quarta-feira, 30 de novembro de 2011



30 de novembro de 2011 | N° 16903
MARTHA MEDEIROS


Autoajuda

Estava lendo o divertido Tudo é Tão Simples, de Danuza Leão, quando uma senhora chegou perto, com ar de desprezo, e disse: “Não te imaginava lendo autoajuda”. Pensei em responder que Kafka e Tchekhov também são autoajuda: dos eruditos aos passatempos, todo livro escrito com honestidade ajuda. Se bobear, até mesmo embustes tipo “Como arranjar marido” ou “Como juntar o primeiro milhão antes dos 30 anos” ajudam – quer ilusão, toma ilusão.

O psicanalista Contardo Calligaris certa vez disse numa entrevista que escreve para estimular o leitor a melhorar a qualidade de sua experiência de vida, intensificando-a. E Calligaris realmente consegue esse feito, por isso o leio. Assim como leio e sublinho inúmeras citações do filósofo romeno Cioran, que me ajuda a identificar a miséria humana sob uma ótica extremamente lúcida.

Muito antes de eu descobrir Calligaris e Cioran, tive que descobrir a mim mesma, e Marina Colasanti foi, nesse sentido, minha guia espiritual. Com suas crônicas, abriu minha cabeça para a sociedade que estava se firmando no início dos anos 80, quando as mulheres assumiram um novo papel. Eu não seria a mesma se não tivesse lido seus livros (muitas garotas talvez citem hoje a autora de Comer, Rezar, Amar como divisora de águas em suas vidas – eu também adorei).

Ainda adolescente, Fausto Wolff me deu consciência política, Millôr Fernandes me ensinou a enxergar o reverso do espelho, Verissimo me incentivou a rir de mim mesma, Paulo Leminsky me fez ver que poesia não precisava ser um troço chato e Caio Fernando Abreu me apresentou um mundo sem preconceitos. Seria uma ingrata se dissesse que eles não fizeram nada além de me entreter.

Além desses autores geniais, passei também por livros maçantes que me serviram como ansiolíticos – me ajudaram a pegar no sono. Hermetismo nem sempre é sinônimo de inteligência, profundidade não é privilégio dos deprimidos e mesmo histórias bem escritas podem naufragar se forem pretensiosas.

Michael Cunnigham ajuda a manter minha humildade (nem que eu vivesse 200 anos conseguiria escrever algo minimamente parecido com Ao Anoitecer, que acaba de ser lançado), Cristovam Tezza ajuda a controlar minha inveja (que técnica!) e Dostoievski me ensina que a fúria é mais produtiva quando transformada em arte.

Qualquer tipo de arte, aliás. Música de Autoajuda? Existe. Cazuza, por exemplo, já estimulou minha indignação com o país, Ney Matogrosso me faz sentir sensual, Jorge Ben sempre me alegra e Chico Buarque diversas vezes me comoveu, e ficar comovido é de primeira necessidade.

Existe autoajuda para todos os gostos. Tendo ou não esse propósito, nenhum livro deve ser diminuído por ter sido útil.


30 de novembro de 2011 | N° 16903
ARTIGOS - José Clovis de Azevedo*


O desafio do Ensino Médio

O Ensino Médio concentra os problemas mais graves da Educação Básica. Desde os anos 1930 que a então denominada educação secundária foi dividida em ensino propedêutico, formação geral voltada ao prosseguimento dos estudos, e educação técnica, com afunilamento profissional. Estabeleceu-se, na prática, o chamado sistema dual.

O ensino profissional para os alunos das classes menos favorecidas, e o ensino das letras e das ciências para os socialmente bem situados. Em 1971, a Lei 5.692 tentou quebrar essa dualidade, implantando compulsoriamente o ensino profissionalizante para todos. O caráter impositivo da medida e a ausência de condições materiais e intelectuais para a sua implantação determinaram seu insucesso. Desde então, o Ensino Médio perdeu a sua identidade, com resultados danosos para a juventude.

O diagnóstico desse nível de ensino revela-nos um quadro insustentável, com resultados que agridem a ética e os padrões mínimos de qualidade que se esperam de uma atividade pública financiada pelo esforço do conjunto da sociedade. Temos hoje na rede pública do Estado um índice de reprovação e abandono que reproduz a situação nacional, superior a 30%.

Ou seja, de cada mil alunos que ingressam, 300 são reprovados ou abandonam a escola. Significa que, dos aproximadamente R$ 2 bilhões que o Estado investe a cada ano no Ensino Médio, um terço perde-se no “ralo” do abandono e da reprovação. Mas mais grave que a perda material é a perda humana – os milhares de jovens que veem frustrados os sonhos de conquista de uma vida melhor pela educação.

Em tempo, o Conselho Nacional de Educação emitiu as novas diretrizes para o Ensino Médio, que irá orientar-se pelos eixos – Trabalho, Ciência, Cultura e Tecnologia – que deverão estruturar o currículo em quatro áreas: Linguagens e suas tecnologias; Ciências Humanas e suas tecnologias; Ciências da Natureza e suas tecnologias e Matemática e suas tecnologias.

Seguindo estas diretrizes, o governo do Estado colocou em discussão, desde setembro, uma ampla reforma curricular propondo um Ensino Médio que dialogue com o mundo do trabalho, embora não profissionalizante, e o Ensino Médio profissionalizante, com a educação profissional integrada à educação geral.

Esta proposta será implantada em três anos, oportunizando o amplo debate com comunidades escolares, entidades educacionais e, sobretudo, com o protagonismo dos educadores. O nosso objetivo é superar a desmotivação da nossa juventude e resgatar a identidade deste nível de ensino, possibilitando a formação de cidadãos globais humanizados e tecnicamente competentes.

*Secretário de Estado da Educação do RS


30 de novembro de 2011 | N° 16903
JOSÉ PEDRO GOULART


A esmola

Não sei direito para que serve uma opinião. Digo, qualquer opinião. E o pior é que com a internet andam a atirar opiniões em tudo quanto é canto. Sujeito quando diz que tem uma opinião, na verdade, tem é certeza.

Quanto vale uma certeza? Em casos graves a opinião dos outros ofende, e nem é preciso entrarmos na religião, no futebol e na política. Agora , o seguinte, todo mundo gosta de dar opinião, meter o bedelho, provar uma tese, consertar o mundo, resolver o enigma do universo, devolver amores perdidos com conselhos.

Ok, pelo menos a opinião serve para vender chope. O que seria dos bares se não houvesse troca de opiniões, debate sobre elas? Por exemplo, vou dar agora uma opinião típica de mesa de bar. Acho que o fim do mundo (ano que vem acaba) começou com a invenção do GPS, esse aparelhinho que impede que nos percamos em qualquer lugar do planeta. Imagine Cabral ou Colombo com GPS – qual a graça do descobrimento?

Quem nunca está perdido não encontra nada. Vale o mesmo para guias de viagem, cotação de estrelinha para restaurante, hotel: menos risco, menos surpresa, menos ilusão, menos alegria.

Noite dessas eu estava com três amigos, o David, o Ivan e o Rodrigo, num bar aqui da cidade discutindo este tipo de assunto – uns mais, outros menos, mas o fato é que naquele momento qualquer um de nós organizava as coisas muito melhor do que elas saíam, digo, no mundo.

Depois sentou-se o Eduardo, com ele mais um chope, e a conversa continuou líquida. A mesa era na rua, na calçada. Então apareceu um mendigo. Ele tinha uma bituca de cigarro na mão e sem se importar em atrapalhar a conversação pediu fogo.

Foi-lhe entregue o isqueiro, ele usou, pareceu que ia falar, talvez pudesse berrar alguma opinião também; algo sobre o fato de haver mesas com gente bebendo chope gelado enquanto há mendigos tendo que catar bituca de cigarro.

Ou se o Celso Roth deve ficar no Grêmio, se a Zona do Euro está a perigo, se a Copa fará bem ao país, se a TPM existe, se Deus existe, se Melancholia do xaropão do Lars Von Trier é presunçoso, o último Almodóvar violento, ou se mulheres sentadas em bares em grupos de três são mais acessíveis.

Mas não foi isso que ele fez. O que ele fez foi o seguinte: jogou uma nota de dois reais sobre a mesa, pagando por ter tido seu cigarro aceso e se mandou, murmurando algo incompreensível. A surpresa produziu bocas abertas, lambuzadas com alguma espuma de chope.

Sobre a mesa, aquela nota amassada, pousada em close up à vista de todos desafiava nosso GPS e talvez exigisse alguma tese. Nesse momentos, porém, a lógica contrariada provoca instantes sem qualquer opinião. E a falta de opinião se revela na forma de sorriso amarelo.

Quem nunca está perdido, não encontra nada.


30 de novembro de 2011 | N° 16903
PAULO SANT’ANA


De barriga cheia

Ainda repercute, Fernando Ernesto Corrêa, amigo dileto, a coluna que o Nelson Sirotsky escreveu pra mim na segunda-feira. Em toda parte que vou, só falam do Nelson ter ocupado sem eu saber a minha coluna. Fui ler anteontem a coluna que escrevi e dei de cara pela manhã com a coluna do Nelson, humilhando a todos os interinos históricos da minha coluna.

Chamou-me de Dom Quixote de La Mancha e elogiou o meu cérebro privilegiado. Os usuais interinos da minha coluna estão inconsoláveis.

Na mesa da solenidade dos jubilados, estavam presentes 15 médicos que me trataram e tratam. Infelizmente, a minha saúde é muito forte, era para estarem presentes 19 médicos, mas quatro deles faleceram durante o meu tratamento.

A Suzana Sirotsky Melzer mandou para a minha casa um buquê gigante com 500 rosas. A matriarca Ione Pacheco Sirotsky resolveu comemorar os meus 40 anos de RBS dando-me de presente um raro relógio de pulso Nathan.

E por aí vão as gentilezas de muitos para mim, reconhecendo estes anos todos em que servi à RBS e ao público.

Há dois dias, o senhor Jayme Sirotsky me assedia para tentar escrever uma coluna em meu espaço.

A noite dos jubilados da RBS reservou a todos e a mim grandes emoções.

Quando foram me entregar a escultura esplêndida com que me presentearam, o cantor contratado para a cerimônia, Pedro Verissimo, filho do colega Luis Fernando Verissimo, lembrou-se de que certa vez cantei no Jornal do Almoço, acompanhado no piano por Armando Manzanero, o maior de todos os boleros, Contigo Aprendí, de autoria do pianista. E Pedro interpretou na noite dos jubilados o bolero, para meu contentamento completo.

E contigo aprendi que a semana tinha mais que sete dias e aprendi também que eu nasci no dia em que te conheci.

Fui lá no palco cumprimentá-lo.

Depois de todas essas alegrias, resta-me aproveitar o e-mail que me mandou ontem o Roberto Sirotsky, daqui por diante, se a vida nos oferece todas essas mordomias sentimentais com que nos tem cumulado, só nos resta repetir o Zeca Pagodinho:

Eu estou descontraído

Não que eu tivesse bebido

Nem que eu tivesse fumado

Para falar da vida alheia

Mas digo sinceramente

Na vida a coisa mais feia

É gente que vive chorando de barriga cheia

É gente que vive chorando de barriga cheia.

terça-feira, 29 de novembro de 2011


José Simão

Ueba! Corinthians campeão Miojo!

O Galvão ficaria melhor transmitindo avalanche na Sibéria, briga de cachorro e atentado terrorista!

Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! E a prefeitura de Contagem quer incentivar o ciclismo, confunde "pedala" com "pelada" e estende a faixa no parque: "A prefeitura pelada com você". Rará! Já imaginou o Kassab pelado com você?

E adoro essa seção de jornal: "Confira dicas de como usar o seu 13º salário". 1) Investir em gado, comprar um quilo de alcatra. 2) Comprar um picolé da Yopa e cortar o cabelo na rodoviária. 3) Se atirar do décimo terceiro! Rarará.

Recebeu o décimo terceiro e se atirou do décimo terceiro. O Péssimo Terceiro! Ou como diz um amigo meu: "Que adianta receber 13 salários se a minha mulher gasta 14?!"

E o Timão? O Corínthia? Campeão MIOJO: durou três minutos. Vai entrar pro "Guinness": campeão por três minutos. Um cara na padaria gritou "caaaam" e o Vasco: "goool"! Isso é o que eu chamo de coito interrompido! Rarará!

Corinthians rumo ao penta. Se não der, tenta. Tenta de novo. Eu acho que o Timão vai ser tenta. Tentacampeão! Rarará. Ou então senta. Sentacampeão! Ou como disse aquele corintiano na padaria: "Segura no meu penta!" Rarará!

E quem vai ser campeão? Vasco ou Corinthians? Gambá Paulista ou Bacalhau Carioca? O Vasco vai jogar com um time imbatível: Manuel, Joaquim, Manuel Joaquim e Joaquim Manuel. Bacalhau, Roberto Leal e Ovos Moles! E sabe como se chama e-mail em Portugal? Carta voadora! Rarará!

Corinthians rumo ao penta, e o Adriano rumo à pança! E a comemoração do Corinthians foi tão rápida que só deu tempo de estourar um rojão aqui no Jardim Paulista. E um outro na casa duma amiga minha em Perdizes. Foi o mesmo, com eco! Rarará!!

E humor negro no programa do Datena: "Torcedor são-paulino é morto com tiro à queima rosca". É verdade. Eu tenho a foto!

E eu pedi pro Rubinho fazer uma coisa engraçada na F-1. E ele deu ré logo na largada. Largou dando ré. Entrou em 12º e passou pra 20º. Ele usa o capacete ao contrário. Turma da largada: larga dessa vida!

Eu acho que o Rubinho não consegue dirigir nem carrinho de supermercado! E o Galvão? O Galvão Urubueno seca até chuva! Diz que o Galvão ficaria melhor transmitindo avalanche na Sibéria, briga de cachorro e atentado terrorista! Rarará. Nóis sofre, mas nóis goza!

Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

simao@uol.com.br

Sociais & cia - ANDRÉ PALHANO - COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Empresas abrem suas práticas sustentáveis

Das 38 companhias do ISE (Índice de Sustentabilidade Empresarial), da BM&FBovespa, 8 divulgaram informações

Respostas dadas ao questionário para ingressar no índice estão disponíveis agora no site da Bolsa

Discretamente, a transparência na informação sobre práticas de sustentabilidade nas empresas de capital aberto ganhou um importante avanço na sexta-feira passada.

Pela primeira vez desde que foi lançado, há seis anos, o ISE (Índice de Sustentabilidade Empresarial) da BM&FBovespa estimulou as companhias a divulgar suas respostas ao questionário de ingresso no índice, revelando um quadro detalhado de como atuam nessa questão.

Embora todas as empresas que compõem a carteira atual do ISE divulguem relatórios de sustentabilidade, a informação de que seriam estimuladas a abrir as respostas do questionário para a Bolsa gerou divergências.

No começo de setembro, o Ibri (Instituto Brasileiro de Relações com Investidores) enviou um comunicado recomendando "aos associados que orientem as companhias a não divulgar as respostas dos questionários".

Foi seguido pela Abrasca (Associação Brasileira das Companhias Abertas), que também defendeu a não divulgação. Procuradas, as duas organizações não se manifestaram sobre o assunto.

Em direção contrária, a Apimec (Associação dos Analistas e Profissionais de Investimento do Mercado de Capitais) divulgou um comunicado de apoio à proposta do ISE, destacando que ampliar a abertura das informações ao mercado é uma das missões do índice, bem como induzir as companhias a adotar as melhores práticas.

Reservadamente, outras instituições também apoiaram a medida.

Das 38 empresas que compõem o índice, 8 divulgaram suas respostas (disponíveis no site da Bolsa): AES Tietê, Bicbanco, Banco do Brasil, CCR, Coelce, Eletropaulo, Energias do Brasil e Natura.

Embora tímido, o resultado foi comemorado. "Diante de tamanha novidade e das posições contrárias, isso superou nossas expectativas", afirmou a diretora de Sustentabilidade da BM&F Bovespa, Sonia Favaretto.

Ela afirma que as empresas que não divulgaram seus dados não devem ser olhadas com desconfiança.

"As respostas são binárias e muitas acabam receando serem mal interpretadas."

O conselho do ISE também decidiu ampliar a clareza das informações ao mercado sobre a própria composição do índice, abrindo a pontuação para cada um dos critérios.

Carlos Heitor Cony

A véspera do tudo e do nada

RIO DE JANEIRO - A pergunta é: o que se deve pensar na véspera de nossa morte? Ela foi feita a monsieur Verdoux, um dos personagens da fase madura e final de Charles Chaplin (1889-1977). No filme homônimo, de 1947, o personagem está preso e condenado à guilhotina.

Bancário durante 30 anos, ao perder o emprego decidiu casar ou namorar mulheres ricas, matava-as com frieza e sabedoria, e só por acaso foi descoberto pela polícia. Praticamente, ele já estava cansado do ofício.

Chaplin se inspirara num caso real, vivenciado por Landru, assassino em série que aterrorizou Paris entre 1914 e 1919. Orson Welles ameaçou processar Chaplin, alegando que tivera a mesma ideia antes.

Houve um acordo: para não brigar com o amigo, Chaplin deu-lhe crédito no filme e pagou US$ 5.000 ao autor de "Cidadão Kane", graciosamente, pois a ideia central da produção pertencia aos arquivos da polícia e da Justiça da França. Na realidade, não precisava pagar nada.

É difícil (e ocioso) imaginar como seria o monsieur Verdoux de Orson Welles. Certamente, seria mais solene e cinematográfico, tenderia a um personagem mais cínico e menos filosófico. Um exemplo: a pergunta que inicia esta crônica não seria feita ao criminoso que caminha para a guilhotina.

Aliás, quem faz a pergunta é uma prostituta que abandonou o ofício e casou-se com um milionário, um fabricante de armas para o Exército francês. Nos tempos de rua e fome, ela fora ajudada por Verdoux. A pergunta recebe a resposta "não" de Verdoux, o personagem, mas a de Charles Spencer Chaplin é uma das muitas tiradas que ele usou até excessivamente após se render ao cinema falado: "O que deve pensar uma criança na véspera de seu nascimento?".

O que seria mais assustador: o nada da eternidade ou o tudo da condição humana?


29 de novembro de 2011 | N° 16902
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Três virtudes

É um debate com alunos de uma escola média. Pergunto, para surpreendê-los, qual foi o maior presidente do Brasil. São eles que me surpreendem. Nada menos que três citam Juscelino Kubitschek. Ora, eles nem eram nascidos, e talvez nem os seus pais quando JK abriu para este país as portas da modernidade.

Faço algumas perguntas a meus jovens interlocutores. Eles conhecem muito sobre o sorridente mineiro de Diamantina. Sabem que implantou a indústria automobilística. Não ignoram que construiu imensas hidrelétricas, rasgou o nosso território de estradas, ergueu Brasília em meio ao enorme Cerrado.

Mais do que tudo, colocou o Brasil no mapa do mundo.

Raul Bopp conta em suas memórias que, embaixador na Áustria, fez tocar todos os sinos de Viena bem no momento da inauguração de Brasília, a mais moderna capital do universo.

Era um momento de grandes ousadias. A Seleção Nacional ganhava sua primeira Copa do Mundo na Suécia. A Seleção de Basquete vencia o Mundial do Chile. Maria Esther Bueno se impunha em Wimbledon. Eder Jofre vestia o cinturão da vitória no boxe. A Bossa Nova encantava o Carnegie Hall, em Nova York. Nascia o Cinema Novo.

Tudo isso coincidiu, certamente não por acaso, com o governo de Juscelino Kubitschek.

Romi-Isettas, Volkswagens, Dauphines, Gordinis, Simca-Chambords, Aero-Willys – e não por acaso JKs começavam a transitar por nossas ruas.

Havia todo um clima de otimismo no ar. O Brasil podia ser uma grande nação.

Tudo isso – mas não com esses inteiros detalhes – eu conversei com meus amigos estudantes.

Esqueci de dizer no entanto que ele era um brasileiro cordial, na acepção que deu ao termo Sérgio Buarque de Holanda. Esse homem foi JK.

Duas vezes oficiais amotinados se rebelaram contra o seu governo.

Ele no entanto não usou seu poder de esmagar as revoltas. Ao contrário, perdoou e anistiou os revoltosos.

Na política não foi diverso: era um conciliador.

Essa é uma virtude que esquecemos durante a ditadura militar.

Fiquei contente ao perceber que a memória de JK não está perdida mesmo nas escolas. Pois ele nos legou três heranças: a ousadia, a cordialidade e a conciliação.


29 de novembro de 2011 | N° 16902
CLÁUDIO MORENO


Será que ouvi direito?

1) Nascidas na década de 1930, no Canadá, as irmãs Dionne foram as primeiras quíntuplas a ganhar notoriedade na era pré-televisão. Por “motivos numéricos e biológicos”, explica nosso Jorge Luis Borges, a imagem das cinco graciosas figurinhas, levada nas asas ligeiras da publicidade e do cinema, conquistou o mundo inteiro com sua simpatia.

A extraordinária semelhança física entre elas, reforçada pelo fato de sempre usarem roupas e penteados iguais, tornava quase impossível identificá-las - exceto para um tal doutor Blatz, que dedicou a elas um vasto volume ilustrado por fotografias encantadoras, onde oferece a seus leitores a solução óbvia do problema: “Yvonne é facilmente reconhecida por ser a maior, Marie por ser a menor, Annette porque todos a confundem com Yvonne, e Cécile porque é praticamente idêntica a Émilie”.

2) No final do séc. 18 já se desenhava a estreita relação entre o saber e o poder. Não foi por acaso que a expedição militar ao Egito, comandada por Bonaparte, incluía uma verdadeira plêiade de cientistas, cujas observações e experimentos certamente foram muito mais gloriosas e duráveis que as batalhas vencidas pelos legionários.

Conta-se que, sempre que os mamelucos atacavam, as forças francesas formavam um quadrado de ferro e fogo para proteger os membros mais preciosos da expedição, a toques de corneta e gritos de “Jumentos e sábios, no meio!”.

3) Baudelaire, em uma de suas máximas sobre o amor, escreve este desabafo – e não parece estar brincando: “E não é que existem por aí os que se envergonham por ter um dia amado uma mulher burra? Pois não passam de pedantes vaidosos, nascidos para pastar os cardos mais impuros da criação.

A burrice é muitas vezes o ornamento natural da beleza; é ela que dá aos olhos aquela limpidez quase morna das lagoas escuras, aquela calma espessa dos mares tropicais. A burrice sempre contribuiu para a conservação da beleza; ela retarda as rugas e é o cosmético divino que poupa nossas deusas das cicatrizes que o pensamento nos inflige, a nós, que nos julgamos sabichões”.

4) O Barão Grimm, que tinha a má fama de maltratar seus criados e arremessar-lhes – com força – punhados de moedas na cabeça, sentenciava, gravemente, que o homem comum “não foi feito para a verdade, nem para a liberdade, embora sempre traga na boca estas duas palavras.

Esses dois bens pertencem à elite do gênero humano, sob a condição expressa de aproveitá-los sem fazer muito alarde, nem se gabar demais. Os outros nasceram para a servidão e para o erro; é o seu destino”.

5) E houve aquela dama, evocada por Paul Valéry, que exclamou, diante de um quadro que representava Jesus Cristo: “Mas como está parecido!”.


29 de novembro de 2011 | N° 16902
PAULO SANT’ANA


Todas as injustiças

Nada provoca mais medo do que a injustiça. É errado quando um juiz é mais temido por ser provavelmente um emanador de injustiça do que por adotar severidade em nossa pena, caso cometamos concretamente um delito.

Mas a verdade é que todos tememos isso.

Tememos a injustiça no trabalho. Qualquer chefe, gerente, diretor, pode demitir-nos sem que o mereçamos.

Tememos a injustiça da calúnia e da mentira. Execramos a injustiça salarial.

Tememos a injustiça que possa vir do julgamento dos nossos filhos sobre a educação que lhes demos.

E tememos até a injustiça que nos possa fazer a posteridade.

Tememos a injustiça que nos possa fazer a velhice batendo em nossa porta antes da felicidade ou até mesmo durante a felicidade.

Tememos a injustiça da chegada da doença quando a vida nos era mais apetecida.

Lamentamos a injustiça da infância perdida. Quando mais aptos éramos para sermos felizes, sofremos aquelas bárbaras agressões que se transformaram em traumas para nós. Ninguém é mais maldito do que o carrasco que nos agrediu ou desprezou na infância.

Agressões sofridas por nós depois de estarmos maduros doem infinitamente menos do que nos doeram no corpo e na alma as agressões que sofremos na infância, foi uma irrecuperável injustiça.

Mais desventurados são os que sofrem a injustiça social e falta-lhes à mesa o que sobra no lixo dos bem situados.

É uma injustiça nascer fraco e ver tantos fortes ao seu redor. É injustiça nascer cego, mudo ou surdo, todas as desvantagens físicas ou intelectuais com que se tenha nascido são miseráveis injustiças.

É uma injustiça não gostar de música como é uma injustiça não ser gremista.

Pode haver maior injustiça do que um delegado de polícia ganhar menos da metade do que ganha um procurador?

Ou é mais injusto o salário de fome que pagam aos professores estaduais?

Da minha parte, o destino só me traçou uma injustiça: eu não saber tocar violão. Tentei aprender violão, contratei na juventude até um professor de violão, não teve jeito, nunca consegui vibrar nas cordas sequer um acorde.

Se eu soubesse tocar violão, seria dono do mundo, todas as portas se abririam para mim.

Mas a maior injustiça que fizeram para mim foi quando me colocaram a escrever aqui neste canto escuro do jornal: penúltima página.

Se tivessem me posto a escrever na segunda ou terceira página de Zero Hora, eu bateria todos os recordes de leitura e seria muito mais conhecido e reconhecido nas ruas do que sou.

Em encontro realizado depois do jogo de domingo, ficou decidido oficialmente no Grêmio que, caso o tricolor vença o Gre-Nal, Celso Roth permanecerá no clube para 2012. E, mesmo que empate o Gre-Nal, caso o Inter não se classifique para a Libertadores, Roth permanecerá no Olímpico.


29 de novembro de 2011 | N° 16902
DAVID COIMBRA


O prazer solitário e a culpa ancestral

Mas me diga: qual é o problema de o Ronaldinho se masturbar na concentração? Alguém pode alegar que não gostaria de ver o vídeo do Ronaldinho se masturbando na concentração, mas aí a solução é a seguinte: é só não ver o vídeo do Ronaldinho se masturbando na concentração. Além disso, não foi ele quem postou o maldito vídeo.

Foi uma traição da pessoa com quem ele se comunicava pela webcam. Mesmo assim, os “analistas de mercado” preveem que Ronaldinho perderá seus patrocinadores, porque “sua imagem está abalada”. Por quê? O que ele fez de errado? A quem prejudicou? A deslealdade da mulher que falava com Ronaldinho, é isso que devia ter sido alvo de escândalo. O vídeo açula o voyeurismo natural do ser humano, certo.

O vídeo coloca Ronaldinho em uma posição constrangedora, por ter sido flagrado numa atividade íntima, certo também. Mas, afora essas questões unicamente curiosas e de mau gosto, não existe nada de condenável no vídeo ou na atividade de Ronaldinho. Não entendo o abalo da imagem e a consequente fuga dos patrocinadores.

Talvez isso tenha a ver com Judá. Ou seja: é uma questão que remonta há mais de 3.500 anos. Judá foi um dos 12 filhos homens de Jacó, que também era chamado de “Israel”. Jacó, portanto, deu o nome a toda uma nação e seus 12 filhos homens às 12 tribos que a formaram. Um desses, precisamente, Judá. Você, que é esperto, já deduziu que os descendentes de Judá constituíram a Judeia e que dela deriva o gentílico “judeu”. Esse Judá, pois, foi um homem importante.

Judá casou-se com uma Cananeia chamada Sué, com quem teve três filhos: Her, Onã e Sela. O primogênito, Her, cresceu, tornou-se adulto e casou-se com uma moça local, uma certa Tamar. Mas Her era “mau aos olhos do Senhor”, segundo a Bíblia. O que ele fazia de tão maligno a Bíblia não especifica. Seja o que for, não devia ser pouca coisa, pois o Senhor puniu Her com nada menos do que a morte.

Sua mulher Tamar, no entanto, ainda não tivera filhos. Pelo costume da época, o pai do marido morto, no caso, Judá, devia dar a nora, no caso, Tamar, em casamento ao segundo filho sobrevivente, no caso, Onã. Chama-se a esse costume “levirato”. Levir, em latim, é cunhado. Há um técnico de futebol brasileiro que se chama Levir Culpi; ou seja: Cunhado Culpi. Ou será que Culpi tem a ver com culpa? Cunhado culpado. Adequado à sequência da história. Que é a seguinte:

A ideia do levirato é não deixar o primogênito sem descendência. Por isso, o filho que a cunhada teria do cunhado seria considerado filho do marido falecido. A herança da família, assim, passaria para o filho de Onã com Tamar e não para Onã. Afinal, o filho que ele deveria fazer não seria dele, mas do irmão primogênito.

Como Onã espichava o olho para a fortuna da família, ele decidiu que não faria filho em Tamar. Optou por “espojar-se no solo”, de acordo com o Gênesis. Em bom latim, coitus interruptus.

O Senhor, que não precisa da internet para estar sempre atento e que na época adotava a política de tolerância zero, não gostou do estratagema de Onã e matou-o também. Essa sentença rigorosa geraria inúmeras aflições aos rapazes adolescentes dos séculos vindouros, em que a tradição religiosa apontaria a masturbação como a prática de Onã, o “onanismo”.

Por consequência, um ato criminoso, passível de punições terríveis como a cegueira, o definhamento irreversível ou o crescimento de horríveis pelos nas mãos. Porém, trata-se de um erro de interpretação dos teólogos. Porque, embora os patriarcas hebreus fossem muito respeitáveis, é possível que alguns antepassados de Onã tivessem se dedicado a esse prazer solitário que depois foi denominado como onanismo.

O próprio Onã talvez tivesse se divertido dessa maneira antes de esposar Tamar. Logo, não foi o desperdício de sêmen que Jeová puniu tão severamente, não foi o que hoje pode ser chamado de ronaldismo, e sim o fato de Onã recusar-se a cumprir a lei do levirato, recusar-se a reproduzir e a dar sequência à descendência familiar.

Logo, o onanismo (ou ronaldismo) está absolvido em sua acepção clássica. O que reforça a certeza de que não existe nenhum mal original em Ronaldinho se distrair consigo mesmo, ele e sua mão destra, ele e sua imaginação, ele e a internet na solidão das concentrações. E mostra como a sociedade brasileira é repressora, conservadora e, sobretudo, hipócrita.


29 de novembro de 2011 | N° 16902
FABRÍCIO CARPINEJAR


Parem de matar cachorros! (ou a memória é um retrovisor que não tem como arrancar)

Na BR-116, é certo que encontrarei engarrafamento e cachorro morto. A cada animalzinho estirado na mureta, tapo os olhos de meu filho Vicente – não é uma boa recordação para se levar à escola logo de manhã.

Mas fui notando que teria que deixá-lo vendado o trajeto inteiro. No intervalo de 10 quilômetros, avistava um novo corpo já despossuído de alma e Deus, inchado e anônimo, sem a gentileza de cruz e o amparo da coleira.

Cachorro atropelado na Grande Porto Alegre é tão frequente quanto as capivaras abatidas na BR-471.

Procurava desvendar como o cão atingiu o miolo da estrada. Na minha idealização, o bicho esquecera o caminho de volta e não contara com sorte ao cruzar a mão dupla. Por uma série de tristes casualidades, fora jogado na loucura assassina de um autorama.

Não me passava maldade pela cabeça. Sei o quanto um cachorro costuma cheirar caminhos e se distrair com facilidade.

Até que descobri que existe um nazismo canino. Cachorros são abandonados na rodovia pelos próprios donos. Aquilo que vejo todo o dia não representa acidentes, é, sim, resultado de uma matança deliberada.

Famílias compram ou recebem de presente um cãozinho, acham que é barbada cuidar, enfrentam uma semana de experiência, gastam demais com ração e higiene, e decidem sacrificar o hóspede. Sem tempo a perder, desaparecem com as provas de uma existência. E ainda raciocinam que não é um assassinato, que Palmira Gobbi é apenas o nome de uma avenida. Fingem acreditar que não cometeram mal nenhum, largaram o pequeno à mera provação do destino.

O motivo é sempre gratuito. Matam o cão para prevenir incômodos. Ou porque ele adoeceu ou envelheceu. Ou porque o remédio e o veterinário são caros ou porque o abrigo é longe e não podem se atrasar para o trabalho.

Que mundo é este? Pela janela, eliminam uma vida com a leviandade de alguém que arremessa longe uma bagana de cigarro, uma embalagem de picolé, um saco de salgadinho. Absolutamente crentes na impunidade.

Quem faz isso não merece perdão. Não merece explicação. Não merece defesa. É um crime premeditado. A mais implacável execução que conheço, antecedida de lenta tortura emocional.

Repare na insensibilidade: o dono mente ao seu cachorro que irão passear, para desová-lo no corredor da morte. Calcule o terror do bichinho quando não entende o castigo, e corre uivando, desesperado, atrás de um carro que nunca será mais o seu.

Cansei de esconder os olhos de meu filho.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011


Luiz Felipe Pondé

Sadômasô sustentável

Prostituta não é uma profissão, mas uma vocação, um arquétipo, como a "grande mãe"

O tédio é um dos maiores infernos humanos. Como diz a personagem mais legal do filme "Late Bloomers", com William Hurt e Isabella Rossellini, a bisavó pirada da família: "Se você é criança e não aprende a lidar com o tédio, quando cresce fica idiota".

Uma das piores formas de tédio é a estrutura sexual perversa. Ou, como alguns dizem por aí, "sadômasô" (o que antigamente era chamado de "sadomasoquista", no tempo em que era feio ser sadomasoquista). Não vou entrar em debates intermináveis sobre o que a "perversão" é, vou dizer claramente o que quero dizer com esta palavra e por que a perversão sempre me parece entediante.

Recentemente, na sua versão "sustentável", ela deixa ainda mais claro como é um cachorro desdentado. Você não sabe o que é um "sadômasô" sustentável?

Perversos, "descendentes" do chato Marquês de Sade, supervalorizado na filosofia, se acham o máximo porque pensam que realizam as fantasias que os neuróticos sonham e não têm coragem de realizar.

Enganam-se eles. A vida sexual do perverso é que é chata: queimar e ser queimado, bater e apanhar, ser amarrado e amarrar, máscaras de coro, caras que se vestem de colegiais e mulheres de bombeiro, gente que acha o pé da mulher seu melhor órgão sexual... "boring". Elas têm coisa muito melhor...

O Eros do sexo é o pecado, a vergonha, a culpa, a impossibilidade. A proibição, o medo. A vergonha é tão importante quanto imaginar a mulher por baixo da saia justa ao invés de vê-la de forma obviamente nua.

Quem não sabe disso não entende nada de orgasmo. Quem diz coisas como "É proibido proibir" é bobo e devia continuar fazendo suas festas em bufês infantis.

A palavra "sustentável" hoje em dia é como "ética", "Cabala", não quer dizer nada. É como escrever na porta de uma padaria "sob nova direção" só para atrair clientes. Propaganda provinciana.

No sentido que uso aqui, "sustentável" quer dizer "do bem", "inócuo", "corretinho". Por exemplo, temos até serial killer sustentável, o Dexter, da série homônima, serial "killer" que só mata serial killers. Limpinho como um "crente" da classe C.

Prefiro Jack, o estripador, que estripava prostitutas porque estas encarnam a mais antiga das vocações femininas e, por isso mesmo, uma das suas maiores delícias. Prostituta não é uma profissão, mas uma vocação, um arquétipo, como a "grande mãe".

O coitado do Sade ficaria horrorizado com o que fizeram de sua "Filosofia da Alcova", um livro para formar libertinos contra o sistema opressor no século 18. Você já reparou como todo mundo que quer nos libertar da opressão moral acaba ficando monótono e datado?

O que para Sade deveria ser uma transgressão terrível virou um jantar inteligente para gente que recicla lixo e, depois de tomar um "vinho em conta", goza chupando pés femininos. Em alguns anos, teremos pedófilos que também reciclam lixo e são budistas de butique.

Os "sadômasôs sustentáveis" dizem que você pode ser um deles e ser uma pessoa que não joga lixo na rua, que vota conscientemente, que é contra a indústria farmacêutica e ajuda velhinhas cegas a atravessar a rua.

De repente, até vão para encontros em salas escuras com sua "dominatrix" brincar de "escravos" depois da reunião de pais e mestres na escolinha do filho, que, é claro, não é um problemático como o filho do casal de neuróticos.

Logo serão capazes de dizer que gostar de ser espancado, queimado, mijado na boca e humilhado é harmônico com Jesus.

Os culpados por terem feito da filosofia do Sade um cachorro desdentado foram a moçadinha do "vamos desreprimir o sexo" ou do "gostar que mijem na sua cara também é cultura". Um modo "digno" de protestar.

Em matéria de protesto, ainda prefiro Lutero, Calvino e os pirados da Nova Inglaterra.

A personagem feminina do livro "A Letra Escarlate", de Nathaniel Hawthorne, autor americano do século 19 (o filme baseado no livro, com Demi Moore, é ruim porque faz dela uma feminista injustiçada, ainda mais "boring" do que Sade...), é um hino ao erotismo na mulher. Toda culpada, toda condenada, toda humilhada, toda possuída.

ponde.folha@uol.com.br

Arnaldo Niskier

A ausência de autoestima

Não deveremos contar com o apoio total dos professores no processo de contemplar o novo perfil dos alunos, porque lhes falta a necessária autoestima

Alunos dispostos como se estivessem num ônibus lotado; aulas expositivas ao estilo "magister dixit" dos velhos tempos, com gosto dos tradicionais "trivium" e "quadrivium" da educação clássica -eis o quadro encontradiço na grande maioria das escolas brasileiras de ensino médio.

Modernidade? Só naquelas que, a duras penas, conseguiram a doação de computadores solitários.

Nos planos oficiais, os conteúdos, por intermédio das diretrizes curriculares, fizeram dez anos de serviços, alcançando uma estabilidade altamente questionável.

Quase nada muda quanto ao desenvolvimento intelectual dos alunos, embora permaneça o dispositivo constitucional da aprendizagem como direito social, devendo ser oferecida com qualidade.

Pudera, as escolas, sobretudo as públicas, operam sucateadas, sem estrutura condizente, e conduzidas por professores justamente desmotivados, em virtude da tibieza dos seus salários. No Brasil há solução para quase tudo, menos para encontrar uma resposta condigna para essa questão que vem desde meados do século passado.

É certo que o perfil do aluno está mudando. Em busca da sonhada empregabilidade, ele reivindica o domínio de línguas estrangeiras modernas (pelo menos o inglês, como segunda língua) e o conhecimento dos mistérios da internet, cujo domínio passou a ser sinônimo de status.

Há um novo e instigante perfil psicológico dos jovens -e isso o Plano Nacional de Educação, que está em discussão no Congresso, deverá contemplar, mas com uma perspectiva facilmente previsível: não deveremos contar com o apoio total dos mestres nesse processo, pois lhes falta a necessária autoestima.

Foi uma boa iniciativa alargar para nove anos a obrigatoriedade do ensino fundamental. Continuam, como desafios, os lamentáveis problemas da permanência e da conclusão, o que pode perfeitamente explicar os vazios da educação média, que sofre as consequências dos problemas trazidos da base.

Muitos jovens dessa faixa etária crucial fogem da escola, com conhecimentos precários. Muitas vezes se limitam a assinar o nome, caracterizando o que chamamos de analfabetismo funcional. Os conhecimentos de leitura e interpretação não passam de precários.

Como pretender alunos críticos, reflexivos e investigadores se lhes falta o essencial, que é o adequado domínio da língua portuguesa?

Melhorar a educação brasileira, de um modo geral, pode ser uma utopia? Depende, naturalmente, da existência de uma política séria, no setor, conduzida por pessoas competentes e desinteressadas de proveito pessoal ou político. A boa escola deixará de ser utopia quando esse quadro se modificar.

ARNALDO NISKIER, 75, é doutor em educação. Foi presidente da Academia Brasileira de Letras (gestão 98-99) e pertenceu ao Conselho Nacional de Educação.


28 de novembro de 2011 | N° 16900
EDITORIAIS ZH


OS LUCROS DO FGTS

Considerada uma questão intocável por sucessivos governos, finalmente começa a ser questionada a concentração dos lucros do FGTS nos cofres do Executivo. O debate deflagrado dentro do próprio governo, com participação de integrantes do conselho curador que fiscaliza o Fundo, encaminha-se para a correção de uma injustiça histórica, com o provável compartilhamento entre todos os trabalhadores dos lucros obtidos com a aplicação do FGTS em obras de vários setores.

O Fundo é uma poupança corroída pelo sistema de correção, que tem índices abaixo da inflação. Uma reserva feita pelas empresas em nome de seus empregados é usufruída pelo governo e viabiliza projetos importantes e as atividades de empreiteiras e outras empresas, mas resulta em prejuízos anuais para as contas individuais.

A distribuição dos lucros faria com que a prosperidade econômica e as obras sociais proporcionadas em boa parte pelas aplicações do Fundo resultassem em ganhos com equidade. No ano passado, por exemplo, o FGTS teve um lucro de R$ 5,4 bilhões, enquanto os trabalhadores detentores das contas contabilizaram prejuízos.

Para este ano, há previsões de que as reservas renderão em torno de 4,3%, conforme o sistema de correção previsto em lei, de 3% fixos anuais mais TR, e a inflação medida pelo IPCA ficará em pelo menos 6,5%. A distância entre a remuneração e a inflação dá a dimensão das perdas, que se acumulam nos últimos anos, sem que nenhuma sugestão no sentido de corrigir a distorção seja aceita pelo governo.

O mais grave é que, além de perder recursos, o trabalhador vê o Fundo ser utilizado pelo Executivo como alternativa a um maior controle do orçamento. Para não recorrer a recursos próprios para as obras, o governo socorre-se do caixa do FGTS, especialmente para financiar o programa Minha Casa, Minha Vida.

É um truque do Tesouro condenado por integrantes do conselho curador por contrariar a lei e subtrair recursos, muitos dos quais liberados a fundo perdido, de uma poupança que já vem sendo depauperada por não ter rentabilidade.

A proposta em debate no governo considera a possibilidade de distribuir 50% dos lucros obtidos a cada ano, o que seria razoável e justo, levando-se em conta os prejuízos acumulados. Há, no entanto, forte reação de autoridades da área econômica, numa demonstração explícita de que o Executivo pretende continuar se apoderando do Fundo para assim segurar gastos orçamentários. Compreende-se que o FGTS, como está previsto desde sua criação, em 1966, se preste ao financiamento de habitações populares, saneamento e infraestrutura.

O que não pode ocorrer é o desvirtuamento da aplicação, como pretende o governo, ao apresentar uma medida provisória que permitirá a utilização dos recursos até mesmo em obras para a Copa do Mundo. O Fundo sempre teve cunho social. É preciso preservar esse objetivo maior e, ao mesmo tempo, compartilhar os ganhos desse patrimônio com seus verdadeiros donos.

Ótima segunda-feira pra você. Uma excelente semana. Hoje e amanhã estaremos na Câmara de Veradores de Novo Hamburgo


28 de novembro de 2011 | N° 16900
KLEDIR RAMIL


Wall Street

Entusiasmado com o movimento Occupy Wall Street que começou em Nova York e se alastra pelo mundo, um amigo meu aproveitou a oportunidade e organizou uma manifestação dentro de sua própria casa.

Ocupou a sala, montou uma barraca e espalhou cartazes reclamando do descontrole das contas domésticas. Principalmente o uso sem limite do cartão de crédito. É que, segundo ele, seu regime de casamento é aquilo que se pode chamar de workshop. Ele work e ela shop.

A mulher entendeu a coisa à sua maneira. Arregaçou as mangas e confeccionou uma faixa reclamando da falta de solidariedade nos fins de semanas, quando não tem empregada: “Ninguém lava os pratos, a cozinha vira um caos”.

O filho pequeno subiu num banquinho e começou a gritar que “é impossível viver com uma mesada dessas”. A guria adolescente deu a entender que as amigas todas já têm iPad e ela não. O pai bufou: “Tá, e aí?”. Foi até o espelho e desabafou: “Tô falando com as paredes”.

A mulher voltou à carga. Lançou uma dissidência do movimento e batizou de Occupy Kitchen, com palavras de ordem afirmando que “a cozinha é o coração da casa”. Entre as reivindicações estava a participação de todos nas tarefas de recolher o lixo, dar comida pro cachorro e pendurar as toalhas. Um exército da faxina.

O guri sentou no tapete e ficou tocando violão. À sua frente, uma latinha velha de ervilha, algumas moedas de 50 centavos e um cartaz onde dizia: “Ajude um pobre mendigo a comprar um PlayStation 3”.

A guria chamou as amigas. Pelo Facebook. E criou uma onda de protestos que se alastrou pelas redes sociais e virou trending topic no Twitter. Algumas indignadas falavam em invadir o bunker do pai ditador e outras enviavam BBM e SMS em solidariedade, apesar de não saberem muito bem do que se tratava aquilo tudo.

O pai pediu a palavra e chamou a atenção para o detalhe de que estavam perdendo o foco. Emendou em um breve discurso lembrando que estavam ali para protestar contra a ganância, “a irmã gêmea da avareza, o primeiro dos sete pecados capitais” e encerrou citando o filósofo inglês Tim Jackson: “Estamos sendo persuadidos a gastar o que não temos, em coisas que não precisamos, para criar impressões que não duram, em pessoas que não nos importam”.


28 de novembro de 2011 | N° 16900
PAULO SANT’ANA | NELSON SIROTSKY* - INTERINO

Carta a Pablo

*Presidente do Grupo RBS

Querido amigo.

Estamos completando, juntos, 40 anos de RBS. Por isso, tomo a liberdade de cometer o sacrilégio de ocupar o teu espaço sem aviso prévio (no bom sentido, é claro).

São quatro décadas de trabalho, identificação e amizade.

Neste período, que representa boa parte de nossas vidas, compartilhamos alegrias e decepções, vitórias e derrotas, e também uma infinidade de momentos que nos tornaram mais maduros e mais resistentes.

Pois, para solidificar ainda mais esta camaradagem forjada pelo tempo, encomendamos ao artista plástico Gustavo Nakle uma escultura que te representasse, e com a qual te homenagearemos na noite de hoje. Ele sintetizou em bronze, numa mistura de Mosqueteiro e Dom Quixote, o Paulo Sant’Ana de múltiplas polaridades que todos admiramos.

O guerreiro, que batalhou pela sobrevivência na infância e na juventude, e se tornou imbatível no exercício de seu ofício.

O irreverente, que vestiu a armadura da criatividade para fazer a diferença na vida profissional.

O torcedor vibrante, ensandecido de paixão pelo seu Grêmio, que leva no peito e na alma para onde der e vier.

O comentarista polêmico, o colunista preciso, o jornalista ético, o comunicador de todos os gaúchos.

Dom Pablo Sant’Ana de La Mancha.

O cavaleiro da inconfundível figura, o rosto mais conhecido e um dos cérebros mais admirados do Rio Grande.

Mosqueteiro sem rei, jamais recusaste luta em defesa do teu público e do estandarte que sempre carregaste com orgulho. O estandarte da RBS.

Esta escultura de bronze, amigo Sant’Ana, é um acerto eterno.


28 de novembro de 2011 | N° 16900
L. F. VERISSIMO


Hitchcockiana

Ele gritou: – Janela Indiscreta!

Ela: – O quê?

– O filme que você está vendo. Posso ver a sua TV daqui.

Os fundos dos dois apartamentos davam para o mesmo poço. Mesmo andar. Da área de serviço de um se via tudo do outro.

Ele: – Adoro o Hitchcock. Ela:

– Eu também.

Já tinham se visto no elevador. Ela morava com uma amiga que nunca aparecia.

– Qual é o seu Hitchcock favorito?

– Estou vendo Janela Indiscreta pela décima vez. Mas acho que meu favorito é Um Corpo que Cai. O seu?

– Os Pássaros.

Ela fez uma cara feia.

Dias depois se encontraram na loja de vídeos.

– Olha o que eu achei – disse ele.

Era Notorius. Aquele em que a Ingrid Bergman e o Cary Grant se encontram na Cinelândia e concordam que o Rio é muito chato. Ela mostrou o filme que tinha alugado. Os Pássaros. Ia rever para ver se desta vez gostava.

– Você não precisa gostar só porque eu gosto.

– É por boa vizinhança – disse ela, rindo.

Naquela noite conversaram, área de serviço a área de serviço. Ele disse que o Notorius tinha envelhecido um pouco. E ela, o que achara de Os Pássaros?

– Sei não... – disse ela.

– Vamos ter que vê-lo juntos.

Foi na noite seguinte. Apartamento dela. A amiga, diplomaticamente, no seu quarto. Os dois na sala. Os Pássaros, argumentou ele, é o filme metafísico do Hitchcock. O único filme de terror na história do cinema sem monstros e sem vilões. O vilão é o mundo, é a natureza reagindo ao homem, uma ordem pré-humana se... Antes de ele terminar a frase, já estavam se beijando. Nem chegaram a colocar o DVD.

Passaram a se encontrar quase todas as noites. Só viam Hitchcock. Às vezes discutiam, “Topázio é um Hitchcock menor!”. “O quê? O quê?!”. Passavam alguns dias sem se ver. Aí ele batia na porta dela com uma raridade (Sabotagem, por exemplo) e faziam as pazes.

Até que um dia a amiga saiu do quarto e ele viu que se tratava de uma loira irresistivelmente hitchcockiana, e se apaixonou, apesar de a loira dizer que seu filme favorito era Ghost. Ele tentou explicar sua traição (“Eu sou coerente! Eu sou coerente!”), mas não adiantou. Foi morto com uma tesourada, como em Disque M para Matar.

domingo, 27 de novembro de 2011


Gilberto Dimenstein

Minha palavra mais bonita

A Folha é meu 'serendipity'; o jornal me proporcionou o encanto de transformar o acaso em aprendizagem

Não conheço nenhuma palavra mais bonita do que "serendipity". Por isso, vou usá-la na minha despedida deste espaço, que, a partir de hoje, deixa o papel e migra para a edição digital do jornal.

Inventada por um inglês, em 1754, que se inspirou numa lenda persa, "serendipity" é uma palavra impossível de ser traduzida para outros idiomas num único termo.

Superficialmente, ela significa o prazer das descobertas ao acaso. Um velho amigo encontrado numa inóspita cidade estrangeira, os acordes de um violino tocado em um parque numa tarde de outono, uma súbita paisagem de uma praia que aparece quando caminhamos numa mata fechada.

Um encontro amoroso no final da madrugada, quando já estávamos conformados de ficar sozinhos ou um prato feito com ingrediente exótico num improvável restaurante de beira de estrada.

Mas o significado profundo de "serendipity" vai além do imprevisto. É o encanto da transformação dos acasos em aprendizagem. O bacteriologista Alexander Fleming viajou de férias e se esqueceu de guardar os pratos em que fazia experiências para curar infecções. Um fungo caiu do teto em um desses pratos. Descobriu-se o antibiótico. Se o tal fungo não tivesse caído na frente de um bacteriologista atento, seria apenas um bolor inútil.

Por trás da palavra, existe a ideia de que o melhor da vida é a aventura do aprender pela experiência -o que compensaria os riscos e a dor provocada pelos sucessivos erros.

A Folha é meu "serendipity". Investiguei as mais variadas modalidades de corrupção, o assassinato de crianças, a exploração sexual de meninas, os personagens invisíveis que habitam as cidades.

Os cenários iam da cracolândia, em São Paulo, aos morros do Rio, ao Harlem, em Nova York e às favelas da Índia ou da Colômbia, passando pelos gabinetes refrigerados de Brasília e, neste momento, pelos centros de pesquisa de Harvard e do MIT. Ganhei todos os prêmios possíveis como jornalista e escritor, o que é ótimo para o ego, é claro, mas o que sobrou mesmo foi a emoção da descoberta.

Nesse meu flanar, fui fisgado por um encontro casual, que me tirou da segura e previsível rota do jornalismo. Passei a me emocionar não só com o furo, mas com a comunicação, especialmente com seus recursos digitais para a aprendizagem e com o engajamento comunitário. É um olhar arriscado: não só assistimos ao jogo para descrevê-lo.

Somos também jogadores. Em meio a uma efervescente polêmica sobre os limites da objetividade, estudiosos da mídia dos Estados Unidos batizaram, com diferentes nomes, esse olhar de jornalismo: "civic", "public" ou "community". No Brasil, a tendência ganhou o nome genérico de "educomunicação" e virou curso de graduação na USP.

Ao morar em Nova York e voltar para São Paulo, apaixonei-me pela possibilidade de usar os recursos digitais para ajudar a fazer das cidades uma experiência educativa. As cidades são o melhor meio de comunicação já inventado: um ponto de encontro e difusão das informações.

Confesso que, nessas experimentações entre comunicar e educar, não sabia mais direito o que eu era ou o que eu fazia. Foi o que me levou a aceitar o convite para participar de uma incubadora de projetos em Harvard. Vim aqui para ficar seis meses. O projeto estendeu-se por mais seis meses e, agora, vai até o final de 2012, embora eu possa ficar parte do tempo em São Paulo, desenvolvendo o projeto de jornalismo comunitário em colaboração com o Media Lab (MIT).

Nesse flanar por outros caminhos, tornei-me dispensável -dispensável e caro- para versão impressa do jornal, obrigado a lidar com os crescentes desafios da mídia no papel.

Mas aí está a dor e a delícia do "serendipity": para viver experiências, sempre estamos nos despedindo de alguma coisa de que gostamos.

PS - Aproveito esta despedida da versão impressa para dizer publicamente o que tenho falado privadamente. Não fosse Otavio Frias Filho, disposto a apoiar tantas experiências por tanto tempo, eu não teria tantas histórias para contar.

gdimen@uol.com.br

VACLAV SMIL DA “ATLANTIC”

Figura do herói inovador solitário é somente um mito

Todas as grandes invenções são filhas de pais espalhados pelo mapa e que jamais se encontraram

Gosta-se de imaginar que a invenção surge como percepção repentina, o equivalente ao súbito deslocamento de água observado por Arquimedes que deu origem a uma das mais famosas interjeições gregas, "eureca!".

Essa história é um mito. A narrativa de heroísmo tem pouco a ver com a maneira pela qual a invenção (criação conceitual de um novo produto ou processo) e a inovação (difusão em larga escala de invenções comercialmente viáveis) funcionam.

Todas as grandes invenções são filhas de pais espalhados pelo mapa e que jamais se encontraram. Talvez nada ajude tanto a detonar o mito do "heroico inovador solitário" quanto a história da eletrônica moderna.

O primeiro transistor foi patenteado em 1925, por Julius Lilienfeld. Em 1947, Walter Brattain e John Bardeen, cientistas dos Bell Labs, amplificaram potência e voltagem por meio de cristais de germânio, mas seu transistor -o de ponto e contato- não se tornou a peça essencial da eletrônica moderna -o que ocorreu com o transistor de efeito de campo de junção, que foi conceituado em 1948 e patenteado em 1951 por William Shockley.

O papel da fundação da eletrônica moderna coube ao silício, que é cerca de 150 mil vezes mais comum que o germânio na crosta terrestre.

Nesse ponto outra invenção essencial entra na história. O silício semicondutor precisa ser ultrapuro, para ser modificado por meio de um processo que acrescenta pequenas impurezas para alterar sua condutividade.

A fim de reduzir os custos de produção da bolacha de silício, o cristal do qual as bolachas são fatiadas precisa ser relativamente grande. Isso conduziu a novos métodos de purificação de silício (pureza de 99,9% se tornou comum) e a métodos engenhosos de obter grandes cristais.

A história da produção de cristais começou em 1918, quando o polonês Jan Czochralski, descobriu como converter material policristalino de extrema pureza em um cristal único. Procedimentos para criar cristais maiores foram introduzidos no início dos anos 50 por Gordon Teal e Ernest Buehler, nos Bell Labs. Depois, Teal se tornou diretor de pesquisa e desenvolvimento da Texas Instruments, onde uma equipe liderada por Willis Adcock desenvolveu o primeiro transistor de silício, em 1954.

A disponibilidade de silício abriu caminho para a instalação de número imenso de minúsculos transistores em bolachas de silício, resultando nos primeiros circuitos integrados (Robert Noyce e Jack Kilby, em 1959).

Depois, foi preciso encontrar uma maneira de depositar uma camada atômica de cristais de silício (façanha do grupo liderado por Alfred Cho nos Bell Labs, em 1968), antes que um grupo da Intel (Marcian Hoff, Stanley Mazor e Federico Faggin eram seus principais integrantes) conseguisse produzir o primeiro microprocessador (essencialmente, um computador em um único chip), em 1971.

SEM TV

O total de transistores em um chip cresceu de 2.300 em 1971 a mais de 1 milhão em 1990 e mais de 2 bilhões em 2010. Colocar tantos transistores em um chip para produzir computadores seria inútil sem que alguém desenvolvesse uma linguagem de máquina para transmitir instruções de processamento.

Quem fez algumas das mais importantes contribuições para isso foi Dennis Ritchie, criador da linguagem de processamento C, que resultaria na Java e no Unix.

Ritchie morreu poucos dias após Steve Jobs, da Apple. Não houve especiais de televisão e o epíteto "gênio" não lhe foi atribuído pelos canais de TV. Ritchie foi "apenas" um entre centenas de inovadores cujos projetos, desenvolvidos por milhares de colaboradores e por investimentos de bilhões de dólares, por décadas, foram combinados.

Há, sim, momentos eureca e alguns inventores deram contribuições individuais espetaculares. Mas prestamos atenção demais a alguns poucos e de menos aos muitos momentos de inovação significativa que vêm depois.

VACLAV SMIL é professor da Universidade de Manitoba (Canadá)

CAMILA FUSCO - ENVIADA ESPECIAL A CARY

Melhor empregadora é pouco conhecida

Com mimos aos profissionais, SAS Institute consegue reter mais funcionários do que a média do mercado de tecnologia

Empresa de software corporativo bateu Google e Microsoft na preferência dos empregados

Com um décimo da receita anual do Google e menos 20% da equipe da Microsoft, o SAS Institute, empresa americana de software, consegue desbancar os gigantes do setor numa questão sensível para todas as companhias: a preferência dos funcionários.

Virtual desconhecida do usuário-padrão de tecnologia -o SAS produz softwares corporativos de inteligência de negócios-, a empresa sediada em Cary, Carolina do Norte, há dois anos mantém o título de melhor empresa para trabalhar, segundo o ranking da revista "Forbes'', que avalia cem companhias.

O trunfo não está nos salários -o SAS nem aparece na lista dos melhores pagadores-, mas na lista de mimos, que inclui academia completa, spa, serviços e vários tipos de incentivo à formação.

Também passa pela política pouco comum na indústria de software de não demitir ninguém depois das aquisições -foram nove nos últimos anos. Hoje são 13 mil funcionários no mundo.

É com essa estratégia -criticada por diversos especialistas por seu custo elevado- que o SAS consegue se manter como a empresa com menor índice de rotatividade da indústria de software: 2%, ante a média de 20%.

"Todos os dias os meus maiores ativos saem pelos portões. É necessário oferecer oportunidades para que eles voltem, principalmente quando falamos de profissionais muito capacitados, como pesquisadores e PhDs", diz Jim Goodnight, fundador do SAS.

Maior empresa privada de software do mundo, com receitas anuais que devem chegar perto de US$ 3 bilhões em 2011, o SAS tem no desenvolvimento de software de análises e previsões de negócios seu principal filão.

Matemáticos e estatísticos estão entre os principais componentes de sua força de trabalho. Reter esses funcionários significa poupar ao menos US$ 40 milhões em custos de treinamento.

Quem entra na empresa encontra mais de 4.000 esculturas espalhadas pela área de 1,2 milhão de metros quadrados, além de exposições de quadros e pedras preciosas e música erudita ao vivo.

"Não temos o compromisso com Wall Street de dizer todos os trimestres quais serão nossos resultados. Podemos nos concentrar no desenvolvimento de produtos e, para que isso seja bem feito, podemos dar essas oportunidades adicionais aos funcionários", diz Goodnight.

FUNCIONÁRIOS PAGAM

A maioria dos serviços oferecidos aos funcionários é paga, embora subsidiada.

Pelo uso integral da creche e do centro de educação infantil, os pais desembolsam US$ 400 por mês. O uso do centro esportivo é pago.

Consultas médicas no centro de saúde também são cobradas e quem não comparece ao compromisso é multado em ao menos US$ 10.

A prática da cobrança destoa de muitas das gigantes de tecnologia. Isso, porém, não parece incomodar os funcionários, que têm poucas opções na cidade de pouco mais de 150 mil habitantes.

"O que o funcionário gosta é de ter a possibilidade de acessar os benefícios de forma flexível e ter a sensação de que está sendo servido pela companhia", analisa Carlos Eduardo Altona, sócio da consultoria em recursos humanos Exec Partners.

O SAS tem como principal desafio manter o ritmo de crescimento ao mesmo tempo em que planeja a sucessão de seu presidente.

Há 35 anos, a companhia nunca viu declínio nas receitas. Aos 68 anos, Goodnight se mantém ativo à frente das operações.

Para os analistas, o desafio do SAS está em manter o nível de inovação mesmo com a saída provável do fundador na próxima década.

Danuza Leão

Loura e linda

Betty Catroux não é dada às prendas domésticas, não acha a menor graça em comer e odeia viajar

Outro dia pensei em Betty Catroux, ícone de elegância e sofisticação em Paris.

Filha de uma brasileira, Carmen Saint, ela é uma mulher de 61 anos, linda, glamourosa, loura, com os cabelos até os ombros (nunca mudou de penteado), mede 1,80 m e pesa 50 quilos. Betty é casada com um famoso decorador francês, e foi a musa do grande gênio da moda, Yves Saint Laurent, que a considerava sua irmã -gêmea.

Foi praticamente a maior manequim do costureiro, pois só se vestia com as roupas dele, mas sem ter jamais desfilado nem fotografado, profissionalmente, suas coleções -mas quando se falava dela, estava se falando de Saint Laurent.

Betty sempre declarou, com simplicidade, que nunca teve -e continua não tendo- a mínima ideia do que se passa na moda, pois não se interessa pelo assunto.

Jamais comprou um só vestido, pois ganhava todos de presente do seu amigo, e foi nela que ele se inspirou quando desenhou seu famoso smoking. Ela sempre se vestiu como um garoto: jeans, calças compridas, camisetas, camisas -algumas luxuosas-, casacos de couro, sapatos sem salto.

A declaração mais surpreendente de Betty, quando questionada sobre o que fez e o que faz em Paris, sua resposta foi sempre a mesma, corajosamente: nada.

OK, ela tem um marido que deve ser rico, teve o privilégio de ser a maior amiga de um grande costureiro, mas em um mundo em que todas as mulheres são obrigadas a terem uma profissão, ou a escolher entre fazer ginástica, frequentar um curso de arte, se interessar por jardinagem, pintar porcelana ou viver de almoço em almoço, de loja em loja, para matar o tempo, ela responde, corajosamente: nada.

Acho o máximo; enfim uma mulher que não está na vida para fazer o que -dizem- as mulheres têm que fazer, para terem o direito de existir. Quanto a sua vida pessoal, que foi trepidante nos anos 60, ela diz que nos dias de hoje só faz ficar em casa com o marido, com quem é casada há 30 anos, e seus quatro gatos. Fazendo o quê? Nada.

Ela não é dada às prendas domésticas, não acha a menor graça em comer -sorte a dela-, continua deslumbrante, e odeia viajar, o que só faz quando tem um objetivo definido.

Betty teve uma vida que foi o máximo da sofisticação; saía toda as noites -sempre com Saint Laurent- e passava temporadas de sonho em Marrakech, onde os dias corriam soltos na casa deslumbrante que o costureiro tinha na cidade.

Iam todos os dias ao mercado, se vestiam simplesmente, com caftans e sandálias que compravam dos artesãos locais, e assim passavam os verões, não fazendo rigorosamente nada.

Saint Laurent trabalhava, e muito: houve um momento em que desenhou 1.500 vestidos em 15 dias, sempre com Betty ao lado. Ela não se envolvia nas suas criações, mas o inspirava, e enquanto ele foi vivo, nunca se largaram.

Cada pessoa é de um jeito, algumas enlouquecem, se não tiverem o que fazer, já outras não têm a coragem de viver como mais gostariam, isto é, sem fazer nada -e isso não tem a ver com o fato de serem ricas ou não.

Estou falando da coragem de se assumir, o que Betty Catroux fez sem nenhum preconceito e sem seguir a ditadura que diz que as mulheres têm que etc. etc. Ela viveu e continua vivendo, linda e loura, fazendo o que mais gosta, isto é: nada.

danuza.leao@uol.com.br

Eliane Cantanhêde

Quem sai, quem chega

BRASÍLIA - A o advertir que o PSDB não tem candidato e sugerir uma aliança com o PSD para eleger o vice-governador Afif Domingos à Prefeitura de São Paulo, José Serra causou uma baita confusão. Ele, porém, só disse que "o rei está nu".

Serra não falou nenhuma mentira nem algo que as torcidas do Corinthians, do Palmeiras e do Santos já não soubessem. Quem tem quatro candidatos não tem nenhum.

De quebra, admitiu enfim, implicitamente, que há muito mais envolvimento dele com o PSD dos aliados Gilberto Kassab e Afif Domingos do que eles haviam assumido antes.

Se o próprio Serra não for candidato, o PSDB estará em situação bem desconfortável, apesar de governar o Estado há 16 anos e de Geraldo Alckmin ser um bom cabo eleitoral.

Ou o partido apoia o PSD na cabeça de chapa ou tem de transformar um dos quatro não candidatos em candidato. Sem garantias. O fenômeno Kassab, que saiu da lanterninha e ganhou, não acontece todo dia.

Ainda falta uma eternidade para a eleição, mas o horizonte projeta uma campanha tucana atrapalhada, assustada e cheia de divisões internas contra uma campanha unida, liderada por Lula, alimentada por Dilma e envolta pela aura da renovação.

Lula já era um eleitor forte e, com o câncer e a careca, tornou-se fortíssimo. Dilma passou a ter força política. Juntos se preparam para eleger "até um poste", imagine um ministro da Educação jovem, bonitão e virgem na política como Fernando Haddad.

Quem pode embaçar essa projeção é o peculiar Gabriel Chalita, que tem o PMDB, a simpatia não disfarçada de Alckmin e a jovialidade de Haddad. O PT vai fazer tudo para engolir Chalita e compor com o PMDB.

Se eles se unirem e Haddad vencer, Lula estará derrotando o PSDB na sua principal fortaleza e já moldando a cara e o futuro do PT. Eleito, Fernando Haddad passará a ser um nome natural na lista de opções para a eleição presidencial de 2018.

elianec@uol.com.br

Hélio Schwartsman

Safanões pedagógicos

SÃO PAULO - Safanões pedagógicos são provavelmente inúteis. Na esmagadora maioria das situações, é possível educar uma criança sem recurso a reprimendas físicas. Mesmo assim, não vejo com bons olhos o projeto da lei da palmada.

Calma, não estou defendendo o massacre dos inocentes. Pais que espancam seus filhos devem ser tratados com rigor. Só que, para esses casos, não necessitamos de nenhuma lei nova. O Código Penal e o ECA já criaram os tipos penais necessários e estabeleceram punições.

Se ainda assim há parentes que abusam, isso se deve mais à nossa dificuldade de identificar crianças sob risco e processar os responsáveis do que à ausência de normas.

Pode-se, é claro, argumentar que leis não servem só para gerar crimes e castigos, mas também para dar sinais à sociedade. No caso, a aprovação da regra seria uma forma de dizer aos pais que eles não devem recorrer à força física.

Eu talvez comprasse esse tipo de raciocínio se o fenômeno da legiferância não tivesse custos, mas não é esse o caso. É sempre arriscado abrir espaços que possam tornar o cidadão refém do capricho de autoridades. Além disso, ao aprovar uma quantidade grande de lixo legislativo, isto é, normas inócuas ou criadas para não ser cumpridas, nós desvalorizamos a noção de lei.

Cada vez mais eu concordo com o jurista alemão Friedrich Karl von Savigny (1779-1861), para quem nem vale a pena tentar codificar em leis matérias relativas a costumes. Esse tipo de regulação se dá primeiramente pelos próprios hábitos da população, depois por decisões judiciais, em nenhum caso pela vontade arbitrária do legislador.

Num país conservador como o Brasil, parlamentares são os últimos a chegar. Quando decidem consagrar em lei um princípio como o de que crianças não devem levar palmadas, é porque a sociedade já chegou a essa conclusão muito antes.

helio@uol.com.br

sábado, 26 de novembro de 2011



27 de novembro de 2011 | N° 16899
MARTHA MEDEIROS


De vestido de oncinha e plumas

Temos o direito de ficar ressabiados por postarem nossas fotos pré-históricas sem nos consultar?

Outro dia aconteceu algo que me deixou sem saber direito o que pensar. Um caso corriqueiro, mas novidade pra mim. Quando era publicitária, trabalhei por três meses numa agência. Estamos falando do ano de 1984 ou seja, 27 anos atrás.

Pois uma ex-colega da agência postou essa semana, no blog de uma confraria da qual faz parte, uma foto daquela época na qual apareço numa festa à fantasia. Uma homenagem que ela me fez, sem nenhuma intenção difamatória. Nem estou tão medonha na foto, apesar do cabelo estilo Dallas, do vestido de oncinha e da echarpe de plumas negras. Foi a primeira festa à fantasia a que fui. E a última.

Me garantiram que o blog é acessado por pouquíssimas pessoas. As confrades estavam crentes de que eu iria me comover. Mas, nascida com vários defeitos de fabricação, não me comovi. Em vez disso, considerei que a titular do blog poderia ter pedido autorização para publicar uma foto minha de 27 anos atrás. Seria atencioso da parte dela. Mas devo estar variando: quem pede licença antes de postar foto dos outros?

Lembrei de uma discussão que testemunhei entre duas amigas: uma delas havia ficado chateada por a outra ter postado a foto do seu chá de panela, em que ela aparecia completamente descomposta, mas descomposta de uma maneira que só quem já foi a um chá de panela sabe que é possível.

Já a outra amiga defendia o seu direito de postar o que quisesse, e de julgar ela mesma o que era descompostura e o que era apenas uma foto engraçada. De fato, era uma foto engraçada. Lembro que pensei: “Quá, quá, quá, que engraçado – ainda bem que não sou eu”.

Agora sou eu. E, se ainda não chegou sua vez, aguarde.

Tenho plena consciência de que, cada vez que tiro foto com um leitor numa sessão de autógrafos, aquela foto estará no Facebook em poucos segundos. Tudo bem. Meu trabalho faz com que me exponha, e sei que não há controle sobre a propagação de imagens.

E, mesmo quando não é um evento profissional, tudo bem também: ao viajar com amigos ou ir a um churrasco, sei que serei fotografada junto ao grupo e logo estarei num álbum virtual, pra quem quiser espiar. Qualquer pessoa que se deixe fotografar, hoje, sabe que é assim. Se quiser discrição, melhor evaporar na hora do clique.

Não tive essa prerrogativa em 1984. Naquela época, nem em meus sonhos mais premonitórios poderia supor que o conceito de privacidade em breve estaria condenado à morte e que o “cá entre nós” seria substituído pelo “cá entre todos”.

Por isso, a dúvida: temos o direito de ficar ressabiados por postarem nossas fotos pré-históricas sem nos consultar ou dá no mesmo se a foto foi tirada 27 anos atrás ou ontem à noite? Suspeito que estou sendo preciosista. Vaidosa. Tá bom: chata. Mas queria compartilhar essa indagação.

Quanto à ex-colega, sem mágoas. Assimilei. Nenhum problema de eu circular pela internet de oncinha e plumas. Ao menos estou vestida, ufa.

marthamedeiros@terra.com.br


27 de novembro de 2011 | N° 16899
AS MORENAS


Gabriela: a velha e a nova

A Sonia Braga dos anos 1970 e a Juliana de agora: semelhanças e diferenças

Após disputa acirrada, a atriz Juliana Paes foi confirmada pela Globo como a Gabriela da nova versão da novela de 1975, que vai ao ar em 2012. Com o sucesso da releitura de O Astro em 2011, a notícia da regravação de Gabriela agitou os bastidores da emissora carioca a novela vai ocupar a nova faixa de novelas, às 23h.

Segundo boatos, o nome de Juliana chegou a ser descartado por conta da idade (ela teria oito anos a mais do que Sonia Braga na época), mas o fato é que o diretor-geral Roberto Talma nunca desistiu dela. Segundo o diretor Mauro Mendonça Filho, a atriz tem a mesma imagem sexy, morena e brejeira que Sonia Braga tinha na época.

O roteiro está sendo escrito por Walcyr Carrasco, a partir do livro de Jorge Amado – ou seja, não será um remake da novela dirigida por Walter Avancini e Gonzaga Blota, mas uma adaptação.

– Mas, como em O Astro, vamos refazer algumas cenas inesquecíveis. A da Gabriela subindo no telhado da igrejinha, com certeza, entra – adiantou Mendonça.

Com Gabriela devidamente escalada, seguem as apostas sobre quem ficará com os demais papéis marcantes da trama. Wagner Moura, por exemplo, é apontado nos bastidores como o novo Nacib (no original, vivido por Armando Bógus) e Regina Duarte, como a nova Maria Machadão (no original, interpretada por Eloísa Mafalda).

A novela está prevista para estrear no meio do ano que vem, em uma homenagem ao centenário de Jorge Amado, comemorado em agosto.


27 de novembro de 2011 | N° 16899
VERISSIMO


Ninguém conseguia consolar o orador depois do seu discurso. Depois do seu vexame

Vexames

Acontece. As pessoas se enganam. Se atrapalham. Fazer o quê? O negócio é esquecer e tocar pra frente. Mas ninguém conseguia consolar o orador depois do seu discurso. Depois do seu vexame.

– Onde eu estava com a cabeça? Onde?

E ele batia com o punho na própria cabeça, como se quisesse puni-la.

Alguém disse:

– Acho que a maioria nem notou.

– Como não? Houve risadas. Vi gente perdendo a respiração com a surpresa. Gente indignada. E o homenageado? Ele notou. Tanto que nem me cumprimentou no fim do discurso.

– Não foi tão ruim assim...

– Foi. Foi horrível. Não vou poder mais olhar na cara de ninguém que estava lá. Muito menos do homenageado. O que foi que me deu, meu Deus?

– Foi um erro perfeitamente compreensível...

– Compreensível? Dizer “lupanar” em vez de “luminar”?

– As palavras são parecidas...

– Não são. E mesmo que fossem, não justificaria o meu erro. Como é que eu fui chamá-lo de “um lupanar da República” em vez de “um luminar”? Um lupanar da República!

– Calma, calma.

– Acho que vou emigrar.

A FRASE

É agora, pensou ele. Coragem. O pior que pode acontecer é ela me mandar passear. E aí eu morro. Não, não morro. Confiança, cara. Vai lá, antes que ela vá embora ou chegue outro antes de você, sente ao lado dela e a vida perca todo o sentido. Pense numa frase.

A primeira frase é importantíssima. Nada que a espante. Nada de conquistador barato, nada de Don Juan de shopping center. Apenas um homem abordando uma mulher numa praça de alimentação, tudo muito adulto e natural, tudo muito século 21, sem stress ou segundas intenções.

Alô, não pude deixar de notar que temos algumas coisas em comum. Somos os dois bípedes de sangue quente e... Não. Quem sabe o clássico “eu não conheço você de algum lugar?”. Tão banal e batido que talvez ainda funcione.

Ou: “Eu estava ali, olhando você, certo de que já a tinha visto em algum lugar, na televisão, no cinema, num concurso de beleza, e aí me deu o estalo: eu já sonhei com essa mulher! Você saiu do meu sonho. Vou cobrar direitos autorais”. Não. Bobagem. Passo por ela como quem não quer nada, querendo tudo, e comento: “Um shopping é a República Ideal do Platão com estacionamento, cê não acha não?”.

Aí ela sorri, e começa o romance, e nos lembraremos deste momento para sempre, ou ela não entende e me vira a cara. E eu morro. Não. Pego a minha Coca zero no balcão, levo até a mesa dela, pergunto se posso sentar ao seu lado, ela deixa, eu sento, sorrio e digo:

– Não é sempre que se pode sentar com realeza.

Boa frase, boa frase. E ele vai.

– Posso sentar aqui? Não tem outro lugar vago.

– Pode.

– Obrigado.

Ele senta e diz:

– Não é leza que se pode sentar com reasempre...

– O quê?

– Esquece, esquece.


27 de novembro de 2011 | N° 16899
PAULO SANT’ANA


El reloj

Quando se é feliz assim como suspeito que andei sendo por três dias, o tempo tinha que parar. Quando chega a felicidade, o relógio devia parar.

Como diz o célebre bolero El Reloj, para que nunca amanheça, o relógio devia parar.

Para tornar perpétua aquela noite feliz, o relógio tinha de fazer o favor de parar.

Não se tinha de ouvir mais o tique-taque do relógio quando se instala a felicidade dentro de nós.

Para que nossa amada nunca mais se vá para longe de nós, o relógio devia parar.

Para que essas horas de encantamento e realização não se afastem de nós, o relógio devia parar.

É muito perigoso para quem está feliz que o relógio continue trabalhando.

O relógio, para melhorar a vida, tinha de ser um cronômetro, para que se pudesse pará-lo. E só religá-lo quando a felicidade fosse embora.

Que pare o tempo enquanto essa felicidade indizível está tomando conta de mim, que não se contem mais as horas, que paralise o calendário enquanto eu estiver usufruindo essa ventura inédita e embriagadora.

Examinando melhor agora, à luz desses argumentos, noto que o relógio é sério inimigo da felicidade.

É o relógio que nos obriga a acordar cedo para irmos trabalhar. É o relógio que faz acabar o baile em que dançamos felizes nos braços do nosso par amoroso.

É o relógio que ameaça que as nossas férias vão acabar daqui a três dias. E é o relógio que anuncia que daqui a três meses teremos de nos casar. O relógio só nos traz péssimas notícias.

Como também faz intuir a letra do bolero, beija-me, beija-muito, como se fosse esta noite a última vez. Beija-me depressa, antes que prossiga esse maldito e ameaçador tique-taque a apavorar o nosso futuro.

O tique-taque do relógio é que nos acorda para a temeridade que se encerra na vida.

Ele é que nos faz sentir finitos, ninguém está a salvo dele. Se não existisse o relógio, não sobreviria a velhice, viveríamos permanentemente sob o sopro da juventude.

Se não existisse o relógio, não teríamos nunca o sobressalto da incerteza, as espadas não estariam jamais suspensas sobre nossos pescoços.

Tão aparentemente necessário esse objeto chamado relógio, mas tão nocivo e devastador se torna quando lhe damos corda e ele começa a tiquetaquear.

No paraíso, tenho certeza que não tem relógio. Aliás, é interessante observar que nos cassinos nunca se viu sequer um relógio.

E, por outro lado, não há lugar em que o relógio seja mais necessário, até imprescindível, do que numa prisão: os detentos têm que adivinhar o tempo que falta para eles cumprirem sua pena.

Isto me dá a ideia de que nos países em que existe a pena de prisão perpétua, não é necessário o relógio nas celas das prisões.

Quem foi o homem que inventou o relógio?

Certamente o inventou quando notou que o tempo nunca cessava.

Per omnia saecula saeculorum.


França e Alemanha preparam novo pacto de estabilidade do euro

Berlim, 26 nov (EFE).- França e Alemanha preparam um novo pacto de estabilidade econômica na Europa no formato de 'acordo entre países' para o início de 2012, modalidade potencialmente mais eficiente que a tradicional aprovação por unanimidade no âmbito da União Europeia (UE), informa neste sábado uma reportagem do jornal alemão 'Bild'.

Citando fontes do meio diplomático, o jornal explica que esta nova manobra do eixo franco-alemão tem dupla vantagem: é mais rápida que um acordo que exija a ratificação de todos os 27 Estados-membros da UE para entrar em vigor e exerce maior pressão sobre os países reticentes.

A reportagem argumenta que o plano reduz a capacidade de oposição dos Estados-membros céticos. Em caso de emergência, essa modalidade de acordo poderia inclusive contornar uma eventual oposição da Comissão Europeia (órgão executivo da UE).

O Acordo de Schengen, que permite a livre circulação de pessoas entre os países signatários, é um exemplo de acordo entre nações europeias desvinculado dos tratados da UE, os quais necessitam ser ratificados por todos os 27 países do bloco para entrar em vigor.

De acordo com o 'Bild', a chanceler alemã, Angela Merkel, e o presidente francês, Nicolas Sarkozy, mantêm negociações secretas e devem apresentar este novo pacto de estabilidade do euro ao restante dos membros da UE na próxima cúpula de líderes do bloco, prevista para 9 de dezembro.

Em seguida, ambos pediriam aos países da UE - e especialmente aos 17 membros da zona do euro - que assinem este acordo o mais rápido possível, com o objetivo de efetivá-lo até o início do ano que vem, preferivelmente até fevereiro.

O acordo, sempre segundo o 'Bild', acalmaria o nervosismo dos mercados financeiros, nos quais os países da UE pagam juros cada vez mais altos para leiloar títulos da dívida soberana, até níveis dificilmente sustentáveis a médio prazo, como no caso da Itália e da Espanha.

A proposta de Berlim e Paris provocaria protestos de alguns governos da UE. A mais provável queixa seria de Londres, que 'não pertence à zona do euro', mas 'não quer ser deixada de lado', complementa a reportagem do jornal alemão.

EFE

RUTH DE AQUINO

O que vale mais: um preso ou um estudante?

Há carência de recursos em escolas e prisões. O absurdo é a negligência do Brasil com o conhecimento

RUTH DE AQUINO é colunista de ÉPOCA raquino@edglobo.com.br (Foto: ÉPOCA)RUTH DE AQUINO é colunista de ÉPOCA raquino@edglobo.com.br

Alguns números falam mais do que mil palavras. No Brasil, um preso federal custa o triplo de um aluno do ensino superior. E um preso estadual demanda quase nove vezes o custo de um estudante do ensino médio. A princípio, o que uma coisa tem a ver com a outra? Tudo. Há carência de recursos tanto em escolas quanto em prisões. Mas o absurdo maior é a negligência do Brasil com o saber, com o conhecimento.

Quando essa equação vai fechar? Vamos gastar muito mais com os presidiários se quisermos tornar as cadeias brasileiras menos degradantes. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, prometeu que “agora vai”. Não sei se você, assim como eu, sente vergonha ao ver as cenas de mãos saindo pelas grades.

São seres humanos empilhados, espremidos e seminus. É um circo dos horrores. E piora nos rincões remotos do Norte e Nordeste, longe das câmeras. Mesmo assim, o Estado gasta mais de R$ 40 mil por ano com cada preso em presídio federal. E R$ 21 mil com cada preso em presídio estadual.

Esses valores, absolutos, não significam nada para nós. Mas, se dermos uma olhada no nível de instrução dos 417.112 presos, ficará claro como os dois mundos, o das escolas e o das prisões, estão intimamente ligados. Dos nossos detentos, mais da metade (254.177) é analfabeta ou não completou o ensino fundamental.

O menor grupo é o que concluiu a faculdade: 1.715 presos. Esses números estão no relatório do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) do ano passado. Os presídios são um retrato de nossa sociedade. Do lado de fora, poucos têm acesso a universidades. E criminosos ricos e influentes podem pagar bons advogados.

Poderíamos ficar resignados a nosso destino de país pobre em desenvolvimento humano. Poderíamos também construir macropresídios seguros para prender cada vez mais gente em cômodos amplos, com direito a boa alimentação, pátios, esportes e reeducação. Poderíamos melhorar a gestão penitenciária e reduzir a roubalheira. Em algumas cidades, os presos começam a ser soltos por falta de espaço.

O mais complicado de tudo, mesmo, é prevenir a criminalidade. Porque seria preciso investir forte na educação universal e de qualidade. Os últimos números do IBGE, do Censo 2010, deixam clara uma urgência: entre nossas crianças com 10 anos de idade, 6,52% são analfabetas. Você, que lê este artigo, quando se alfabetizou? Provavelmente entre os 5 e 7 anos de idade, como acontece nas maiores economias do mundo – aquele grupo privilegiado em que o Brasil se insere com orgulho.

Há carência de recursos em escolas e prisões. O absurdo é a negligência do Brasil com o conhecimento

Essa criançada brasileira que não sabe escrever nem seu nome não faz ideia de que está trancada na prisão da ignorância. Sem cometer crime algum, as crianças foram condenadas à marginalidade perpétua. Isso não significa que serão desonestas ou hóspedes dos presídios-modelos que o ministro da Justiça promete construir. Mas que chance o Estado dá a elas? Esse porcentual de 6,52% nada tem a ver com heranças malditas. São crianças que nasceram na década de Lula.

Por mais que se comemorem avanços na Educação, em uma década o total de analfabetos no Brasil caiu menos de 1 milhão. Eram quase 15 milhões e hoje são 14 milhões que não sabem ler ou escrever – esse total equivale a duas vezes a população inteira do Paraguai.

Em dez anos de investimento e dois mandatos de governo do “tudo pelo social”? Não dá para festejar. Entre os brasileiros com mais de 15 anos, continuamos mais analfabetos que Zimbábue, Panamá e Guiné Equatorial.

As disparidades regionais são outra preocupação. Em analfabetismo, segundo o Censo 2010, o Maranhão do clã Sarney está em 24º lugar e só perde para Paraíba, Piauí e Alagoas. Há 19,31% de analfabetos no Maranhão, porcentual maior que na República do Congo, na África.

No programa do PMDB em rede nacional de televisão, na quinta-feira passada, o presidente “vitalício” do Senado, José Sarney, afirmou: “O bom homem público olha e vive para seu país”. Eu já ficaria satisfeita se o homem incomum, blindado por Lula e aliado de Dilma, olhasse para o Estado onde nasceu.

Em mortalidade infantil, o Maranhão da governadora Roseana Sarney só perde para Alagoas. De cada 1.000 maranhenses que nascem, 36 bebês morrem antes de completar o primeiro ano de vida. Não sei como a dinastia que controla esse Estado há 45 anos consegue dormir em paz. No programa do PMDB, Roseana disse que uma mulher no poder “significa uma visão mais humana de governar”.

A esperança é que o Brasil amadureça e passe a investir logo em suas crianças e seus estudantes para um dia, talvez, reduzir a superlotação dos presídios. Não é uma fórmula infalível, mas parece ser uma aposta sensata.


26 de novembro de 2011 | N° 16898
ANTONIO AUGUSTO FAGUNDES


Martín Fierro e o Rio Grande do Sul (2)

Martín Fierro não é o meu herói predileto. Chora demais, não demonstra arrependimento pelo que fez e sua relação com Cruz é marcada por uma efusão emocional em tudo distante da alma do gaúcho. Como se não bastasse, em nenhum momento sente falta de mulher...Oscilando entre a depressão e o ódio, Martín Fierro é um homem perigoso, bipolar, diríamos hoje.

Mas o poema Martín Fierro, sim, é o meu poema predileto. Pela força incomum de suas imagens, pelo correto uso da linguagem e da vivência campeira, pela habilidade de compor um cenário político e social que serve de moldura e de assunto ao mesmo tempo e, principalmente, pela dimensão atemporal que o sofrimento do homem encontra no cantar de um drama regional que se amplifica e se universaliza. É literatura de uma beleza sem igual, crua e pungente como a beleza do pampa.

São conhecidas traduções do poema entre nós. Por que, então, fazer mais uma tradução do Martín Fierro para o português? Afinal, já existem a erudita tradução de João Otávio Nogueira Leiria, que lhe custou 20 anos de trabalho, a tradução de Walmir Ayala, que privilegia o aspecto literal da obra e a tradução do meu amigo Leopoldo Jobim, com a primeira parte do poema.

Agora, eu quis fazer uma tradução a mais simples possível, deletando completamente expressões mais eruditas, “agauchando” mais o poema.

Foi um desafio que me lançou Vinícius Brum, da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Traduzi a primeira parte do poema durante o mês de janeiro de 2009, praticamente em quatro semanas, com a ajuda da minha mulher, Ana Lucia Piagetti Fagundes. Aí, o Vinicius Brum recebeu a tradução e simplesmente me exigiu a segunda parte!

Mas aí eu já tinha ganho o espírito do poema e na segunda parte, foi inestimável a colaboração do meu primogênito Antonio Augusto Fagundes Filho, que também é poeta e poliglota, homem de uma cultura invejável, universalista. Sem eles, eu não teria ido adiante e a eles o meu mais sincero reconhecimento.

Não sou manso de computador, uma ferramenta que os mais jovens dominam perfeitamente. Ao meu filho dedico esse trabalho com a com a esperança de que ele continue o meu esforço em defesa da cultura gaúcha e o transmita ao meu neto Ariel e aos bisnetos que possam vir.

Eu chamo isto de amor.


26 de novembro de 2011 | N° 16898
PAULO SANT’ANA | CÂNDIDA SCHAEDLER*


Texto finalista do concurso Viver um dia de Paulo Sant’Ana, selecionado pelo titular da coluna para publicação na edição impressa de Zero Hora.

*Estudante do 3º ano do Ensino Médio, 17 anos, de Harmonia

Saudade onírica

Durante minha habitual sesta na redação de Zero Hora, tive um sonho muito estranho. Em parte, gostaria que ele fosse premonitório, mas sei que foi apenas minha fértil imaginação habitando até meu inconsciente. Porém, gostei tanto desse sonho, que vou compartilhá-lo com meus leitores:

Estava caminhando por uma Porto Alegre limpa, organizada, em que todos os transeuntes cumprimentavam-se uns aos outros com um educado bom-dia e um sorriso agradável. Os porto-alegrenses também caminhavam despreocupados, com ar satisfeito e sem medo de assaltos.

De repente – sonhos não têm sentido nem obedecem à ordem cronológica –, estava dentro do meu carro, dirigindo-o tranquilamente, em um trânsito sem engarrafamentos e no qual os motoristas se respeitavam. Em nenhum momento, outro carro cortou minha frente, buzinou porque eu andava dentro dos limites de velocidade ou ultrapassou o sinal vermelho.

Ao chegar à redação de ZH e entrar em minha sala, senti o cheiro da Páscoa, aquele ar característico que marcou de forma especial a minha infância. Vi-me feliz da vida por ter recebido os chocolates do coelho pascal e indo com a cestinha de vime comparar os meus doces com os dos meninos da rua onde morava.

Que saudade da infância tomou conta de mim naquele momento!

E, como se não fosse o bastante, ao abrir o jornal só li boas notícias. A Copa do Mundo, que já havia sido realizada no Brasil, gerou bons lucros para o país e trouxe melhorias que perduraram e melhoraram consideravelmente a vida de muitos brasileiros.

O sistema de saúde também havia melhorado muito. Filas quase não existiam mais e os políticos investiram corretamente nessa área. O nível de educação da população brasileira também estava altíssimo, um dos melhores do mundo. Inacreditável!

Mais incrível ainda foi chegar à seção de esportes e ler que o Grêmio estava em primeiro lugar na tabela do Brasileirão e que, no ano anterior, havia se consagrado campeão do Mundo!

Na melhor parte, quando vi que os coqueiros diretamente ligados à minha infância estavam bem no meio de meu escritório e eu estendia a mão para apanhar um coquinho, acordei com um sobressalto ao sentir um colega sacudindo-me com força: “Sant’Ana, tu estavas andando enquanto dormias. Chegaste até a estender a mão para o nada, como se quisesses pegar algo. Achei estranho”.

Certa vez, escrevi que “na vida, a fantasia sempre dá de goleada em prazer na realidade”. Bem que eu gostaria de ter ficado dormindo mais um pouco. Pelo menos só até apanhar um coquinho e me deliciar com o doce da minha infância mais uma vez.