quarta-feira, 30 de abril de 2014


30 de abril de 2014 | N° 17779
MARTHA MEDEIROS

O coletivo em chamas

Quando bem criança, eu ia de ônibus com minha mãe para o centro da cidade. Era uma aventura.

No colégio, voltava para casa de ônibus todas as manhãs. Aliás, na primeira excursão do colégio, fui com as colegas conhecer o Rio de Janeiro e lá nossa pequena “máfia” (Ana, Alice, Suzana, Anelise...) ia de Botafogo para Copacabana também de ônibus, escondidas das freiras – o máximo de rebeldia da nossa adolescência.

Meu primeiro namorado não tinha carro, ainda que tivesse habilitação: quando a saída não era a pé, era de ônibus. Íamos a um boteco, a um show, a um parque – de ônibus.

E muito viajei de ônibus para Torres, Florianópolis, Canela, Santana do Livramento, Montevidéu. Já fui até Salvador de ônibus, ida e volta. Eu não era pobre: era jovem.

Depois, surgiu o lotação, e com ele a promessa de maior conforto e agilidade: aderi. E hoje não uso mais uma coisa nem outra, me desloco de automóvel e táxi, mas nunca perdi o respeito pelo principal transporte público não só do Brasil, mas de todos os países, inclusive daqueles que possuem metrô há mais de cem anos, caso da Inglaterra e da Argentina.

Se a roda é o símbolo-mor da evolução da humanidade, o ônibus é sua representação mais significativa. Ele leva trabalhadores aos seus empregos, estudantes às suas escolas, torcedores aos estádios, possibilita que as pessoas se visitem em bairros e cidades distantes, faz a economia girar, põe a vida em movimento.

Todo mundo, absolutamente todo mundo precisa de um, ou precisa de alguém que utiliza um.

O mesmo “todo mundo” que come pão e toma leite diariamente, só que ninguém faz passeata contra o aumento do pão e do leite. No entanto, quando há aumento da tarifa de ônibus, para-se uma cidade. Revoltados, os manifestantes enfrentam policiais, quebram agências bancárias e incendeiam... ônibus? Logo os ônibus?

Qualquer vandalismo é um tiro no pé, já que a cidade é de todos, mas queimar ônibus desafia meu racionalismo, me deixa perplexa, principalmente pela frequência com que tem acontecido. Virou uma banalidade, já nem é mais um ato político. Dos motivos mais bobos, como no caso de o seu time ter perdido um jogo, até algo mais trágico e emocional, como um tio atropelado na estrada, parece que a única forma de protestar é riscar um fósforo e pronto, temos uma fogueira e um revide. Só que não se está falando de um artefato de papel.

Um ônibus é um bem enorme, pesado, robusto – e extremamente necessário na manhã seguinte. Um ônibus. Dois. Sete. Agora imagine 34 ônibus queimados de uma só vez, como aconteceu recentemente em Osasco, na grande São Paulo. Calcule o prejuízo não só para a empresa proprietária dos veículos, mas para a sociedade.

Não chegamos até aqui para voltar à pré-história.

30 de abril de 2014 | N° 17779
ARTIGOS - HENRY CHMELNITSKY*

Este desafio valerá a pena

O 1º de maio que se aproxima terá uma característica especial: estaremos a 42 dias do começo da Copa do Mundo no Brasil. A Fifa escolheu Porto Alegre como uma das sedes do maior evento esportivo do mundo por alguns motivos. Um deles é a hospitalidade com que os visitantes são recebidos na Capital. Outro é a qualidade dos bares, restaurantes e hotéis. A gentileza e a atenção se tornaram marcas registradas de nossa cidade, graças à atuação dos que atendem os turistas.

É para manter esta marca positiva que o esforço tem sido intenso para qualificar os trabalhadores do setor para um atendimento de excelência, não somente para os turistas, mas para quem é morador e frequenta os estabelecimentos da cidade. E, neste quesito, não é só o inglês que faz a diferença. A atenção, a simpatia e a eficiência durante o atendimento são responsáveis por cativar qualquer cliente.

O setor da hotelaria e gastronomia de Porto Alegre reúne mais de 100 mil pessoas, entre empregos diretos e indiretos. A responsabilidade é grande, mas o desafio vale a pena. Cumprir a missão de fazer com que os visitantes de outros Estados e países se sintam em casa será um golaço na trajetória que une empresários e colaboradores de cada estabelecimento. Ao final, teremos, todos nós, o trabalho reconhecido e aplaudido.

Nossa oportunidade é única, tem prazo de validade, mas gera a oportunidade do legado. Legado na melhoria dos serviços via qualificação e capacitação de nossa mão de obra, geração de renda, expansão do turismo e a descoberta de que Porto Alegre é uma cidade carismática, com história, uma forte atração cultural e belezas únicas, como o nosso pôr do sol, o Laçador e nossos parques.

Porto Alegre ganha a chance de se tornar um ponto obrigatório de visitas de brasileiros e estrangeiros depois da Copa. O cartão de apresentação da cidade será, mais uma vez, dado pelos envolvidos na nobre tarefa de atender bem. Os melhores cumprimentos e o reconhecimento pelo Dia do Trabalhador!


*Presidente do Sindicato da Hotelaria e Gastronomia de Porto Alegre (Sindpoa)

30 de abril de 2014 | N° 17779
OLHAR GLOBAL | Luiz Antônio Araujo

Mais do que selfies com banana, por favor

As mais recentes pesquisas de intenção de voto nas eleições para o Parlamento Europeu, a serem realizadas de 22 a 25 de maio, captam um fenômeno novo e, até certo ponto, histórico. Da Finlândia à Grécia, organizações de origens e perfis variados, mas que compartilham uma forte rejeição à imigração e um discurso abertamente racista parecem prontas a deixar a marginalidade política onde vegetaram nos últimos 25 anos e se tornar uma força decisiva em Estrasburgo.

O caso mais surpreendente é o da Grã-Bretanha, onde o Partido Independente (Ukip, em inglês) ostenta mais de 30% de intenção de voto na faixa mais convicta do eleitorado. Ontem, um candidato do Ukip foi obrigado a renunciar depois de sugerir que o comediante Lenny Henry voltasse para “um país de negros”.

Na França, a Frente Nacional (FN), de Marine Le Pen, que conquistou importantes prefeituras em cidades pequenas e médias no último pleito municipal, conquistaria, segundo as estimativas, 20 dos 74 assentos europeus a que o país tem direito. Na Dinamarca, um partido anti-imigrantes lidera as pesquisas com 27%. Na Áustria, o Partido da Liberdade, que foi um dia comandado pelo racista ex-governador da Caríntia Jörg Haider e hoje faz campanha contra a “islamização”, alcança 20%.

Embora a discriminação tenha uma longa história na Europa e nunca tenha deixado de ser popular, a bandeira mais vistosa desses partidos, todos situados à direita do arco político, é a campanha contra a participação na União Europeia. Enquanto o megainvestidor húngaro-americano George Soros diz em entrevista à mais recente edição da revista The New York Review of Books que “o euro veio para ficar”, a maioria dos cidadãos europeus vê o bloco como incapaz de oferecer mais do que soluções tecnocráticas para a crise econômica.


Até o momento, a extrema direita não esboçou uma política verdadeiramente europeia – a maioria desses partidos mira antes de tudo o poder doméstico. Mas, se acordarem em 26 de maio como segunda ou terceira força no Parlamento Europeu, terão de arcar com as novas responsabilidades. Diante disso, será preciso pensar em algo mais do que selfies com bananas nas redes sociais.

30 de abril de 2014 | N° 17779
PAULO SANT’ANA

Quem pariu esta Copa?

Leio que o governo federal confirma ações de incentivo à venda de carros, que caiu.

O governo, assim, quer jogar ainda mais carros nas cidades e estradas engarrafadas.

Desta forma, o governo tenta suprir a sua lamentável política de transporte de massas: se não tem metrô, então que se entupa a cidadania de carros, não importando os engarrafamentos, que só acontecem porque o governo não faz estradas suficientes e as cidades não constroem viadutos.

Tudo errado. Tudo no inverso. Para aflição das populações.

Leio também que os preparativos para a Olimpíada de 2016, no Rio de Janeiro, vão de mal a pior. Está tudo atrasado.

Pois o Brasil, que não tinha condições sequer para realizar a Copa do Mundo, vai se meter a besta e realizar também a Olimpíada.

Enquanto essa megalomania de grandes realizações é empreendida pelo Brasil, não há entre nós hospitais e sobram doentes, pelo que se multiplicam as doenças e as mortes por doenças.

Os bilhões que estão gastando e ainda vão gastar para a Copa e para a Olimpíada, além de ocasionarem ainda mais mortes por doenças e por fome no Brasil, não têm sentido algum: qual vai ser a vantagem do Brasil e seu povo em fazer a Copa e a Olimpíada em nosso território? Qual? Qual?

Puro exibicionismo de um país que está com seus fundilhos rasgados. E afeta riqueza que não tem.

Que ventre produziu tão feio parto?

Até mesmo os brasileiros que são apaixonados por futebol não concordam que se gastem essas centenas de bilhões de dólares que os governos estão gastando com a Copa e a Olimpíada.

Imaginem, então, como estão se sentindo os brasileiros que não gostam de futebol!

O Brasil só teria direito de realizar Copa e Olimpíada aqui se não houvesse filas de cirurgias e consultas pelo SUS, se não houvesse analfabetismo, se não houvesse fome.

Essa determinação de fazer a Copa do Mundo é um autoritarismo, imprimido pelo Lula e contra a vontade impotente da Dilma. Governo com duas cabeças só pode dar em tragédia.

Se o povo fosse consultado, não haveria Copa nem Olimpíada no Brasil.

Mas a democracia no Brasil consiste basicamente em o povo não ser consultado para nada.

É a única democracia sem consulta ao povo que funciona no planeta: aqui no Brasil.


Isto é uma barbaridade!!!

terça-feira, 29 de abril de 2014


29 de abril de 2014 | N° 17778
BRASIL

O PAÍS DAS BALAS PERDIDAS

Não passa dia sem que o Rio de Janeiro, vitrine do país, registre um caso de morte de cidadãos, atingidos pelas chamadas balas perdidas, invariavelmente resultantes de confrontos entre policiais e traficantes de drogas. No Rio, tais episódios ganham visibilidade porque as comunidades protestam, manifestantes queimam ônibus, trancam ruas e acabam virando notícia de primeira página.

Mas episódios semelhantes, e até piores, ocorrem em todas as cidades do Brasil, um país tomado pela criminalidade já por muitas décadas, a ponto de termos incorporado a violência no nosso cotidiano. Na antevéspera de mais um processo eleitoral, o tema da violência urbana tem que ser colocado entre as prioridades. Não é possível que o Brasil precise carregar esta chaga social como uma maldição irremovível.

Um aspecto particularmente preocupante é que, mesmo pagando cada vez mais impostos, usamos cada vez mais segurança privada. Vamos nos habituando também a viver atrás de grades, a ser cautelosos ao sair à rua à noite ou simplesmente a não sair mais, a ter o máximo de cuidado ao abrir o portão do prédio ou a porta da casa, a não estacionar fora de garagens. Serviços essenciais, como o comércio, começam a rever seus horários noturnos ou obrigam o cliente a ser atendido do lado de fora do estabelecimento.

Está cada vez mais perigoso sacar dinheiro de caixas eletrônicos, que são explodidas de forma rotineira, notadamente em comunidades do Interior, sem um número adequado de policiais para protegê-las, e onde também propriedades rurais estão mais vulneráveis. Até mesmo no transporte coletivo, usado rotineiramente por tantos brasileiros, crescem ameaças como as de incêndios criminosos, ordenados na maioria de dentro das penitenciárias por chefes de gangues que continuam a ordenar até toque de recolher nas comunidades, mesmo depois de condenados e encarcerados.

Infelizmente, a criminalidade se mantém por razões que começam na inação do poder público e se ampliam com a tendência de muitas pessoas deixarem por isso mesmo quando são roubadas, assaltadas ou agredidas. Assim como a violência se transformou, saindo do controle, também os organismos de segurança e os cidadãos precisam rever suas ações, tornando-as mais efetivas.

Aos cidadãos, restam as cobranças e iniciativas como a de massificar apelos como #EuNãoMereçoMorrerAssassinado, criado a partir da morte do bailarino Douglas Rafael da Silva Pereira, o DG, no Rio. Na verdade, ninguém deveria perder a vida desta forma. Mas quem precisa dar respostas efetivas para insanidades como balas perdidas é o poder público. E isso exige ações preventivas, qualificação das políticas e combate sem trégua ao narcotráfico, que é indissociável da criminalidade.

29 de abril de 2014 | N° 17778
PAULO SANT’ANA

O tarifaço

Arespeito do tarifaço inexplicável de cerca de 30% nas contas de luz, que assassina os orçamentos populares, transcrevo rapidamente por conter verdades profundas e narrar a odisseia por que passa um trabalhador: “Caro amigo, Paulo Sant’Ana, gostaria de te parabenizar pelo teu comentário sobre o aumento da energia elétrica feito no dia 26/04 na ‘Carta ao Amigo Júlio’.

Sou teu leitor desde que me conheço por gente, ou seja, uns 20 anos. Sou daqueles que começa a leitura na ZH de trás para frente. Tornei-me teu fã e admirador porque tu sempre estás do lado do povo, sempre ao lado dos mais fracos, tu és o nosso Santo das Causas Impossíveis, São Pablo. Sou um trabalhador, moro com minha esposa e minha filha de quatro meses, e nossa renda mensal fica em torno de R$ 2 mil.

Com esse valor, pagamos o nosso aluguel, nossa água, nossos impostos (IPTU, IPVA, ISS), nossa gasolina e a nossa conta de luz. Já trabalho 5 meses ao ano só para pagar impostos e agora vem mais aumento? Nossa conta de luz atualmente é de R$ 120,00, e com esse aumento absurdo de 30% vamos pagar R$ 156 . O governo está tirando da minha casa 18 litros de leite e 4 quilos de guisado por mês.

E, Paulo, o pobre faz milagre com 4 quilos de guisado. É macarrão, é polenta, é moranga, é guisado com batata. E esses 18 litros de leite são o consumo mensal de leite da minha filha. E agora vou ter que racionar a minha alimentação ou cortar mais gastos em casa, só porque o governo, por falta de planejamento, incompetência ou má vontade, não investiu no setor energético do país? E não sou apenas eu quem está indignado com essa exploração, em minha página no Facebook postei um protesto contra esse aumento e, em apenas 7 dias, obtive 8 mil compartilhamentos e 300 mil visualizações, mostrando que o povo gaúcho não aprovou este assalto!

Nós, gaúchos, não podemos aceitar passivamente um aumento como esse, após esses reajustes outros virão em efeito cascata, e o meu guisado também ficará mais caro. São Pablo, Santo das causas impossíveis, rogai por nós, trabalhadores, agora, nessa hora e sempre. Defenda-nos destes aproveitadores do povo. E uma pergunta que fica: será que estes já são os sinais dos altos gastos da Copa bilionária? Do jeito que está indo as coisas, vamos ter que voltar a tomar banho em sanga e usar lampião. (ass.) Márcio Lacerda, 35 anos, vigilante, Portão - RS”.

A divulgação do laudo cadavérico do menino Bernardo Boldrini confundiu a todos. Disse-se que não foi constatada qualquer quantidade de terra nos pulmões do garoto. E como poderia haver terra nos pulmões do menino se ele estava envolto num saco de plástico? Ora bolas...


O que queria se saber é se ele foi ou não enterrado vivo. E isso a notícia não esclareceu. Pelo contrário, confundiu.

29 de abril de 2014 | N° 17778
DAVID COIMBRA

Chega de cerveja de cereja

A todo momento lia algo do tipo: “Ulisses é um divisor de águas da literatura”.

“Ulisses foi o fim do romance, porque foi o auge do romance”.

Ulisses, Ulisses.

Ulisses, você sabe: o alentado e, como se vê, festejado romance do dublinense James Joyce. Existe até um dia de comemoração a Ulisses, o 16 de junho.

Era muita propaganda. Eu, na fosforescência dos meus vinte e poucos anos, estava ansioso por ler Ulisses e me cevar naquele marco do intelecto humano e aprender algo. Então, lutei como um tigre para amealhar alguns trocados e adquiri uma edição com tradução do Antônio Houaiss. Um volume poderoso. O chamado cartapácio. Como diziam que era um livro difícil, decidi enfrentá-lo em condições favoráveis: numa fresta tranquila do dia, numa poltrona tranquila da casa.

Foi uma decepção.

Só que não foi o livro que me decepcionou: decepcionei-me comigo mesmo. Como não conseguia gostar daquela obra-prima incensada por todos os sapientíssimos críticos literários? Não contei a ninguém que tinha detestado Ulisses. Se todos os inteligentes adoravam o romance, o fato de eu não ter gostado só podia significar o quanto era obtuso. Meus amigos da faculdade perguntavam se havia lido e eu tascava:

– É um divisor de águas da literatura. Foi o fim do romance, porque foi o auge do romance.

Na penumbra do meu quarto, porém, sozinho com meu travesseiro, suspirava: cara, a verdade crua e triste é que não gostei desse Ulisses.

Mais tarde, botei a culpa no tradutor. Antônio Houaiss é um cara que escreve “entrementes”. Um cara que escreve entrementes é, obviamente, chato. Aquele Antônio Houaiss pode muito bem servir para escrever dicionário, para dar aula de português, para discorrer sobre a sintaxe ou até para ser crítico de literatura, mas para fazer o leitor dançar com o texto, ah, não, isso não. Ritmo, entende? Faltava ritmo àquele Antônio Houaiss.

Foi um consolo, mas, outra vez no escuro do meu quarto, outra vez com as orelhas afundadas no travesseiro, me questionei: será que não sou eu o culpado? Será que não sou uma besta por não gostar de Ulisses?

É possível.

Em todo caso, meu amigo Ivan Pinheiro Machado me deu outra edição, com tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro. Eu aqui, na minha já comprovada ignorância, não sei quem é essa senhora, embora saiba que é, de fato, uma senhora, porque nenhuma garota se chamaria Bernardina no século 21. Bernardina é nome de vó. Minha vó, inclusive, se chamava Bernardina. Dona Dina, ela preferia. Mas, como dizia, não sei quem é Bernardina da Silveira Pinheiro, mas vou dar uma chance a ela. E a Joyce. E a mim mesmo. Logo estarei lendo Ulisses numa fresta tranquila do dia, numa poltrona tranquila da casa.

No entanto, mesmo que seja capturado por essa joia da literatura e passe a festejar o 16 de junho bebendo Guiness, a verdade é que James Joyce não facilitava as coisas para ninguém, ou eu não estaria fazendo todo esse arrazoado. Não, não, James Joyce tinha lá seus interesses elevados, que não necessariamente eram os mesmos do seu leitor, sobretudo de um leitor na cunha sul do Brasil. E com um tradutor como Antônio Houaiss, um homem que aparafusa um entrementes na frase sem nenhuma hesitação, ah, bem, então as coisas ficam realmente difíceis.

Se bem que admito não ser entusiasta de experimentalismos. Essas cervejas com gosto de erva mate, de beterraba ou de frutas vermelhas, essas cervejas temperadas com pimenta ou cravo, essas cervejas que estão na moda, por exemplo, não me seduzem. Nada disso. Prefiro o chope ortodoxo. A cerveja dourada. Gelada. Brasileira.


O texto também. O texto pode ser elegante, profundo, insinuante e também ser fácil. São os melhores textos, escritos por gente que cultiva a arte de fazer coisas difíceis parecerem fáceis. Edmund Wilson escrevia assim. Edmund Wilson era um Messi do texto. Messi encontra espaços no campo onde espaços não há. Aránguiz, o chileno do Inter, tem essa capacidade. Luan, o jovem do Grêmio, é igual. Não que os compare com Messi. Nem com Edmund Wilson. Comparo a qualidade que todos eles têm de ser simples. E ser simples é, simplesmente, bom.

29 de abril de 2014 | N° 17778
MARIO CORSO

O dono do mundo

Passeava com minha filha na Cidade Baixa e encontramos o dono do mundo. Pelo menos era o que ele gritava aos passantes, desde a calçada onde estava estirado: “O dono do mundo sou eu, não são os americanos, não são os japoneses, não são os alemães, eu sou o dono...” . Além de reclamar para si a posse do planeta, xingava todos, delimitando sonoramente seu reino. Passamos reto, pisando leve em seus domínios. Nós sabíamos do que se tratava, já trabalhamos com pessoas assim. Discutimos se ele estaria melhor num hospício.

A abertura dos manicômios trouxe para as ruas uma população que permanecia oculta. De uns anos para cá, aumentou o número de loucos de rua entre os mendigos habituais. Nossa reação automática é pensar que isso foi um erro, na rua eles estão sem ajuda, sem terapia, sem medicação. Estão misturados ao lixo, com que provavelmente estão identificados, ocupando um lugar de dejeto social.

O certo é que não estavam melhores antes, mesmo se internados numa das poucas boas instituições e se esse abrigo fosse dotado de bons profissionais. Os antigos manicômios eram museus de peças humanas falhadas, ocultas do nosso olhar. É duro reconhecer uma impotência, mas nós não temos uma resposta a não ser paliativa para certos desistentes da nossa sociedade. Nesses casos extremos, tratamentos que visem a abordagens corretivas são inúteis. Para ajudá-los, só nos resta acompanhá-los e tentar fazê-los sentir-se considerados, como outro cidadão qualquer.

Sua postura no mundo, sua doença – pessoalmente prefiro evitar essa palavra, pois não dá conta do problema – é recusá-lo em bloco. Eles desistiram de nós. Para tanto fundam um novo mundo, uma nova lógica. Nesse espaço imaginário, eles vencem. Querer convencê-los do contrário é tão contraproducente como impossível. É mais fácil convencer alguém são de que seria louco do que arranhar minimamente esses sistemas delirantes.

O único motivo para mantê-los institucionalizados seria para não tropeçarmos neles e nos deparar com as fronteiras sinistras da condição humana. A internação era boa para nós, pois a loucura nos constrange e desconcerta. Encerrados, eles definham ainda mais, são privados dos cenários do mundo e de nós. Eles não recusam nossa presença, é da nossa lógica que eles prescindem. Gostam de circular neste mundo, mesmo sabendo que perderam a guerra de impor seu sentido.


Se você duvida sobre minha opinião e testemunho (conheci muitos dos antigos hospícios), recomendo o livro Holocausto Brasileiro, de Daniela Arbex (Ed. Geração, 2013). Obra para estômagos fortes, conta histórias de internados. Esses mesmos que hoje estão nas ruas. Depois me diga o que é pior.

segunda-feira, 28 de abril de 2014


28 de abril de 2014 | N° 17777 LETICIA WIERZCHOWSKI

Da angústia

Numa caminhada vespertina, escutei de uma amiga querida e cheia de talento que a sua angústia era às vezes avassaladora. Confesso que me espantei (sou eu mesma, caros leitores, uma angustiada-mor) porque essa amiga sempre me pareceu uma flor de serenidade, e muitas vezes, subindo pelo teto do meu quarto, pensei nela como um ideal de equilíbrio a ser alcançado. Demos muitas voltas nós duas naquela caminhada, e não fizemos apenas as nossas pernas trabalharem.

Ora, todo o criativo é um ser angustiado por natureza. O ato de criar é em sua gênese um ato de não conformidade. Quando eu crio alguma coisa – seja um romance, uma música ou um vestido – é porque não estou satisfeito com aquilo que já existe e que se encontra ao meu alcance. Eu busco alguma coisa ainda não vislumbrada, e é a minha angústia com o que me rodeia, ou o meu olhar sobre essa angústia, que me faz ir em frente – ou seja, criar. Com os anos, aprendi a respeitar a angústia, pois ela me abre a porta das possibilidades.

A angústia é a mola propulsora da minha criatividade, o grande problema é lidar com ela. Quando fico muito tempo sem escrever, esse sentimento que serve como azeite para as minhas engrenagens mais profundas e impalpáveis, costuma vazar para outros espaços e, por vezes, causa os seus problemas – bem utilizada, correndo pelo cano do trabalho criativo, a minha velha angústia é como a água saindo pela torneira: é fundamental no meu dia a dia.

O problema é quando ela escapa da tubulação, infiltrando-se pelas paredes da minha vida real, alagando espaços estanques, confundindo tudo. Às vezes acontece – talvez por isso eu esteja sempre às voltas com um novo enredo, um livro infantil ou romance a ser terminado.


Dançamos, minha angústia e eu, um infindável tango pelos dias e noites, e ocasionalmente até fazemos bonito, senhoras e senhores. Às vezes, eu a guio; noutras – a maioria – é a angústia quem me guia. E eu lembro de Nietzsche e simplesmente me deixo levar.

28 de abril de 2014 | N° 17777
PAULO SANT’ANA

Grêmio com os reservas!

Juiz íntegro é o que não se vende nem por um tostão (leia-se a mínima conveniência) nem por um bilhão.

Juiz íntegro é o que não se deixa levar por quaisquer pressões e atende apenas a sua consciência, não soçobrando qualquer interesse das partes, conduzindo-se por um cordial equilíbrio no atendimento aos litigantes, atendendo aos fatos e à justiça que devem presidir a sua decisão.

Juiz íntegro é o que não dá atenção aos cochichos e prende-se apenas ao processo e seu mérito e é escravo da lógica e do bom senso.

Juiz justo é o que não prejulga, só julga, estando cônscio de que as partes e a ordem social esperam dele absoluta isenção.

Sendo assim, todos acatarão a decisão, e nenhuma dúvida se terá sobre a mais absoluta imparcialidade dela.

A instituição mais importante da cidadania é a Justiça. Tudo que os cidadãos devem esperar da Justiça é a imparcialidade. Devem ter a tranquilidade de que, quando seus pleitos e o julgamento de seus atos forem julgados pela Justiça, terão por parte dela a mais absoluta isenção, mesmo até que sejam desfavorecidos pelas sentenças.

De tal sorte, é necessário e fundamental que os cidadãos repousem na serenidade de que, se forem alvos da Justiça, receberão dela equanimidade.

Não pode haver maior mal do que a cidadania não confiar na Justiça, isso só já bastará para que seja instalada na sociedade uma inquietação que acabará produzindo injustiça e malversação dos direitos.

Ao contrário, se a Justiça produzir com constância justiça, a sociedade se recolherá a uma consciência de cumprimento das leis estabelecidas, fidelidade às normas do Direito e respeito aos direitos e deveres de cada um por todos.

O juiz tem, portanto, um mandato divino. Só a ele é concedido arbitrar sobre as razões humanas, só ele pode dirimir conflitos dando razão a alguém e tirando a razão de alguém, não há tarefa mais difícil, mas também, quando bem exercida, mais sublime entre todas as tarefas.

Eu não queria ser juiz pelo excesso de responsabilidade. Mas, por outra parte, desejaria ser juiz para poder me esforçar para julgar melhor do que outro que estivesse em meu lugar.

Que vitória gigantesca do Grêmio ontem! Os reservas fizeram melhor do que os titulares! Todos os jogadores do Grêmio atuaram exemplarmente! Será que não é esse o time titular?

Se a torcida tivesse adivinhado, teria lotado a Arena. Mas quem é que poderia adivinhar que os reservas fariam esse papel majestoso?


É assim que o Grêmio nos surpreende: por ser eterno, é imortal!

28 de abril de 2014 | N° 17777
L.F. VERISSIMO

Eu e ele

No vertiginoso mundo dos computadores, o meu, que devo ter há uns quatro ou cinco anos, já pode ser definido como uma carroça. Nosso convívio não tem sido muito confortável. Ele produz um texto limpo, e é só o que lhe peço. Desde que literalmente metíamos a mão no barro e depois gravávamos nossos símbolos primitivos com cunhas em tabletes até as laudas arrancadas da máquina de escrever para serem revisadas com esferográfica não havia maneira de escrever que não deixasse vestígio nos dedos.

Nem o abnegado monge copiando escrituras na sua cela asséptica estava livre do tinteiro virado. Agora não. Damos ordens ao computador, que faz o trabalho sujo por nós. Deixamos de ser trabalhadores braçais e viramos gerentes de texto. Ficamos pós-industriais. Com os dedos limpos.

Mas com um custo. Nosso trabalho ficou menos respeitável. O que ganhamos em asseio perdemos em autoridade. A um computador não se olha de cima, como se olhava uma máquina de escrever. Ele nos olha na cara. Tela no olho. A máquina de escrever fazia o que você queria, mesmo que fosse a tapa. Já o computador impõe certas regras. Se erramos, ele nos avisa. Não diz “burro!”, mas está implícito na sua correção.

Ele é mais inteligente do que você. Sabe mais coisas, e está subentendido que você jamais aproveitará metade do que ele sabe. Que ele só desenvolverá todo o seu potencial quando estiver sendo programado por um igual. Isto é, outro computador. A máquina de escrever podia ter recursos que você também nunca usaria (abandonei a minha sem saber para o que servia “tabulador”, por exemplo), mas não tinha a mesma empáfia, o mesmo ar de quem só aguenta os humanos por falta de coisa melhor no momento.


Eu e o computador jamais seríamos íntimos. Nosso relacionamento é puramente profissional. Mesmo porque, acho que ele não se rebaixaria ao ponto de ser meu amigo. E seu ar de reprovação cresce. Agora mesmo, pedi para ele enviar esta crônica para o jornal e ele perguntou “tem certeza?”.

28 de abril de 2014 | N° 17777
ARTIGOS - Cláudio Brito*

Justiça equilibrada

Gostaria de submeter este artigo ao crivo dos professores Paulo Ledur e Cláudio Moreno. Sabe-se lá se não estou começando por um pleonasmo? Justiça não deve ser sinônimo de equilíbrio? Enfim, que eu me salve pela escusa da redundância usada como ênfase. Mais do que nunca, muito equilíbrio nesta hora em que o país quer resposta à morte do pequeno Bernardo, o garoto que era órfão de pai vivo. E o que era mais doloroso, órfão de mãe suicida. Tudo o mais é consequência.

Falta pouco para a Polícia Civil concluir seu trabalho de apuração, respaldado por perícias e levantamentos, escutas, imagens e depoimentos. Virão a fase do Ministério Público e a decisiva etapa judicial, com certeza aos cuidados do povo, pois, induvidosamente, estamos diante de um caso de crime doloso contra a vida. A Constituição Federal reserva a competência do Tribunal do Júri para julgá-lo. Frederico Westphalen ou Três Passos?

Talvez Porto Alegre, se cogitarmos de comoção social suficiente para indicar o desaforamento. Não é o que importa agora. Fundamental é que haja acusação clara, com suporte na prova, respondida por defesa plena, tudo como as regras processuais determinam. E que os cidadãos jurados tenham como cumprir o juramento de julgarem a causa com imparcialidade para chegarem a uma decisão de acordo com a consciência e “os ditames da Justiça”, como dito no Código de Processo Penal.

São tantos recursos previstos, que tenho receio de ver repetida a morosidade que destroça a paciência de quem clama por justiça. Ainda assim, quero manter-me refratário às emoções, vacinado contra os males que o passionalismo provoca, pois é dever de todos nós a caminhada serena rumo à adequada e justa avaliação de fatos e condutas que tenham causado a tragédia.

Não me espantará nem irá me abalar a eventual liberdade provisória daqueles que ora estão segregados. É da lei, é do sistema. Devemos pretender que tudo se resolva no “tempo razoável do processo”, direito fundamental assegurado por nossa Constituição. Para essa garantia, importante evitarmos demoras artificiais, fruto de filigranas do juridiquês e das interpretações mais estranhas dos textos legais.

Equilíbrio, razoabilidade, contraditório, máximas garantias, que seja assim a realização dos atos processuais que virão. Assim é que teremos a santa paz de vermos a concretização da Justiça. Se ela vier na forma de uma condenação, que seja irrecorrível, por plenamente justa. É o que posso desejar, em homenagem ao anjo Bernardo.

*JORNALISTA<

28 de abril de 2014 | N° 17777
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA

Um astro tropical

Algum dia ainda por acontecer, um crítico sério fará a lista dos maiores escritores do Brasil em todos os tempos, e, se o cara for realmente sério, não esquecerá o nome de João Antônio.

Tive o prazer de conhecê-lo numa das Feiras do Livro de Porto Alegre, quando ainda funcionava o Bar Nota 7, ao redor do qual flutuava em espumas de chope toda uma geração literária. Reencontrei-o depois em Berlim rapidamente, pois ele estava de partida para a Holanda.

Voltamos a nos ver em Curitiba, na primavera de 1990, como jurados do Prêmio Paraná, então o mais importante do país. Era para darmos um veredicto sem demora – todos já tínhamos lido e avaliado as centenas de contos, mas João Antônio tinha outros planos: transformou o que seria um par de dias dedicado a sessões formais num lúdico feriadão. Foram noites e madrugadas insones nem sempre dedicadas a temas literários. Mas com um acréscimo: a visita inesperada ao nosso hotel de ninguém menos do que Dalton Trevisan, o Vampiro de Curitiba.

Quando João Antônio descobriu que eu sabia algo mais do que o trivial variado sobre Machado de Assis, não descansou enquanto não arrancou toda a minha ciência acerca do Bruxo do Cosme Velho. Escutava cada fato e detalhe com a atenção de um menino e fazia dezenas de perguntas sobre o mistério que cercava um de seus amores: Capitu, a dos olhos de ressaca.

Outras vezes falava infindamente sobre seus diálogos com as gaivotas. Isso mesmo: gaivotas. Morava a poucos metros das areias de Copacabana, na Praça Serzedelo Corrêa, onde morreu, e contava de seu especial apreço por nadar em alto-mar, entre o azul das águas e o dos céus. Era ali naquele infinito horizonte que gaivotas curiosas pousavam junto a ele e estabeleciam uma conversação que ele reproduzia com a facilidade com que produzia sua literatura inimitável. Era um astro de primeira grandeza.

Por que falo tudo isso?

Porque, esses dias, dedicado a um de meus esportes preferidos, que é o de inspecionar sebos, descobri, num canto de prateleira, um exemplar de Malagueta, Perus e Bacanaço, seu primeiro livro e de todos o meu preferido. Estava sem capa e maltratado pelas traças.

Como dizem agora os anúncios de TV, fiz um bom negócio. Arrematei-o na hora e já providenciei para que seja medicado e transplantado para a minha biblioteca.


Resta que a memória de João Antônio passe por similar processo em um cenário bem mais amplo: o dos maiores nomes da literatura brasileira.

domingo, 27 de abril de 2014

Ferreira Gullar

Arte de enganar pobres

É muito fácil assumir o governo e passar a dar comida, casa e dinheiro a milhões de pessoas

A esse populismo, que surgiu na América Latina há alguns anos, entendi de chamá-lo de neopopulismo para distingui-lo do outro, de décadas atrás, originário da direita, como o de Perón, na Argentina, e o de Getúlio Vargas, no Brasil; o atual, que Hugo Chávez intitulou de socialismo bolivariano, como o nome está dizendo, quer ser socialismo, isto é, de esquerda.

De fato, não é nem socialismo nem de esquerda, mas sim uma contrafação do projeto revolucionário que, em nosso continente, após o fim da União Soviética, ficou num beco sem saída: não podia insistir na pregação de uma ideologia que fracassara nem converter-se ao capitalismo, contra o qual pregava.

Por algum tempo, o PT ainda teimou em sua pregação esquerdista, mas, em face das sucessivas derrotas de Lula como candidato à Presidência da República, teve que mudar o discurso e, ao chegar ao governo, seguir as determinações do regime capitalista. Mas teve a esperteza de usar o poder para ampliar ao máximo o assistencialismo, em suas diversas formas, desde o Bolsa Família até medidas econômicas para ampliar o consumo por parte das camadas mais pobres.

A preocupação, portanto, não era, e não é, governar visando o bem-estar da nação como um todo, mas, sim, usar a máquina do Estado para crescer politicamente. O neopopulismo é isso: distribuir benesses às camadas mais pobres da população para ganhar-lhe os votos e manter-se indefinidamente no poder.

Não resta dúvida de que reduzir a miséria, melhorar as condições de vida dos mais necessitados, está correto. O que está errado é valer-se politicamente de suas carências para apoderar-se do governo, da máquina oficial, dos recursos públicos e usá-los em benefício próprio, sem se importar com as consequências que decorreriam disso.

É nas consequências que está a questão. A desigualdade social é inaceitável, e o objetivo de um governo efetivamente democrático é enfrentar esse problema e fazer o possível para resolvê-lo; como não é fácil resolvê-lo, deve, pelo menos, tomar as medidas certas nessa direção. Mas é mais fácil fingir que o resolve.

Foi Marx quem disse que só se muda o que se conhece. Noutras palavras, para resolver um problema como o da desigualdade social, há que conhecer-lhe as causas e as dificuldades para superá-las. É uma ilusão pensar que ele só existe porque os governantes nunca quiseram resolvê-lo. Isso, em muitos casos, será verdade, mas não basta querer. Pior ainda é fingir que o está resolvendo, lançando mão do assistencialismo demagógico próprio do populismo.

É fácil assumir o governo e passar a dar comida, casa e dinheiro a milhões de pessoas; dinheiro esse que devia ir para a educação, para o saneamento, para resolver os problemas da infraestrutura, ou seja, para dar melhores condições profissionais ao trabalhador e possibilitar o crescimento econômico. Esse é o caminho certo, que nenhum governante desconhece e, se não o segue, é porque não quer. O resultado é que não se formam profissionais e torna-se inviável o produto exportável, fonte de recursos para o crescimento econômico.

As consequências inevitáveis desse procedimento são, por um lado, induzir milhões de pessoas a não trabalharem e, por outro, inibir o crescimento econômico, enquanto aumentam os gastos públicos.

O neopopulismo, fingindo opor-se à desigualdade social, na verdade induz os beneficiados pelo Bolsa Família a só aceitarem emprego se o patrão não assinar a carteira de trabalho, o que constituiu uma conquista do trabalhador brasileiro. E foi o governo do Partido dos Trabalhadores que os levou a esse retrocesso. Pode? Não por acaso, o Brasil é hoje um dos países onde se pagam mais impostos no mundo, enquanto o número dos que vivem do dinheiro público aumenta todos os dias. Fazer filhos tornou-se fonte de renda.

Assim é o populismo de hoje, que veio para supostamente reduzir a pobreza, quando se sabe que uma família, por receber mensalmente menos da metade de um salário mínimo, não deixa de ser pobre. Claro, não passa fome, mas jamais sairá do nível de carência, a que se conformou, subornada pelo assistencialismo governamental. Esse é o verdadeiro mensalão, que compra o voto de milhões de eleitores com o nosso dinheiro.


Mauricio Stycer

O futuro ainda não chegou

'SuperStar' comete erros, desperdiça a promessa de interação e perde no Ibope para Silvio Santos

Lançado na segunda quinzena de setembro de 2013 no Canal 2, em Israel, o show de talentos "Rising Star" logo foi visto, por executivos dos principais centros do planeta, como o futuro da televisão.

Ainda com o programa no ar, a empresa criadora do formato, chamada Keshet, deu início à comercialização. Emissoras de países como Inglaterra, Espanha, França e Itália adquiriram os direitos. Em novembro, a gigante americana ABC fez o mesmo, sinalizando para o resto do mundo que se tratava, de fato, de aposta quente.

A Globo se juntou ao grupo, que já soma mais de 20 emissoras, no início de dezembro de 2013. Mas acabou sendo a primeira TV, depois da israelense, a estrear o programa, em abril de 2014.

Nascidos no rádio, shows de talentos existem desde sempre na televisão. A revolução prometida pelo programa "Rising Star", aqui rebatizado como "SuperStar", é o método de votação.

De posse de um "smartphone" ou um "tablet", os espectadores podem baixar um aplicativo que os torna parte do júri do programa. Ao vivo, em tempo real, quem está em casa pode votar, influenciando o resultado da apresentação de cada grupo musical.

A atração que atinge 70% de votos positivos é aprovada. Ao longo dos poucos minutos que dura a apresentação, o espectador vê um termômetro na tela se movendo em função dos votos dados. Quando alcança este patamar, um painel moderno se levanta, revelando finalmente os artistas.

Esta possibilidade de interação oferecida por "Rising Star" é, até agora, a materialização mais bem acabada do sonho que vem sendo enunciado já há alguns anos por analistas e futurólogos que pensam a televisão no mundo digital.

Exibidos os primeiros três episódios de "SuperStar" no Brasil, porém, tudo indica que o futuro ainda não chegou por aqui. A Globo errou a mão no lançamento do programa.

A pressa em estrear foi o primeiro pecado cometido pela emissora. "SuperStar" foi ao ar no dia 5 de abril, destinado a ocupar o vazio na grade deixado pelo "Big Brother Brasil 14". Sem testes suficientes, a grande atração do programa, o aplicativo, falhou na mão de milhares de espectadores, provocando queixas e revolta nas redes sociais.

O segundo erro foi a escolha do trio de jurados famosos. Para um programa que busca se comunicar com os jovens, Fábio Jr., Ivete Sangalo e Dinho Ouro Preto estão longe de representar a melhor opção.

Pior, na interação com a apresentadora, Fernanda Lima, o trio de jurados acabou levando o programa involuntariamente para o caminho da comédia. "Votei 'sim'", espantou-se Fábio Jr. ao saber que o seu painel registrava um "não". "Tenho personalidade zero", reconheceu Ivete Sangalo, justificando por que aprova a grande maioria das atrações musicais.

O terceiro erro, o mais triste, foi acreditar que o público diante da televisão no domingo à noite estaria interessado em uma atração high-tech como "SuperStar". Como já vinha ocorrendo com o "BBB", o novo show de talentos da Globo tem perdido no Ibope para o "Programa Silvio Santos". Esta, sim, é a mensagem que faz pensar.



Eliane Cantanhêde

Salve-se quem puder


BRASÍLIA - O clima no Planalto e no PT deve ser de "salve-se quem puder" diante da avalanche de más notícias. Dilma culpa o partido, o PT culpa a presidente e ambos têm um bode expiatório: a imprensa.

Dilma cai nas pesquisas e parece cada vez mais só, mas mantém a imagem de mulher honesta e distante de maracutaias. Logo, empurra para o PT a responsabilidade pelas vicissitudes e a torrente de denúncias.

Elas embolam o ex-vice-presidente da Câmara André Vargas, o ex-ministro e atual candidato Alexandre Padilha, ex-diretores da Petrobras e um doleiro onipresente em negociatas, já preso e indiciado.

O PT, enrolado até o pescoço, fugindo como pode de uma CPI da

Petrobras e apavorado com a queda da aprovação de Dilma em todas as faixas de renda e de escolaridade, tenta jogar a culpa numa presidente que não acerta uma.

Não tem marca, deixa a desejar na gestão e é um desastre na economia: crescimento só superior ao da Argentina e da Venezuela na América do Sul, previsão de inflação acima da meta, juros mais altos do que antes da posse, aumento de impostos para cobrir erros no setor elétrico. E a balança comercial...

Afinal, o que vai bem? E, se o governo falha e o partido está envolto em denúncias, de quem é a culpa?

Dilma não pode fugir da responsabilidade, como disse o ex-presidente da Petrobras José Sérgio Gabrielli sobre a compra da refinaria de Pasadena, que gerou prejuízo de mais de meio bilhão de dólares.

Isso vale para tudo e para os dois lados. Se Dilma tem responsabilidade sobre Pasadena, também tem sobre os resultados lamentáveis da Petrobras e os erros do seu partido no governo. Como o PT tem sobre os escândalos e sobre os erros de um governo que, afinal, é seu.

Por mais que Dilma e o PT tentem se desassociar dos fracassos um do outro, há um elo indissolúvel entre eles: Lula. Estão no mesmo barco e ninguém pode só lavar as mãos.

Elio Gasperi

Tião Viana desovou os haitianos

O governador do Acre exportou os refugiados sem aviso ou cuidado e achou um bode: a 'elite paulista'

Na semana em que o papa Francisco canonizou José de Anchieta, o governo do Acre completou a desova, em São Paulo, de 400 haitianos que se refugiaram no Brasil. É um truque velho, usado até mesmo com brasileiros. Quando um prefeito incomoda-se com a chegada de migrantes, dá-lhes algum dinheiro e passagem de ida para outro lugar, desde que não apareçam mais por lá.

Em São Paulo, os haitianos ficaram sob a proteção da Igreja Católica. No século 16, quando Anchieta andava pelo Brasil, a cultura europeia entendia que os índios nem gente eram. Passaram-se cinco séculos, o governador Tião Viana mandou refugiados haitianos para São Paulo e acusou a "elite paulista" de "preconceito", quando uma secretária do governo estadual classificou seu comportamento como "irresponsável".

Foi ele quem exportou os refugiados, sem dar um só telefonema ao prefeito petista Fernando Haddad. O problema que está no seu colo deveria ser tratado com o ministro petista da Justiça, não com a empresa de ônibus. Não é justo que a economia do Acre receba o impacto de 20 mil refugiados, mas a solução de Viana foi demófoba e sua justificativa, demagógica. Salvo a elite petista, nenhuma outra tem algo a ver com isso.

Os haitianos estão amparados pela mesma fé que movia Anchieta, na paróquia de Nossa Senhora da Paz. Faltaram recursos, comida e até mesmo colchões ao padre Paolo Parise, que cuida do lugar. Há dias, voluntários começaram a chegar à paróquia. Alguns foram cozinhar, outros ofereceram empregos. Até quinta-feira, a paróquia não havia recebido qualquer ajuda federal, estadual ou municipal.

O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, faz o que deve, o comissário Fernando Haddad, também, e Tião Viana diz o que quer. Juntando tudo, nada.

LIÇÃO DE ANCHIETA

Coincidindo milagrosamente com o feriadão, o presidente do Senado, Renan Calheiros, e seu colega Ricardo Ferraço foram a Roma para assistir à cerimônia de canonização do padre José de Anchieta.

A gentileza dos senadores custou à Viúva R$ 9.000 em diárias, noves fora as passagens. Essa conta não saiu por menos de R$ 30 mil. Não é muito dinheiro, mas é mais do que Anchieta teve em toda a vida, andando pelos matos brasileiros.

O santo escreveu um poema louvando o governador Mem de Sá. Num verso, referindo-se aos índios que ele combateu, Anchieta ensinou:

"Para este gênero de gente não há melhor pregação do que a espada e a vara de ferro."

GLEISI E VARGAS
A política paranaense faz milagres. Em 2011, quando o desempenho patrimonial de Antonio Palocci levou-o à frigideira, a senadora perguntou a Lula se era "estratégico" defender o comissário que comprometia o projeto político do partido.

Passaram-se três anos. O deputado André Vargas era um dos coordenadores da campanha da senadora ao governo do Paraná. Ela lastimou suas traficâncias, sustentou que a sua renúncia ao mandato é questão de "foro íntimo" e generalizou o problema: "O fato em si foi muito negativo, não só para o PT, mas para a política brasileira". Pegou leve.

PADILHA

A vulnerabilidade da candidatura de Alexandre Padilha não vem só do que pode ter acontecido no Ministério da Saúde quando ele lá estava.

Vem da convicção com que defendia negócios que cheiravam mal e, comprovadamente, revelaram-se escandalosos.

COMEMO-LO

Saiu nos Estados Unidos um livro que retoma um mistério cinquentenário. O que aconteceu em 1961 com Michael Rockefeller, filho de um dos homens mais ricos e poderosos do mundo, quando estava na Nova Guiné pesquisando uma comunidade que vivia na Idade da Pedra?

Na versão oficial, o jovem de 23 anos morreu afogado. O jornalista Carl Hoffman vai até o limite numa brilhante exposição do caso. Ele foi comido. Hoffman acha que chegou aos nomes e às causas. Contudo, quando faltava a prova final -os óculos de Michael-, venderam-lhe um modelo dos anos 90. O livro chama-se "Savage Harvest" (colheita selvagem), e está na rede por US$ 12,99.

Os magníficos totens que Michael recolheu na Nova Guiné estão no museu Metropolitan de Nova York, numa ala que leva seu nome.

ESTATÍSTICA

Na sua briga com a direção do PT, o deputado André Vargas teve o apoio de pelo menos 30 dos 88 colegas da bancada-companheira.

Conseguiu-se uma amostra do tamanho da banda que cultiva a tática do "partir-pra-cima".

EREMILDO, O IDIOTA

Eremildo é um idiota e entendeu a decisão do Supremo Tribunal Federal. Fernando Collor de Mello foi absolvido das acusações de corrupção, e João Goulart teve o seu mandato restabelecido pelo Congresso. Ele lembra que houve uma época em que os descendentes da família imperial brasileira tinham direito a passaporte diplomático.

O cretino acha que falta pouco para que se revogue o ato de rebeldia de Pedro de Bragança em 1822. Quando isso acontecer, Eremildo poderá conseguir seu sonhado passaporte da União Europeia.

O FMI SABE TUDO, MAS NÃO CONTA O QUE FEZ

O Fundo Monetário Internacional voltou a assumir funções oraculares em relação à economia brasileira e advertiu para o alto grau de endividamento das empresas nacionais. É provável que tenha razão.

Mesmo assim, a doutora Christine Lagarde poderia ajudar a instituição que dirige, abrindo os arquivos do FMI relativos ao que se chama de "crise da dívida da América Latina", mas que também poderia ser chamada de "crise do crédito da banca americana". Ela começou em 1982 e custou ao Brasil, com a primordial ajuda de seu governo, a famosa "década perdida".

O país devia mais de US$ 50 bilhões, os bancos sabiam que não teriam como recebê-los e o FMI entrou na parada oferecendo socorros temporários, assumindo o monitoramento da administração da economia brasileira. Chegaram a mandar inspeções quinzenais a Brasília. Nesse período, o governo assinou seis (ou sete) cartas de intenção. Cumpriu nenhuma.

Nos arquivos do FMI pode estar uma chave desse mistério. Sabiam fazer contas, mas não sabiam ler?

A memória de um negociador brasileiro revela o seguinte: "Assinamos a primeira carta por engano. A segunda, por distração. A terceira porque somos mentirosos, mas você não acha que, a partir daí, ou mesmo antes, estava tudo combinado?"

Ajudado pelo governo americano, o FMI fazia a segurança da banca. Em 1989, quando os balanços das casas credoras já permitiam que remanejassem suas cifras, a Casa Branca empurrou-lhes goela abaixo um plano de espichamento da dívida. O Citi tentou refugar, mas o secretário do Tesouro americano, Nicholas Brady, ligou para o seu presidente, e ele cedeu. "Eu podia ouvi-lo com o telefone longe do meu ouvido", contaria John Reed.