entender por que um engenho de tal forma ramificado cresceu a esse ponto. Só vamos sair dessa se compreendermos como entramos nessa. Não vai adiantar apenas haver indignação. Há de haver reflexão e reconhecimento.




29 de fevereiro de 2016 | N° 18460 
L. F. VERISSIMO

29 de fevereiro

Jaguar é o mais famoso bissextino que existe, pelo menos para seus amigos e admiradores. Fiz uma pesquisa e descobri que, além do Jaguar, nasceram em 29 de fevereiro de 1932 só mais três pessoas que mereceram ser citadas pelo Google: Gene Golub, matemático, já falecido; Masten Gregory, automobilista, já falecido; e Reri Grist, soprano, ainda viva, todos os três americanos. Posso estar cometendo uma grande injustiça e apenas mostrando minha completa ignorância do mundo dos matemáticos, dos automobilistas e das sopranos, mas nunca ouvi falar de nenhum deles. (Cartas de protesto para a redação.) Já o Jaguar está lá: cartunista, brasileiro, vivo e conhecido.

Ser bissexto tem suas desvantagens – menos presentes de aniversário – e suas vantagens: só se fica mais velho de quatro em quatro anos. Inventaram um mês mais curto e um dia extra em certos fevereiros para alinhar o calendário gregoriano com o calendário lunar, ou coisa parecida, numa versão cósmica do jeitinho. 

Pessoas nascidas em 29 de fevereiro teriam poderes especiais ou características próprias, no caso do Jaguar seu talento incomum. Mas imagino que dois dias a menos e um eventual dia a mais em fevereiro devam causar problemas, por exemplo, para os astrólogos, que precisam encaixar os dias a menos e a mais em mapas astrais que não têm nada a ver com os volúveis calendários terrestres.

Já contei várias vezes que uma das coisas que eu fazia quando comecei no jornalismo era o horóscopo. Como era um iniciante numa redação sem muitos recursos, me botaram a fazer de tudo, inclusive astrologia amadora. Depois de um dia fazendo de tudo, ainda precisava me concentrar em prever o futuro e orientar a vida profissional e sentimental das pessoas. 

Tinha pouco tempo e escrevia o que me vinha à cabeça, quase sempre apelando para o humor, e muitas vezes apenas trocando meus conselhos de um signo para outro, aproveitando para Sagitário o que no dia anterior servira para Leão, por exemplo. Na inocente suposição de que cada leitor só lê o que diz seu próprio signo. Mas todo mundo lê todo o horóscopo todos os dias. Aquele astrólogo metido a engraçadinho não podia durar muito tempo. Foi uma carreira curta.

Quer dizer: sei por experiência própria a confusão que os homens provocam entre os astros.

domingo, 28 de fevereiro de 2016


Ataque a Lula, Dilma e até Cunha

Vinicius Torres Freire
28/02/2016  02h00

Mais opções
Há semanas de guerra fria e de guerra quente nestes dois anos em que o país vem se desmilinguindo. A guerra quente recomeçou na semana passada; a que virá será também de tiro, pancada e bomba.

Há um rumor persistente, lá de Curitiba, a respeito de uma ofensiva policial maior contra Lula e família. Além do mais, o ex-presidente foi intimado a depor sobre sítio e tríplex no Ministério Público de São Paulo, na quinta-feira (3).

O governo terá de lidar com um PT que acaba de condenar o plano econômico de Dilma Rousseff (reforma da Previdência e contenção legal de gastos do governo). Sem o apoio do PT, vão-se alguns dos últimos fiapos de esperança de dar rumo ao governo da economia. A tentativa de Dilma 2 de assoviar e chupar cana, de satisfazer PT e o dito "mercado", não tem dado certo.

Os tiros contra o programa Dilma 2 tiveram o aval de Lula. As relações do ex-presidente com sua afilhada são descritas como "frias" no entorno luliano. Lula, de resto, voltou a dizer que quer ver pelas costas o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, "mole com a Polícia Federal".

O ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, foi triturado nas conversas da direção petista, reunida na sexta-feira (26) no Rio. O partido pregou o aprofundamento da política econômica dos anos Lula: o oposto do vago programa de Dilma 2.

Haverá o começo do estrebuchamento de Eduardo Cunha. Na quarta-feira (2), o Supremo Tribunal Federal deve transformar o presidente da Câmara em réu, acusado de receber propina do petrolão na Suíça. Quando se debate na lama em que atolou, Cunha espalha estilhaços.

Uma decisão crucial do Supremo na prática deve favorecer delações premiadas e um pique acelerado nesse jogo de denúncias. Condenados em segunda instância começam a cumprir pena na prisão, se for o caso, decidiu o STF faz dez dias.

Por acaso, nesses dias foi preso João Santana. A defesa do publicitário tem apertado o garrote de Marcelo Odebrecht: Santana troca suas penas por acusações à empreiteira. A perspectiva de cadeia pode revelar muito das relações da empresa com a campanha da reeleição de Dilma Rousseff.

Por falar em campanha, o TSE acaba de demandar investigações sobre empresas prestadoras de serviço para Dilma 2014, no mínimo outra fonte potencial de vazamentos sensacionais e convulsão político-policial.

Há rumores de mais escândalo em fundos de pensão e de mais batidas contra empresas acusadas de pagar propina para sonegar (Zelotes).

Na quinta, o IBGE divulga o crescimento do PIB em 2015. O anúncio não terá coisas boas nem coisas novas, uma recessão entre 3,5% e 4%, mas vai fazer manchetes ruins.

Apesar de a numeralha econômica do início do ano confirmar as previsões sombrias para 2016, há tímida melhoria de ânimo do consumidor. Não se entende bem o motivo, pois a inflação ainda está alta; emprego e renda baixam agora mais rápido. De qualquer modo, será difícil ver recuperação do prestígio da presidente, pelo menos enquanto durar essa temporada de guerra quente.

A Lava Jato faz dois anos no dia 17 de março, na mesma semana em que o PMDB pode tirar mais um pedaço do pé da canoa de Dilma Rousseff, ainda que alguns dos chefes do partido estejam quase afogados.

sábado, 27 de fevereiro de 2016



28 de fevereiro de 2016 | N° 18459 
MARTHA MEDEIROS

Olha eu sozinha aqui de novo

A sensação de conforto alivia, presta reverência a alguma fantasia, mas não muda muito. Uma falácia essa coisa chamada sucesso

Em 2003, a atriz Nicole Kidman ganhou o Oscar de melhor atriz. Ela subiu ao palco, fez seu agradecimento e em poucos segundos seu talento e elegância estavam sendo comentados em todos os sites. Foi a homenageada mais paparicada da noite. Bateu ponto nas festas pós-cerimônia e, quando tudo acabou, voltou para o hotel, ela e seu troféu que não falava, não fazia um carinho, não dizia eu te amo. Diz ela que naquela noite chorou tudo que tinha pra chorar e que nunca se sentiu tão sozinha. Enquanto isso, o mundo inteiro foi dormir com inveja do glamour da atriz.

Recentemente a cantora Zélia Duncan publicou um texto chamado “Suíte Solidão”, em que ela comenta a respeito de hotéis durante turnês: “Você acaba de ter uma alegria amplamente compartilhada e mergulha num “olha eu sozinha aqui de novo”.

Não sou Nicole, não sou Zélia, mas já vivi situações similares e confirmo: é o suprassumo da contradição. Lembro um dia em que participei de um evento numa cidade do interior do Rio. Fui hospedada no melhor hotel da região: um lugar lúgubre, cheio de corredores mal iluminados e com cheiro de mofo. A porta do meu quarto era de uma madeira encardida e o carpete tinha um aspecto suspeito. A única janela dava para o nada. Me disseram que um motorista viria me buscar às 18h e desejaram bom descanso. Eu tinha cinco horas livres para contracenar com o submundo da minha solidão.

Lá fora chovia a cântaros, pra deixar o cenário mais melancólico e inibir qualquer tentativa de passeio a pé pelas redondezas.

Não fui atrás de club sand- wich, de colega de infortúnio, de coisa nenhuma. Havia levado um livro em estado adiantado de leitura e em meia hora ele foi devorado. Fiquei então a olhar paredes, buscando resposta para uma pergunta simples: e agora? Tomei o segundo banho do dia para ter algo mais a fazer. Deitei. Olhei para o teto. Tudo ao meu redor tinha um tom sépia. As cortinas pesadas. O frigobar vazio. Tentei dormir. Se consegui, nem reparei.

Na hora combinada, fui até o lobby e alguém apareceu para me levar ao local do evento. Chegando lá, havia um auditório com capacidade para cerca de duas mil pessoas sem lugar vago para nem mais um ácaro. Fui recebida como se fosse a atriz protagonista da novela das nove. Cada palavra que eu disse foi similar a do Evangelho. Por uma hora e meia, não havia no universo ninguém mais importante do que eu. Nem Nicole Kidman.

Quando tudo terminou, fui devolvida àquele quarto asfixiante em que dormi feito uma indigente recolhida por caridade, e se fosse um cinco estrelas (quase sempre é), confidencio: a sensação de conforto alivia, presta reverência a alguma fantasia, mas não muda muito.

Olha eu sozinha aqui de novo. Uma falácia essa coisa chamada sucesso.



28 de fevereiro de 2016 | N° 18459 
ANTONIO PRATA

Mal ajambrados


O problema não era nas minhas costas, disse o médico, era na nossa espécie. Então tirou da estante um velho livro de anatomia e mostrou que a coluna e o abdome humanos haviam se desenvolvido durante milhões de anos para sustentar quadrúpedes, não bípedes. Acontece que lá nas savanas da África, num dia iluminado para o intelecto e aziago para a lombar, algum ancestral conseguiu se apoiar em duas pernas, posição que lhe permitiu enxergar mais longe e ter as mãos livres para construir ferramentas, fazer cafuné e jogar joquempô. 

A ereção do hominídeo impressionou muitíssimo as hominídeas do bando, que vieram todas correndo e gritando “Seus genes! Seus genes! Queremos espalhar seus genes!”, razão pela qual passamos a andar sobre duas pernas e a bufar com as mãos nas costas, per saecula saeculorum. O médico fechou o livro e me indicou um pilates.

Enquanto ergo lentamente o “core”, ao lado de mais seis ou sete entrevados bípedes que buscam, a duras penas, o fortalecimento torácico, sou tomado por um pensamento: e se, em vez de levantar, o macacão tivesse deitado? E se, em vez de passarmos de quatro para dois apoios, tivéssemos evoluído para nenhum? Ah, que futuro lindo nós perdemos! Em vez de andarmos envergados por aí, enfrentando passo a passo a inclemente gravidade, viveríamos nos arrastando ou rolando mundo afora, feito leões marinhos, feito morsas gordas e descansadas, sem jamais desconfiar que sob nosso adiposo sleeping-bag corporal haveria horrores chamados “lombar” ou “escoliose” ou “lordose” ou “hérnia de disco”.

Dizem os biólogos que o bipedalismo foi crucial para o desenvolvimento humano – e não me refiro só à pedra lascada, ao cafuné e ao joquempô. Tirar a fuça do chão e pôr os olhos no horizonte sentenciou a primazia da visão sobre o olfato, do intelecto sobre os instintos, da cultura sobre a natureza e daí pra escrevermos sonetos, inventarmos a pizza com borda recheada de Catupiry e projetarmos drones que entregam sonetos ou pizzas com borda recheada de Catupiry foi um pulo. Mas quem disse que, deitados, não poderíamos ir ainda mais longe – mesmo sem sair do lugar? 

Quem sabe o que teria acontecido se, em vez de Homo erectus, depois Homo sapiens e Homo sapiens sapiens, evoluíssemos para Homo statelatus, depois para o Homo statelatus sapiens e – por que não? –, Homo statelatus sapientisimus? Sim, pois se enxergar mais longe nos deu a chance de encontrar mais comida e mais comida resultou no aumento do nosso cérebro, imagina o tamanho da nossa cachola com todas as calorias economizadas em uma existência 100% horizontal. Seríamos hoje morsas cabeçudas discutindo física quântica e James Joyce com as panças esparramadas no chão?

Não há como saber. A biologia só consegue traçar o caminho percorrido, não os infinitos labirintos genéticos que deixamos de percorrer. Me resta apenas amaldiçoar o ancestral que primeiro se ergueu, fazer mais trinta segundos de “fortalecimento de oblíquo” e três séries de “abdominais laterais sobre a bola suíça”, a fim de ajudar minha mal ajambrada verticalidade a dar com menos dor os passos que lhe restam antes que um susto, uma bala ou os vícios me ponham, definitivamente, na horizontal.

ANTONIO PRATA É ESCRITOR, AUTOR DE MEIO INTELECTUAL, MEIO DE ESQUERDA (2010) E NU, DE BOTAS (2013). ESCREVE SEMANALMENTE NESTE CADERNO



28 de fevereiro de 2016 | N° 18459 
LUÍS AUGUSTO FISCHER

Samba-canção na antiga capital

Mais um grande livro de Ruy Castro, que depois de contar a história da Bossa Nova e a de Carmen Miranda – além de ter biografado Nelson Rodrigues e Garrincha, sempre em texto de alta qualidade – resolveu repassar o mundo do samba-canção, aquele gênero ou subgênero que floresceu entre o fim da II Guerra e do Estado Novo, 1945, e mais ou menos a chegada da Bossa Nova, ou das várias bossas novas que mudaram muito a cara do Brasil a partir de 1958.

O livro se chama A Noite do Meu Bem: a História e as Histórias do Samba-Canção (Cia. das Letras) e é muito bom de ler. Passeei por suas páginas sem pressa, querendo mesmo visitar aquele período que, segundo disse certa vez Robert Musil, é o mais obscuro da vida de qualquer um, a saber, aquele lapso de tempo que medeia entre os nossos 20 anos e os 20 anos de nossos pais.

A Noite do Meu Bem, bem, devo dizer com certo orgulho que sei de cor esse esplêndido samba-canção, de Dolores Duran, cuja história vem toda esmiuçada no livro. Ela é, de fato, uma das heroínas da narrativa: nascida e crescida pobre, tendo que abandonar os estudos antes do ginásio, virou uma intérprete e, mais ainda, uma compositora finíssima. Morreu antes de completar 30 anos.

O livro é uma coletânea de histórias, com um fio cronológico a dar certo ritmo para o conjunto. Há muita atenção para boates e restaurantes de Copacabana e arredores, com detalhes até cansativos, de vez em quando, sobre quem era dono de qual, quem vendeu e quem comprou, o pianista que saiu desta para aquela, etc. Mas no conjunto leva-se também essas informações na boa, pelo talento narrativo do autor e pelo interesse que sabe dar às informações que coleta.

Os marcos cronológicos do livro são diretamente ligados ao mundo da política. Tudo começa em 1946, quando o presidente Dutra baixou um decreto fechando e proibindo os cassinos. E era neles que havia se desenvolvido a geração anterior, ao menos na camada “Brasil para turista”, como Carmen Miranda. Bloqueada esta via, sugere o autor, entram em cena as boates, onde também haveria muita música, mas muito mais discreta – nada de orquestras grandes, cenários com cascatas ou grandiloquência, tudo de conjuntos mais jazzísticos, em espaços bem pequenos, tudo a meia-voz.

E tudo termina em torno de 1960, quando Brasília é inaugurada e o Rio deixa de ser a capital do país, condição que havia mantido por dois séculos. (Dois séculos não são uma improvisação; Brasília era e é uma eterna improvisação, que nos custa os tubos.) A era do samba-canção é a segunda grande geração do rádio – aquela que pegou já a gravação em alta-fidelidade e uma notável melhoria na qualidade das transmissões radiofônicas, tudo antes da televisão. 

Justamente a grande atmosfera das boates e de toda a indústria do disco em torno do samba-canção teve a ver com o mix de cidade cosmopolita, noite bem servida por bebidas e comidas, talentos musicais em todos os metiês e, não menos, o poder, econômico e político, que estavam concentrados ainda no Rio – São Paulo, para quem está chegando agora na conversa, só se tornou uma cidade culturalmente forte depois disso.

Para meu gosto, há uma grande escorregada no livro todo, que não macula sua qualidade geral. O problema é um baixo- contínuo que tantas vezes me incomoda em textos de cariocas narcisistas, sejam eles nativos ou adotivos: a certeza de que o Rio é a melhor cidade do mundo, e só os parvos não percebem isso. Isso nunca é dito de peito aberto, claro. 

Mas numa passagem se pode ler uma expressão torta dessa convicção: ao evocar a mudança de capital para Brasília, diz Ruy Castro que “o Rio habituara-se a espalhar generosamente entre pessoas e instituições de outros estados benesses que, pelo menos em parte, poderiam ter ficado pela cidade mesmo”, de forma que, “até por isso, o Rio deveria receber vastas compensações do governo federal”.

Essa é uma opinião que tromba com os fatos, os singelos fatos econômicos, desde o tempo do Império. O espaço não permite desenvolver essa conversa, mas os historiadores – sugiro o novo e ótimo livro de Jorge Caldeira com a biografia Júlio Mesquita e Seu Tempo, editora Mameluco – apontam claramente para o duro fato de que o Rio, como Capital, teve imensas vantagens ao longo do tempo, sugando a riqueza produzida em várias províncias em benefício das classes confortáveis ali instaladas.

Mas ok, foi no Rio que Dolores Duran criou sua obra, devidamente reposta no belo livro de Ruy Castro.



28 de fevereiro de 2016 | N° 18459 
DAVID COIMBRA

O amor por Gabriela

Acho que amo Gabriela Pugliesi.

Não sabe quem é? Vá ao Google. Também amo o Google.


Não é a primeira mulher que não conheço pessoalmente que amo. A única de quem levei retrato na carteira, para admirá-la onde estivesse e de seus olhos d’água retirar consolo quando precisasse, a única foi a inglesa Jacqueline Bisset. Mas por motivos diferentes do meu afeto por Gabi. Bisset tinha a sua volta uma aragem de tristeza que me comovia. Ela era uma mulher que não ria. No máximo, sorria com condescendência das ridicularias masculinas.

Naquele tempo eu era mais iludido com as mulheres. Hoje continuo iludido, mas nem tanto. Hoje sei que muitas mulheres não riem porque não entenderam a piada.

Com Gabriela não me iludo. Gabriela é um animal dos trópicos. Da areia e do mar. Sua pele e seus cabelos são da cor do ouro que o sol neles derrama todos os dias. O brilho de seus dentes ofusca, tão brancos são. Tudo nela grita: é verão! Verão, verão!

Com Gabriela, a temperatura sempre tem dois dígitos.

O corpo irretorquível de Gabriela nunca foi coberto por mais de 28 centímetros de tecido. Seus shorts são menores do que os das alunas do Anchieta.

Verdade que ela tem tatuagens em demasia. Não precisava tanto. Só aquela na coxa. Mas o abdômen minimalista compensa o excesso de decoração epidérmica. O abdômen de Gabriela, se você lhe bater com o dedo, quebrará o dedo. Adeus, falange. Adeus, falanginha. Adeus, falangeta. É um abdômen pétreo, construído em camadas, como um Lego. O médico que deu o nó no umbigo de Gabriela não é um médico, é um Michelângelo.

O que Gabriela faz da vida? Nada.

Ou, antes: tudo. Gabriela cuida de seu corpo, que é o melhor que poderia fazer. Pratica exercícios com a máxima concentração, alimenta-se com frugalidades, ri, salta na areia, roça-se com o namorado.

Sim, Gabriela tem namorado, e isso não me traz dor. Ao contrário: traz regozijo. Como poderia Gabriela não ter namorado? A lógica estaria corrompida, se não tivesse.

Gabriela, repito, tem namorado, ou marido, sei lá, e volta e meia aparece pendurada em seu pescoço. Pouco importa para o que sinto. Para o que sinto, importa é o que Gabriela representa: a alegria de viver.

Para Gabriela, tudo está e estará sempre bem. Ela só precisa de um vasto mar azul, trilhões de grãos de areia branca e quase nenhuma roupa. E, claro, algumas dezenas de abdominais.

O que ela pensa? Qual a sua opinião sobre a corrupção, o governo do PT, o desastre da Samarco, a alta do dólar, o zika vírus, a homofobia, os preconceitos, o racismo? Não sei, nem quero saber. Se Gabriela militar em algo, se fizer desabafos no Facebook, se estiver revoltada com seja lá o que for, deixarei de amá-la. Estou farto de opiniões definitivas.

Para Gabriela, basta existir, respirar e pisar na carne do mundo. Como aquela nuvem solitária que navega no céu de azul profundo da Nova Inglaterra, como um colibri beijando uma flor no sul do Brasil, como o gato que caminha com elegância felina sobre a calha da casa, como uma grande árvore que lança os braços verdes ao firmamento. Assim são as boas e eternas coisas da vida. Elas são. Por que se há de querer mais?


28 de fevereiro de 2016 | N° 18459 
L. F. VERISSIMO

Scliar


Convidado pela Casa do Saber, do Rio, para participar de uma homenagem ao Moacyr Scliar, nos cinco anos da sua morte, e não querendo apenas falar do prazer e do privilégio de ter sido seu amigo, fui atrás de um texto do Saul Bellow que me lembrava de ter lido, sobre o judeu como inventor de parábolas didáticas, o que o Scliar fez sua vida inteira, disfarçando-as com a realidade e com a fantasia. 

Segundo Bellow, nas histórias da tradição judaica, o mundo e até o universo têm um sentido humano. A imaginação judaica já foi inclusive acusada de sobre-humanizar tudo, de supervalorizar o humano e atribuir a tudo significados demais. Para alguns, o próprio cristianismo seria uma criação de contadores de histórias judeus, festejando a vitória de cristãos oprimidos sobre os opressores, na sua origem.

Bellow conta que seu pai tinha sempre uma história pronta para qualquer questão, moral ou corriqueira. Todas as respostas começavam como uma história. “Havia um certo homem que morava....”, “Uma viúva e sua filha...”, “Um cavaleiro vinha por uma estrada na floresta...”. A história que Bellow mais gostava era a do lenhador que saía de casa para juntar lenha na floresta e, na hora de voltar para casa, tinha juntado tanta lenha, que não conseguia levantar sua carga. 

Depois de praguejar contra a sua própria velhice e sua falta de força, o lenhador pedira a Deus que mandasse a morte buscá-lo, pois era um homem imprestável. E Deus apiedou-se do lenhador e mandou o Anjo da Morte para buscá-lo, e o lenhador pediu para o Anjo ajudá-lo a levar a lenha para casa e depois dispensou-o, dizendo que mudara de ideia e não queria mais morrer. O que provava, para o pai de Bellow, que ninguém está realmente pronto para morrer.

A parábola do lenhador, que Bellow lembra como exemplo de uma história tipicamente judaica, poderia ter sido inventada pelo Scliar. Nela há a tragédia da condição humana, da velhice, da revolta contra um destino irremediável, e o humor do desenlace, em que o Anjo da Morte é desviado da sua função e posto a trabalhar. Em toda a obra do Scliar, há essa mistura do trágico e do cômico, ou do trágico redimido pelo cômico. 

Em alguns casos, o humor judeu existe apenas para estabelecer uma ideia de equilíbrio e sanidade num mundo maluco. Mas quase sempre o humor judaico é misterioso e impossível de ser analisado, até por gente como Sigmund Freud, segundo Bellow. Alguém já argumentou que o riso, um senso cômico da vida, pode ser visto como prova da existência de Deus. A existência seria engraçada demais para não ter uma causa mais alta. O ateu Scliar responderia que a ideia de um deus piadista é que é muito engraçada.

Bellow diz que a experiência do gueto, da vida confinada, longe de produzir um sentimento claustrofóbico, abre a imaginação para o alto e para o mundo fora dos limites. Scliar é o produto de um gueto, o Bairro Bom Fim de Porto Alegre, em que nunca, que eu saiba, houve um pogrom. Se sua experiência fosse a de um gueto como o de Varsóvia, suas histórias seriam outras, ainda dentro da tradição judaica, e sua imaginação mais trágica e menos livre. 

Para nossa felicidade como leitores, o gueto que formou sua imaginação foi o de Porto Alegre. O mundo e o universo vistos de lá eram muito maiores e mais humanos, o Bom Fim literalmente não tinha fim.



RUTH DE AQUINO
26/02/2016 - 19h55 - Atualizado 26/02/2016 19h55

A culpa da branca Fernanda Torres

Um texto pró-homem despertou uma ira desproporcional, febril e típica da chatice correta que nos assola


Sim, você tem mais o que fazer do que acompanhar esse mi-mi-mi contra a opinião da Fernanda Torres sobre machistas, feministas, fiu-fius, mulatas e babás. Um texto, digamos, pró-homem, sumo pecado, em que ela inveja a leveza e o companheirismo masculinos e em que exercita o “livre-pensar”. Livre? Intitulado “Mulher”, no blog #agoraéquesãoelas da Folha de S.Paulo, o texto despertou uma ira uterina desproporcional, febril e típica da chatice correta que nos assola. O pau comeu.

Era um texto transgênero, em que a atriz se mete à vontade numa calça comprida e coça o saco (“machista!”). Um texto transocial, em que ela demonstra ternura por sua babá-mãe e admiração por ser ela um avião de mulher (“elitista e fascista!”). Um texto transracial em que ela fala a palavra proibida: mulata (“branca racista!”). Um texto transerótico, em que ela admite adorar flertes e assobios (“apologista do estupro!”). Um texto transgressor. Não pode, Fernanda. O livre-pensar é só para homens como o que você se orgulha de ter conhecido, o Millôr, que escrevia que “é porque quase todos agimos com muita cautela que uns poucos podem ser audaciosos”.

Fernanda escreveu um texto audacioso sobre a diversidade e as amarras mentais das mulheres. Com provocações, ironias, licenças poéticas e reminiscências. A camarada Fernanda foi tão massacrada que se apressou a escrever outro texto, “Mea-culpa”, em que pede perdão, contrita e arrependida. Fez isso com elegância, antes que virasse o Salman Rushdie das redes sociais de saia e fosse condenada à morte sumariamente pelos tribunais feministas na véspera do Dia Internacional da Mulher.

O Ancelmo Gois pode fazer um concurso em sua coluna, no jornal O Globo, chamado A mulata do Gois, que se baseia sobretudo em atributos físicos – e não é crucificado por isso. Mas você, Fernanda, é mulher, branquela e celebridade. Não pode elogiar a lindeza de nossas mulatas, especialmente de sua babá Irene, porque você é a patroa opressora. Se você fosse loura, Fernanda, a patrulha seria ainda pior. Será que as mulatas que desfilam e sambam no Carnaval são alienadas socialmente como você, Fernanda, e não entendem que estão servindo à “supremacia branca, rica, escravocrata e machista” ao andar seminuas ou peladas? Elas incitam ao estupro? Vamos cobrir de burca as mulatas indecentes e as louras burras, porque despertam os instintos mais baixos dos machos.

Em seu “Mea-culpa”, Fernanda diz que as críticas a ela procedem e confessa ter escrito “do ponto de vista de uma mulher branca de classe média”. O que ela é. Estou curiosa para ler os próximos textos de Fernanda, em que fará piruetas mentais para escrever em primeira pessoa do ponto de vista de uma mulher negra da favela. Claro que se pode escrever levando em conta todos os lados, todos os universos, todos os dramas sociais do Brasil... Só não dá para, numa crônica pessoal, roubar lembranças de alguém que não somos nós.

A polêmica contribui para a reflexão. Argumentos que colidem, com elegância, são salutares. Mas extrair trechos para tirar do contexto, distorcer e ignorar todo o resto, amarrar o autor no poste e linchar é um retrocesso. Chatíssimo, chauvinista, burro e fanático. Há enunciados de Fernanda bem interessantes. Um deles reproduzo abaixo. Eu também detesto a vitimização da mulher por ser um “falso machismo”, mais difícil de combater, aquele em que todos os homens são demônios e todas as mulheres umas santas. Não é a vagina ou o pau que formam um caráter.

“Estou certa de que essa é a minha primeira encarnação como mulher. Apesar do talento para ser mãe, sou menos feminina do que gostaria de ser. Já beirando a idade em que nos tornamos invisíveis ao peão da obra da esquina, rejeito as campanhas Anti-Fiu-Fiu e considero o flerte um estado de graça a ser preservado. A vitimização do discurso feminista me irrita mais do que o machismo. Fora as questões práticas e sociais, muitas vezes a dependência, a aceitação e a sujeição da mulher partem dela mesma. Reclamar do homem é inútil. Só a mulher tem o poder de se livrar das próprias amarras, para se tornar mais mulher do que jamais pensou ser.”

Fernanda não ofendeu ninguém. O que me ofende é o sorriso deslocado e tresloucado da Mônica Moura, mulher do marqueteiro de Lula e Dilma, ao ser presa, retrato do Brasil que bate abaixo da cintura. O que nos ofende é mulher de qualquer cor – preta, branca, marrom e amarela – ganhar menos pelo mesmo trabalho, não ter direito legal ao aborto com ou sem microcefalia, não ter creche para deixar o filho, ser espancada e assassinada por motivos passionais ou fúteis, ter tripla jornada de trabalho, ser estuprada e traficada. O resto é fru-fru, ferro e fogo, por favor, não me perdoem



27 de fevereiro de 2016 | N° 18458
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

EUFORIA PENALIZADA

A NÓS, TODO RECONHECIMENTO PARECERÁ JUSTO, MERECIDO E, COM BOA VONTADE, ATRASADO 

Não sei se ocorre com todo mundo, mas eu tenho, sem lembrança de ter mandado instalar, um calibrador de euforia excessiva. É um tipo sutil de alarme que desperta quando, por qualquer conquista, surge algum indício de soberba. Aos olhos dos outros, claro, porque a nós todo o reconhecimento parecerá sempre justo, merecido e, com alguma boa vontade, atrasado.

Aceitaria com maior conformismo o papel de um GPS moral, que, por caridade, tocasse um bip quando exagerássemos na dose da alegria, mas este sensor a que me refiro é mais cruel, porque pune sem advertência prévia, e deixa sempre uma sensação de culpa, que se arrasta como uma mortificação perpetuada na convivência com o fracasso punitivo.

E nem precisa ser mais paranoico do que a média para perceber que o sistema é caprichoso e implacável: lembro várias comemorações ou homenagens que foram ofuscadas pela percepção clara de alguma situação em que eu poderia ter feito mais ou melhor.

É presumível que alguém, trabalhando com alta complexidade, sem margem para nenhum tipo de erro, esteja mais exposto a estas intempéries, mas a desdita tinha de ocorrer sempre entre a data do anúncio e o dia da homenagem?

Há alguns anos, numa iniciativa do meu amado e saudoso Salimen Jr., do Jornal do Comercio, recebi a comunicação de que fora selecionado para receber o troféu Destaque em Ciência no RS daquele ano. Naquela tarde fiquei rindo sozinho. Na manhã do auspicioso dia, visitava a Lila, uma fofa carinhosa e sorridente, que se recuperava entusiasmada de um bem-sucedido transplante de pulmão esquerdo por enfisema. Quando anunciei os cuidados que deveria ter assim que saísse da UTI, ela me interrompeu: “Isso tudo, a doutora Beatriz, que é meu anjo da guarda, já me alertou. Agora, venha cá e me abrace, porque daqui a pouco te chamam, tu sais correndo e eu fico sem!”.

Depois do abraço, do nada, a Lila teve uma hemorragia incontrolável e morreu. A broncoscopia post-mortem revelou que uma extensa necrose desfizera o implante do brônquio do doador, comunicando-o com a artéria pulmonar.

O longo trajeto entre a Santa Casa e a Fiergs pareceu curto para escorrer e secar as lágrimas. Cheguei em cima da hora. Os homenageados estavam alinhados no palco para a entrega das comendas. Encerrados os discursos, dispersamos. Ao descer do pódio, fui interpelado por uma repórter, morena, linda, e que ria não sei do quê: “Doutor, uma palavra, por favor. O senhor é um orgulho para nós, gaúchos. Qual é o seu sentimento diante do reconhecimento do Estado pela sua magnífica trajetória de vida?”.

“Eu trocaria todos os troféus passados, presentes e futuros pelo brônquio cicatrizado da Lila!”. “Ok. Muito obrigado... vamos agora ouvir... por favor, professor, professor!!”

Ninguém recuaria para explicar, mas ficou claro que, em cerimônias comemorativas, não cabem declarações intimistas. Voltei pensando na última advertência da Lila e arrasado porque nunca mais voltaria a abraçá-la. Este era o único sentimento no dia da homenagem. Exagerada homenagem.



27 de fevereiro de 2016 | N° 18458 
NÍLSON SOUZA

TALVEZ


Sou um velho jornalista que se esforça para não se tornar um jornalista velho. Pode parecer apenas um jogo de palavras, mas a colocação do adjetivo tem lá o seu sentido. Observem: comi um bom churrasco, comi um churrasco bom. Qual é o melhor? Bem, volto às minhas chinelas para comentar uma pergunta que me fazem todos os dias desde que a internet e as redes sociais entraram nas nossas vidas:

– Afinal, o jornal impresso vai mesmo acabar?

Antes de responder, reconto uma história do folclore chinês que li no jornal El País, da Espanha.

“Um dia, o cavalo de um camponês fugiu. Seu vizinho lhe disse:

– Que azar você teve!

O agricultor respondeu:

– Talvez.

No dia seguinte, o animal retornou acompanhado de cinco éguas. O homem voltou e o felicitou:

– Que sorte você teve!

O dono replicou:

– Talvez.

Pouco depois, o filho do camponês, que estava acostumado a montar a cavalo, caiu e quebrou uma perna. O amigo lhe comentou:

– Que azar você teve!

Este respondeu: – Talvez.

No dia seguinte, chegaram alguns oficiais do Exército querendo recrutar o moço para lutar na guerra, mas não puderam levá-lo porque estava com a perna quebrada. Então o vizinho exclamou:

– Que sorte você teve!

O pai repetiu:

– Talvez.”

E assim se poderia seguir indefinidamente para provar que nada é definitivo, mesmo quando uma tendência parece inexorável. Há quem deteste o “talvez”, por denotar indecisão e imobilismo. Mas o advérbio pode ser também uma manifestação de sabedoria, pois abre espaço para o imprevisível.

Talvez o jornal impresso acabe um dia, talvez não. Três anos atrás, foi divulgado um estudo da consultoria norte-americana Future Exploration Network, com uma tabela da morte do jornal de papel em diversos países. Para o Brasil, o ano fatídico é 2027. Mas, para os Estados Unidos, já é o ano que vem, 2017. Muitos jornais norte-americanos continuam rodando suas edições impressas. Como dizia um antigo treinador de futebol do nosso Estado, vamos ver...

Penso, então, que o jornal até pode acabar um dia, mas o jornalismo jamais acabará. Principalmente enquanto continuar contando boas e emblemáticas histórias, como essa do cauteloso chinês.



27 de fevereiro de 2016 | N° 18458 
DAVID COIMBRA

Chega de alienação


Agora, com o fim do Carnaval e a reabertura da temporada, o que espero é que o futebol não se contamine pelos humores da política. Deixem as paixões para governistas e oposicionistas. No futebol, o que se quer é a seriedade e a serenidade, a reflexão e a competência.

Porque, por favor!, esse povo só quer saber de política, política, política. Se o brasileiro usasse 10% do tempo que gasta discutindo política para pensar nos problemas do futebol, nossos times estariam em outra situação.

Mas, não. O brasileiro é um povo alienado. Seus interesses são eleições e debates no Congresso. O resto? É o resto. Política: o ópio do povo.

É a decadência dos tempos. São as novas gerações. Houve época em que discutíamos a escalação da Seleção Brasileira como hoje as pessoas discutem a formação do ministério. Aliás, foi isso que o técnico alegretense-comunista-botafoguense-gremista-jornalista João Saldanha mandou dizer para o presidente-general-ditador-gremista-bajeense Emílio Garrastazu Médici em 1969. Médici sugeriu que Saldanha convocasse o centroavante Dario, o Peito de Aço, para a Copa de 1970. Saldanha tascou:

– O presidente nunca me ouviu quando escalou o ministério. Por que diabos eu teria que ouvi-lo agora para escalar a Seleção?

Dizem que foi por essa frase que Saldanha perdeu o cargo. Não foi só por isso. Ele já havia arrumado uma fieira de problemas com dirigentes e jogadores. Um deles com, imagine, Pelé. Saldanha dizia que Pelé sofria de problemas graves de visão. “O negão está ficando cego”, chegou a confidenciar a amigos. Há quem suspeite de que se tratava de uma preparação para o corte de Pelé. Se era, felizmente Saldanha foi cortado antes.

Mas o que interessa nessa história é mostrar que o que motivava o brasileiro, naqueles anos dourados, era o futebol. E tínhamos Pelé e Tostão, e a gurizada cantava uma paródia de Criança Feliz pelas ruas:

Se eu fosse o Pelé

Tomava café

Se eu fosse o Tostão

Tirava o calção

Quer maior expressão de brasilidade?

Mas não eram apenas as crianças. Os melhores compositores se debruçavam sobre o futebol para fazer suas canções. O sambista Luiz Américo foi autor de um dos grandes versos do cancioneiro popular. O seguinte:

Bateu o leiteiro na porta

E gritou bom dia

As luzes já se apagaram

Só não vejo Maria

Uma delicada poesia a respeito de um homem que, por amor, aceita até a traição da mulher amada, apesar da advertência dos amigos. Sim, porque, a folhas tantas, Luiz Américo confessa:

Os meus amigos me falam:

“Esquece a Maria

Ela nasceu com o samba

Ela é da folia”

Às vezes chego a pensar que é pura verdade

Mas, se ela demora a voltar, esqueço a realidade

Eis a paixão vencendo o intelecto. Como sempre.

Mas o que queria falar, acerca de Luiz Américo, é que seu maior sucesso foi, justamente, um samba em que ele debate a escalação da Seleção que disputaria a Copa de 1974. Camisa 10 é o título, em referência à falta que o time já sentia de Pelé. Na letra, o compositor aconselha o treinador:

“Desculpa, seu Zagallo, mexe nesse time que tá muito fraco”.

E depois cita alguns jogadores da época: Flecha, ponta que, junto com o volante Ivo, foi trocado pelo Grêmio por Tarciso, depois chamado de Flecha Negra; Jairzinho, o Furacão da Copa de 1970; Rivellino, o Garoto do Parque, o Patada Atômica, o melhor de todos depois do melhor de todos, Pelé; Luizão Pereira e Leão, ambos da Academia do Palmeiras; Palhinha, do Cruzeiro, que calçava 37 e meio, só usava chuteiras feitas na Europa e que, apesar do cabelo à escovinha, era o último a sair do vestiário, porque ficava se penteando.

Jogadores! Nós cantávamos jogadores! Nós éramos campeões! Hoje, só queremos discutir Dilmas, Lulas, Aécios, Fernandos Henriques, Cunhas. Por isso estamos assim. Quando voltaremos a ser brasileiros?


27 de fevereiro de 2016 | N° 18458
O PRAZER DAS PALAVRAS | Cláudio Moreno

Antes do sol nascer


CONHEÇA A REGRA (não gramatical) que surgiu da intenção de um sistema lógico

Dona Lia, uma gaúcha gentil que mora em Florianópolis, escreve para tecer comentários elogiosos a esta coluna e aproveita a viagem para dizer que estranhou uma construção que empreguei um dia desses – “O fato da maioria falar assim não justifica...”. Diz ela: “Aprendi que nesse caso e semelhantes, não se pode fazer a combinação da preposição de com o artigo a; eu escreveria o fato de a maioria falar assim... Estou certa ou estou errada?”.

Olha, dona Lia, a regra a que a senhora se refere é uma regra pedagógica (não gramatical) de meados do séc. 19, difundida por nomes importantes como Eduardo Carlos Pereira e repetida por muitos autores depois dele. Nosso idioma passava por um período em que pontificavam autoridades sem formação linguística científica, que imaginavam que a linguagem deveria ser um “sistema lógico”. Essa foi a mesma atitude equivocada que tentou, por exemplo, condenar a dupla negação como agramatical, desconhecendo que essa é uma maneira normal – em alguns casos, inclusive, obrigatória – de reforçar a negação (por exemplo, não podemos usar nada se não houver uma palavra negativa anterior: não ganhei nada).

Confundindo a análise lógica com a análise sintática e fonética, esses autores condenavam frases como “na hora do papai chegar” alegando que papai, que é o sujeito do verbo, não poderia vir regido pela preposição de e que, por isso, deveríamos manter o artigo separado (“na hora de o papai chegar”). Ora, autores da importância de Evanildo Bechara e Celso Pedro Luft apontam o equívoco dos gramáticos de antanho: isso nada tem a ver com subordinação sintática; a sequência de + o se transforma em do por um processo meramente fonético que recebe o nome de elisão. E tem mais: como já notou Sousa da Silveira, na fala essa elisão é obrigatória – não me vá algum incauto pronunciar a preposição separada do pronome, porque tamanho disparate nunca se viu no vernáculo.

Na escrita, essa elisão foi praticada pelos melhores autores de nosso idioma: “São horas da baronesa dar o seu passeio pela chácara” (Machado). “Antes dele avistar o palácio de Porto Alvo” (Camilo). “Sabia-o antes do caso suceder” (Herculano). “Antes do sol nascer, já era nascido” (Padre Vieira). “Apesar das couves serem uma só das muitas espécies de legumes” (Rui Barbosa). Fica evidente que por séculos esta era uma construção correta, antes que alguém tentasse impor uma restrição quanto a ela, certamente levado por um raciocínio equivocado.

Infelizmente, a imprensa foi mordida pelo mosquito e passou a separar sistematicamente a preposição do artigo, dando a aparência de obrigatória a uma regra que Cegalla, na mosca, classifica de uma “inovação ao arrepio da tradição da língua”. O uso, porém, ficou tão generalizado que não se pode mais considerar errada esta construção, apesar do que ela tem de artificial e malsoante. Acerta, portanto, quem mantém a preposição separada, e acerta quem faz a elisão com o artigo ou o pronome. Como podem ver pelo título desta coluna, este é o meu caso – muito faceiro, aqui, de braço dado com o padre Vieira e com Machado de Assis.

A partir de 10 de março, Cláudio Moreno, escritor e professor, passa a escrever quinzenalmente às quintas-feiras.


27 de fevereiro de 2016 | N° 18458 
CLÁUDIA LAITANO

Vai ter shortinho sim


A ministra Cármen Lúcia Rocha, 61 anos, foi a primeira mulher a usar calças compridas no Supremo Tribunal Federal, em 2007. Ellen Gracie Northfleet, 68, que se tornou a primeira mulher a integrar o STF, em 2000 – 110 anos depois da criação do tribunal –, nunca entrou de calças no plenário.

Nesse debate, como em outros desse tipo, há um valor de face – a calça, proibida na Corte até 2000 – e um subtexto – a histórica sub-representação feminina no Judiciário. Tenho uma filha de 17 anos que, na segunda-feira, começa o curso de Direito na UFRGS. Gosto de imaginar que, quando ela tiver a idade da ministra, o STF terá mais mulheres. 

Se isso acontecer, terá sido graças a desbravadoras como Ellen Gracie, Cármen Lúcia, Rosa Weber e, por aqui, Maria Berenice Dias – que, anos antes de contrariar o senso comum ao tornar-se a primeira desembargadora do Estado, havia se rebelado contra o comprimento das saias das normalistas no Instituto de Educação.

Cada nova geração de mulheres escolhe suas causas e avança um pouco mais na luta pela igualdade. E isso não acontece sem alguma desobediência às convenções vigentes. A chegada de Ellen Gracie ao STF foi uma grande conquista, mas foi preciso uma mulher um pouco mais nova para que a calça comprida também chegasse lá. E assim, pouco a pouco, o que um dia foi natural vai se tornando ultrapassado e anacrônico. Como o espartilho e a proibição do voto.

O shortinho das meninas, como a calça das magistradas, é a face visível de uma discussão mais profunda. A campanha “vai ter shortinho sim”, das alunas do Anchieta, não é apenas uma atualização da velha briga sobre o comprimento das saias. Também não é um debate sobre o uso ou não de uniforme. O que está em discussão é o direito das alunas de questionarem não um uniforme, que não existe, mas o tratamento diferenciado dado a meninos e meninas em um contexto de suposta liberdade de escolhas, onde valem “combinações” e não regulamentos. 

Uma vez que as escolas permitem que os alunos escolham suas roupas – e as escolhas mais comuns são bermudas de praia e chinelos de dedo para eles e shortinhos para elas –, o rigor (ou falta de) deveria ser o mesmo para ambos os sexos. Não é o que acontece: meninos vão para a escola com cuecas aparecendo e havaianas, sem muitas cobranças sobre a adequação do figurino às convenções do ambiente – enquanto meninas ainda são convidadas a aprender matemática contando os centímetros dos shorts.

Em um país com taxas pornográficas de violência contra a mulher, as escolas fariam um grande serviço à civilização se, em vez de se preocuparem com as roupas que as meninas preferem, ajudassem os meninos a entender, desde cedo, que devem respeitar o sexo oposto independentemente do figurino.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016


Jaime Cimenti

Casal no restaurante

- Quem sabe tu larga essa praga desse celular, dá uma bicada na tua caipirinha e a gente conversa um pouco? - Para que falar desse jeito? É que eu estava respondendo uma mensagem tua, pedindo urgente o endereço do psicólogo. E tu, que estava grudada no celu até há pouco? Quem falando?

- Tava falando com a tua mãe, se tu quer saber. Tu não liga para ela e aí ela me liga toda hora. De mais a mais, tu podia me mandar o contato do terapeuta depois da janta, não era tão urgente assim.
- Não sei por que tanta irritação. Qual o problema de um casal antigo estar num restaurante, falando ou clicando nos celulares, enquanto aguarda a comida? Saco, parece coisa de politicamente correto.
- Bom, ao menos agora a gente está conversando, até se olhando olho no olho.

- Isso, estamos conversando sobre a falta de conversa que o celular anda causando. Já é um tema de conversa. Já é alguma coisa. Tu tem algum outro assunto?

- Engraçadinho. Fica brincando com coisa séria. Quem sabe tu amadurece um pouco, aprende a conversar. A propósito, queria te falar do problema aquele do vazamento da área de serviço. O cara marcou e não apareceu.

- Vou ter que ligar de novo. Tu já poderias ter ligado, não é? Tudo bem. Mas não vamos nos estressar. Toma aí tua cerveja. Ah, ainda bem, chegou o filé da casa, para duas pessoas, com ovos, fritas, arroz, feijão mexido, salada, aipim, polenta e batata doce assada. - Legal, esse prato, essa quantidade e o preço. Relação custo-benefício excelente. Parabéns pela escolha, de vez em quando tu dás uma dentro!

- Gracinha. Melhor a gente comer quieto, se concentrar, mastigar duzentas vezes tipo velhos macrobióticos, que aí engordamos menos. Nem ia falar de novo nesse assuntozinho. Casal de peso.
- É isso aí, melhor olhar a comida, comer com os olhos, curtir o visual dela, pegar e largar os talheres várias vezes, fechar os olhos, agradecer a Deus pelo alimento, meditar alguns momentos e pensar que cada refeição é um ritual importante para nossa vida, uma ocasião única, um encontro com as forças da natureza, uma benção.

- Mas bah! Coisa linda. Conversa de domingo. Mas tu até tá certa. De vez em quando, tu diz algumas coisas com fundamento, não posso negar. Depois desses anos tu ainda me surpreende. Incrível!
- Tu também me surpreendes ainda. De vez em quando com alguma surpresa boa. Mas para de falar com a boca cheia.

- Boa comida. Não sei se não comi um pouco demais. Bom, amanhã a gente caminha para compensar.
- Acho que exagerei um pouco no arroz com feijão mexido. Paciência.
- Se quiser, Teca, pode falar no celular que eu deixo, não vou ficar com ciúmes.
- Vou aproveitar para ver umas mensagens que chegaram no whats. Vai ver tua mãe ligou de novo.
- Vou ver fotos que os do Grupo Homens com Hagazão mandaram...
- Garçom, de sobremesa, dois sagus grandes com creme de leite.
- Garçom, dois cafezinhos e a conta, por favor.

A propósito...

Quando os dois chegaram em casa, os filhos tinham saído e, aí, a Teca propôs que eles deixassem os celulares um em cima do outro, simbolicamente, na cama do quarto de hóspedes, para não atrapalhar os diálogos dos dois no quarto de casal. Ele, de início, achou a ideia meio estranha, mas topou. Não era a hora de contrariar e, no fundo, pensou que o lance era até simpático. A Teca ainda gostava dele, depois de décadas. Se era tara ou coisa assim, ninguém tinha nada a ver com isso. Coisas de casal.
Depois de alguns diálogos, acharam que os celulares estavam carentes e foram lá dar um carinho para eles.

Lançamentos

Rumo à vertigem ou a arte de naufragar-se (Ateliê Editorial, 184 páginas), de Wassily Chuck, poeta, engenheiro, filósofo e diplomata de carreira, com xilogravuras de Luise Weiss, traz bem elaborados e densos poemas que tratam de ventos, águas, mar, aves, Nova Iorque, ondas, vida, morte e do próprio fazer poético.

Um médico na floresta (Buqui, 128 páginas), do médico e professor Ronaldo André Poerschke, traz 42 crônicas sobre a rica experiência que o autor teve, em dois anos, em Assis Brasil, no alto do rio Acre, logo depois de formado. Local isolado pelas chuvas, lá até avião atolava. Foi um tempo inesquecível e bem relatado.

Pérolas de Pedro (Catarse, 112 páginas) tem crônicas dos professores Demétrio de Azeredo Soster e Fabiana Piccinin, com ilustrações de Gabriel Renner, sobre o convívio com o filho Pedro a partir de seus 4 anos. Perguntas, máximas, citações e outras joias da infância e do cotidiano das relações familiares estão na obra.


Jaime Cimenti

Diário de viagem, cultura pop e memórias
EDITORA NOVAS IDEIAS /DIVULGAÇÃO/JC
  
Tudo que um geek deve saber - uma incrível jornada épica entre RPG, jogos on-line e reinos imaginários (Editora Novo Conceito, 432 páginas, tradução de Ivar Panazzolo Júnior), do poeta, professor e jornalista norte-americano Ethan Gilsdorf, crítico de filmes, livros e restaurantes, autor de livros de viagens, arte e cultura pop e redator de manuais, é, antes de tudo, uma mistura, um cruzamento de O senhor dos anéis, de J.R.R. Tolkien, com On the road, de Jack Kerouac.

Gilsdorf publicou muitas histórias de viagens, arte e cultura pop no The New York Times, Boston Globe e Christian Science Monitor. Seus textos foram lidos em diversos jornais ao redor do mundo, como o National Geographic Traveler, Psychology Today, The San Francisco Chronicle, The Australian Financial Review, USA Today e Washington Post. Durante décadas, jogou religiosamente Dungeons & Dragons, jogo de narrativa épica contínua e alguns personagens com vidas intermináveis.

Na narrativa de Tudo o que um geek deve saber, Gilsdorf mostra uma jornada sem precedentes, que traz para a realidade a paixão pela fantasia e pelos jogos. Gilsdorf conta não somente sua história, mas a da cultura pop. Ele pegou a estrada para ir ao encontro de sua "família" e, no incrível tour, viaja para a cidade natal do criador de D&D, Gary Gygax, veste uma fantasia para participar de um RPG e usa trajes medievais para encenar uma guerra em um encontro de nerds.

Em meio à jornada, Gilsdorf visita as obras do castelo francês Guédelon, uma incrível fortaleza medieval que está sendo construída com os mesmos recursos utilizados no passado e viaja para a Nova Zelândia, onde conhece as locações das filmagens de O senhor dos anéis.

A narrativa mescla diário de viagem, análise da cultura pop e memórias do autor, que foi viciado no game Dungeons & Dragons, atravessa os Estados Unidos, o mundo e outros mundos! De Boston a Nova Zelândia, do Planeta Terra aos reinos de Azeroth, a odisseia pessoal, a crise medieval de meia-idade e a pesquisa de coisas malucas e estranhas dos nerds vai levando os leitores a uma viagem divertida ao coração da fantasia. O leitor vai saciar o desejo de ser diferente. A narrativa lembra O senhor dos anéis e On the road, o clássico de Jack Kerouac e não respeita limites geográficos e temporais. Imperam a fantasia e a liberdade.

Nas linhas finais, estão palavras de Frank Mentzer, mestre da Convenção de Jogos do Lago Genebra: "Vencer não é tudo. É a única opção", mas o que o D&D mostrou às pessoas é que a felicidade é a jornada, não o destino. Não é quem vence o jogo, é o que você faz durante a partida. E o jogo todo se transforma naquilo que você faz durante a partida". No fim da obra está um glossário de termos e abreviações para facilitar a leitura.


26 de fevereiro de 2016 | N° 18457 
DAVID COIMBRA

O shortinho das colegiais

Aescola tem de formar cidadãos, certo?

Errado. A escola tem de difundir o conhecimento.

Mas não é o que se espera, no Brasil.

Agora mesmo, alunas do Anchieta se rebelaram pelo direito de usar shortinhos três centímetros mais curtos do que o permitido pela escola. Não por pretenderem sensualizar, ressaltaram, mas porque sentem muito calor.

As novas gerações são calorentas, compreende-se. O que não se compreende é a comoção que o tamanho do shortinho causou no Estado. Importa-me muito mais o que é mais importante: quando as protestantes abordaram o currículo escolar. Elas defendem mais “educação social e política”.

Educação social e política? Já tivemos isso nas escolas. A disciplina se chamava, exatamente, Organização Social e Política do Brasil, o velho OSPB. Tínhamos, também, Moral e Cívica e Religião.

Era o ensino de “valores”. Não é o mesmo que a sociedade pede da escola hoje? “Valores”.

Naquele tempo, um dos valores que tentavam nos passar era o patriotismo. Num dia tão quente que faria as anchietanas irem para o colégio de fio dental, a professora nos obrigou a cantar o Hino Nacional tantas vezes, em posição de sentido, debaixo do sol, que passei mal e desmaiei.

E agora, no século 21? Que valores serão transmitidos a nossos efebos e cachopas? “Não nos falaram sobre as operações anticorrupção no Brasil”, questionaram as meninas do Anchieta. Sob que ponto de vista os professores abordarão a corrupção? O professor petista dirá que sempre se roubou no Brasil, que o brasileiro fura fila e altera nota fiscal, que é do brasileiro roubar. O professor antipetista dirá que uma quadrilha governa o país e que o PT tornou o roubo sistemático. Quem está certo? Quem tem os valores “certos”?

Essa história de valores não é só brasileira. É ocidental. Einstein, o gênio redescoberto, odiava a escola alemã exatamente porque era pouco “humana” e por demais centrada no conhecimento. Mas da escola alemã saíram, além do próprio Einstein, seus colegas Heisenberg, Niels Bohr, Von Braun e Max Planck, só para ficar em alguns da sua área e do seu tempo. Não fosse a exigente escola alemã, Einstein talvez tivesse se tornado sociólogo.

Enquanto o Ocidente se “humaniza”, o Oriente Longínquo se “desumaniza”. Até demais, reconheço: no Japão, o governo pediu que as universidades fechem as faculdades de ciências sociais e humanas. De 60 faculdades desta área, 30 deverão ser eliminadas nos próximos meses.

Já no Ensino Médio a concorrência é tão feroz, que o número de suicídios entre adolescentes explode nos três primeiros dias de setembro, no Arquipélago – são os dias da volta às aulas.

Estive na Coreia do Sul, visitei famílias “comuns” para ver como eles vivem. As crianças praticamente não têm infância. Depois da escola, passam as horas restantes do dia em cursos de inglês, matemática, línguas, ciências.

Sim, eles exageram. Mas no que resulta?

Bem, eu aqui vivo na cidade-sede da educação na América. São 55 universidades poderosas, entre elas Harvard, com seus 47 Prêmios Nobel, os gênios do MIT e a Boston University de Luther King. E o que se vê nos campi? Japoneses, coreanos e chineses. Estão tomando as universidades americanas, a ponto de o governo planejar o estabelecimento de cotas para LIMITAR o número de orientais nas faculdades.

Esses alunos de olhos amendoados buscam o conhecimento. Como os japoneses aprendem “valores” na escola? Ajudando a limpar os banheiros e a varrer as salas de aula. Que tal?

Valores são subprodutos do conhecimento. Se o estudante aprender sobre a democracia, por exemplo, saberá que esse não é um sistema em que todos podem tudo. Ao contrário: esse sistema só funciona a partir da lei.

Mas quem se interessa pela lei, no Brasil? O Brasil quer formar gerações de libertários. Está formando gerações de mimados.