segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011


José J. Camargo *

28 de fevereiro de 2011 | N° 16625
ARTIGOS


Adeus, meu quase amigo!

A divisão original parecia simples: os amigos verdadeiros, aqueles que não mudam o jeito de nos querer depois que tudo de bom nos acontece, esses que são raros e preciosos, as figuras com quem convivemos sem emoção extremada, esses que são numerosos e inevitáveis, e os inimigos, que sempre queremos que sejam poucos, mas não conseguimos evitar que existam, nem desconhecer que pela estatura deles se mede o tamanho do que fazemos.

Com a vida e os encontros fortuitos descobrimos que há outro grupo, importante, mas pouco prestigiado: o dos que poderiam ter sido nossos amigos de verdade! E quando um deles se vai, aguça a sensação de perda irreparável.

Quase fui amigo de Moacyr Scliar.

Nosso primeiro contato foi traumático e inesquecível. Ele sofrera um acidente de carro e com várias fraturas de costelas foi transferido do Pronto Socorro para a UTI do Pavilhão Pereira Filho num final de tarde. Depois de drenado o pneumotórax e anestesiadas as costelas, ainda continuava respirando com esforço.

Com uma oxigenação satisfatória foi decidido observá-lo por algumas horas. Naquela noite fui a uma festa e no meio da madrugada, antes de voltar para casa, decidi dar uma passada na UTI para ver como andavam as coisas. Observei-o dormindo e depois de algum tempo ele despertou, me viu nos pés cama e sorriu. Sedado que estava, voltou a dormir.

Uma semana depois, quando recebeu alta, lhe perguntei como tinha sido este traslado agudo entre um indivíduo normal que passeia na rua e um paciente que entra numa emergência com a sensação de morte iminente. Ele me descreveu o medo que sentira e referiu, espontaneamente, que nunca esqueceria a sensação de segurança ao descobrir dois olhos grandes e serenos a vigiar seu sono no meio da madrugada.

Depois disso organizamos duas jornadas sobre a literatura na medicina, na UFCSPA, e aí descobrimos que tínhamos algumas paixões literárias em comum, a começar pela Morte de Ivan Ilitch, onde Tolstoi discute a morte desejada pela incapacidade da família e seus amigos de conviver com o sofrimento sem perspectiva.

Quando entrei no jogral explicando aos alunos que o relato era cruel e podia parecer exagerado, mas que quem convive com doentes terminais, e especialmente os que têm dor de difícil controle, entende o drama de Tolstoi e a solidão desesperada de Ivan Ilitch, encontrei um brilho de encantamento nos olhos do Scliar, aquele brilho que expressa identidade de sentimentos.

Como seres apressados e itinerantes, nos habituamos aos papos rápidos e compactos de aeroporto, onde uma vez, em São Paulo, me agradeceu muito por ter interrompido a abordagem de um fã que resolvera lhe contar as últimas piadas do humor judaico, logo para ele, que se orgulhava de conhecer todas elas!

No último encontro, no Salgado Filho, combinamos um encontro na Academia Nacional de Medicina, onde ele faria uma conferência sobre o humor médico, esse inesgotável manancial que permeia as relações humanas sacudidas pela tragédia, mas sempre embaladas pela esperança.

Com sua morte, a tristeza de que perdemos esse último riso, e a massacrante sensação de que poderíamos ter convivido mais.

Que pena, meu quase amigo!

* Professor, membro da Academia Nacional de Medicina


28 de fevereiro de 2011 | N° 16625
LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL


Música ao Sul II

No último inverno foi possível registrar nesta coluna um extraordinário acontecimento em Bagé, o Festival Internacional Música no Pampa. Música erudita, diga-se. Aquilo que popularmente se conhece por “música clássica”, ou “de concerto”. É a metade Sul recuperando o espaço que sempre lhe coube nas artes rio-grandenses.

Isso acontece por várias causas, a que não está alheia a nova Universidade do Pampa e a ação das diferentes comunidades, por meio das prefeituras, associações e pessoas operosas que decidiram reerguer esse espaço tão pleno de História e cultura.

A bela notícia deste verão é o I Festival Internacional Sesc de Música promovido pelo Sesc em Pelotas, contando com o apoio de entidades públicas e privadas. Uma ousadia. Um atrevimento, trazer músicos de grande nomeada dos quatro cantos do mundo, sabendo-se as imensas dificuldades financeiras e operacionais que isso representa. Apenas para uma ideia: um violoncelista deve receber duas passagens aéreas, uma para si e outra para seu instrumento.

Nada impediu a realização dessa ousadia. Sob o comando artístico do maestro Evandro Matté e contando com gente trabalhadora como Cleonice Bourscheid na Coordenação de Logística e Comunicação – e honra aos demais, que o espaço não permite nomear – o evento catalisou as atenções de Pelotas e municípios vizinhos. O modelo foi o canônico de festivais semelhantes, com oficinas, audições de câmara e concertos públicos.

Este ainda previu e realizou atividades de inclusão social. Os locais das apresentações foram variados, como o Hospital Municipal, o Conservatório da Ufpel, o teatro Guarani e, para o exuberante concerto de encerramento, a Catedral de São Francisco de Paula.

Pelotas inundou-se de música por duas semanas inteiras.

Que Pelotas é uma cidade voltada para a cultura ninguém duvida. Seu Conservatório é lendário, impulsionador de talentos e lugar de ensino de mestres internacionais.

O Festival Internacional Sesc Música é mais uma animadora notícia que vem do Sul. Uma notícia musical. Mais animadora ainda é a notícia revelada por Silvio Alves Bento, Gerente de Educação, Assistência e Cultura do Sesc: em 2012 virá o II Festival.

Sim, há música ao Sul. Ouçamos: ela percorre as coxilhas.


28 de fevereiro de 2011 | N° 16625
PAULO SANT’ANA


Dia de enterros

A cena se passou na porta do Paraíso, ontem de madrugada.

Jeová estava na porta, esperando os convivas, quando surgiu o primeiro do dia, o escritor Moacyr Scliar.

Jeová cobriu Scliar carinhosamente com seu manto e disse:

– Moacyr, que mais eu podia exigir de ti que tu não cumprisses? Exigi que fosses filho agradecido e pai dadivoso e tu cumpriste. Exigi que fosses marido fidelíssimo e cumpriste. Exigi que fosses colega franco e leal, cumpriste.

Exigi que fosses grande nas letras e nas tradições judaicas e cumpriste. Que mais eu poderia exigir de ti, Moacyr, que não cumprisses? Pois até isso eu te fiz, exigi algo impossível de ti, mortal Moacyr: que fosses imortal. E até isto tu conseguiste ser, Scliar. Não havia mais o que exigir de ti. Entra e sob este teto encontrarás o reconhecimento divino.

É um tempo de falecimentos. O que se vai fazer? Morreu também ontem, na mesma hora do Scliar, o ex-senador Octávio Cardoso, marido da senadora Ana Amélia Lemos.

Eu o encontrava sempre nas festas, bonachão, sorridente, o espírito apurado, vai deixar saudade entre os que privaram com ele.

A julgar pelo número de doenças que tenho, o próximo enterro deverá ser o meu.

Eu falei isso ontem no velório do Scliar e me lembrei que, apesar das 16 doenças que tenho, três graves, continuo escrevendo esta coluna.

Então várias pessoas me disseram, consoladamente, que o que me ergue e me mantém vivo é justamente isto: trabalhar, mesmo estando doente.

Mas a respeito do meu enterro, que deverá ser o próximo, quero lembrar que vou querer presente, além dos meus amigos e de meus leitores, um banjo.

Eu preciso de um banjo no meu enterro, além dos cavaquinhos e violões, um banjo.

Vocês sabem o que é um banjo, creio. É aquele instrumento tipo bandolim que, no entanto, tem um couro esticado atrás das cordas.

Um banjo será inesquecível com seus acordes roucos no meu enterro.

Essa mania vem da infância, do bairro Partenon.

Não quero morrer nem em janeiro nem em fevereiro: o pessoal fica na praia e não vem a enterros.

Quero morrer na primavera, todo mundo em Porto Alegre, porque quero casa cheia no meu enterro.

Não sei por que quero que sirvam vinho do Porto no meu velório.

Vinho do Porto e doces bem-casados. É uma mania de defunto que eu tenho.


28 de fevereiro de 2011 | N° 16625
L. F. VERISSIMO


Risando

Minha neta já está com um vocabulário de tribuno, mas às vezes precisa improvisar. No outro dia me contou que tinha visto uma coisa engraçada na rua e disse:

– Eu risei! Não deixava de haver lógica no erro. Quem dá risada, risa.

Você pode até argumentar – se for um avô de fé – que rir e risar não são a mesma coisa. Nossa lexicógrafa precoce pode muito bem ter inaugurado um novo verbo, de grande utilidade na distinção entre dois tipos de reação. Pois não se ri e se risa das mesmas coisas.

Há o que é para rir e há o que é para risar. Rir pode ser um reflexo nervoso causado por alguém (o Kadafi) ou a alguma coisa (a política brasileira), risar pode ser uma pura expressão de prazer.

Você ri com ironia, ri com desdém ou ri para não chorar, mas risa com gosto, risa do que lhe diverte ou agrada. As razões para rir se multiplicam, as razões para risar escasseiam. Mas espero que minha neta só encontre razões para risar na sua vida.

Motivos para rir de nervosos não faltam no norte da África e no Oriente Médio, onde está-se agora em compasso de espera, um termo militar (ou carnavalesco?) que significa “E agora?” Marchar para que lado, depois que os ditadores foram derrubados ou estremecidos?

A melhor hipótese é que a revolta tenha sido mesmo modernizadora e não caia nas mãos do radicalismo islâmico. A pior hipótese é que tudo se radicalize, desde o uso do petróleo como arma política até o endurecimento contra Israel, com a consequente radicalização de Israel. O que houve por lá foi uma revolução que ainda não se entendeu bem. Enquanto isto, segue o compasso de espera.

Entre os já derrubados e os estremecidos, Kadafi é o que mais se aproxima da imagem clássica do déspota levantino criada pelo imaginário imperialista, metade sinistro e metade bufão.

Sua vaidade e suas poses sintetizam, como caricatura, o tipo – mas no evidente prazer com que veste seus trajes militares e cerimoniais Kadafi evoca outra figura estranha, o pseudo árabe inglês T.E.Lawrence, que também gostava de se ver no espelho.

E Lawrence evoca todo aquele período em que o imperialismo europeu desenhava o mapa da região, inventava países e criava reis, e pensava ter estabelecido a paz para sempre.

domingo, 27 de fevereiro de 2011


DANUZA LEÃO

Tropa de elite

A presidente Dilma simplesmente se levantou e saiu, seguida do seu séquito. Como assim?

FOI BONITA A FESTA, pá.

A nata do empresariado e do jornalismo esteve presente na comemoração dos 90 anos da Folha, na Sala São Paulo. Marcada para as 19h30, a noite se estendeu até a meia-noite, devido ao atraso das autoridades, faz parte. Mas são Pedro ajudou, e a tempestade diária, com direito a raios e trovões, nesse dia chegou mais cedo, foi às 3h da tarde.

Digna de registro a elegância dos convidados. Impossível não pensar que, se fosse no Rio, haveria homens e mulheres de jeans rasgados e tênis, como costumam frequentar o Municipal. Num universo de 1.500 pessoas, apenas uns três homens, se tanto, usavam camisa esporte; todos os outros, terno escuro e gravata, ponto para São Paulo.

Foi bacana o ato multireligioso, mas o cônego Aparecido Pereira não precisava -e não devia- fazer a plateia ficar de pé e rezar o Pai Nosso, já que os outros líderes religiosos não o tinham feito. Afinal, nem todos ali eram católicos.

Na hora de se levantar para fazer seu discurso, a presidente Dilma -distraída- não sabia para que lado ir, se esquerda ou direita. Elementar: faltou um assessor para acompanhá-la até a escada que levava ao palco.

Dilma não é boa de improviso; é bom mesmo que ela evite falar em público para não errar, como aconteceu. Mas em compensação, deve ter emagrecido uns bons cinco quilos; qual foi a dieta, presidente?

Se quiser ficar melhor ainda, precisa corrigir sua postura, pois dá a impressão de estar levando o mundo nos ombros. Pilates três vezes por semana resolveria lindamente o problema.

Legal ela ter mencionado o nome de FHC em seu discurso, mas o de Serra foi forçação de barra. Afinal, no momento, o ex-governador não ocupa nenhum cargo público; não convenceu.

Depois dos discursos, chegou a grande hora: a Osesp, Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, orgulho da cidade, apresentaria, regida por Isaac Karabtchevsky, a "Sinfonia nº 6", de Villa-Lobos. Mas eis que se vê um pequeno agito onde estavam as autoridades; seria um atentado?

Não; a presidente simplesmente se levantou e saiu, seguida do seu séquito. Como assim? Assim mesmo: ela se foi antes da apresentação da orquestra. E antes que eu me esqueça, elegantíssima, perfeita, a casaca do regente. O autor, maestro, o autor.

Voltando: foi uma grande indelicadeza, que fica maior ainda quando feita pela presidente da República. As pessoas se olhavam sem acreditar, e imagino que os músicos da orquestra tenham ficado decepcionados.

Afinal, teria sido uma grande honra para eles se apresentar diante da mais importante autoridade da nação. E quando ouvimos, emocionados, o Hino Nacional, ficou mais pesada ainda a descortesia. Pegou mal.

Vamos falar a verdade: a sinfonia foi difícil de ser acompanhada por ouvidos mais leigos, mas o Hino, tocado por uma orquestra de tal ordem -afinal, só estamos acostumados a ouvi-lo em estádios de futebol- foi maravilhoso.

Na saída, os comentários. Um deles eu ouvi, e guardei para contar: duas pessoas -uma petista, a outra tucana- comentavam sobre a saída de Dilma (era o assunto geral).

Uma delas disse que a presidente saiu porque não sabia que a orquestra ia tocar o Hino Nacional, que não tinha sido culpa dela. A outra respondeu: "mas Alckmin, FHC e Serra ficaram". A primeira continuou defendendo Dilma, dizendo que se ela não sabia, era culpa do cerimonial, ao que a outra respondeu: "e desde quando o PT tem cerimonial?"

FERREIRA GULLAR

O povo desorganizado

A fagulha que incendiou a nação egípcia foi o suicídio de um jovem, em resposta à repressão policial

O FIM da ditadura de Hosni Mubarak, no Egito, pode suscitar indagações acerca das consequências que podem advir dela, mas num ponto todas as opiniões parecem coincidir: foi o povo desorganizado que pôs abaixo o regime autoritário que durara 30 anos.

No Egito havia -e ainda há- numerosos partidos e organizações sociais que, de uma maneira ou de outra, vinham atuando na vida do país.

Mas não partiu de nenhuma delas a mobilização popular que, concentrada na praça Tahrir, durante 18 dias, obrigou o ditador, obsessivamente apegado ao poder, a abrir mão dele. A fagulha que incendiou a nação egípcia foi o suicídio de um jovem, em resposta ao abuso da repressão policial.

Esse gesto desesperado despertou a revolta inicialmente de algumas dezenas de jovens, depois de centenas, de milhares e finalmente de milhões de cidadãos. Ignorando o poder repressivo do regime, foram para a rua, ocuparam a praça e receberam o apoio do povo egípcio.

O povo desorganizado se mobilizou e através da internet passou a coordenar suas ações e seus objetivos. Parece um milagre? Pode parecer, mas não é. A razão disso é que o povo é, de fato, o detentor do poder, esteja ele organizado ou não.

Essa rebelião popular espontânea leva-me a refletir sobre o que chamo de "povo desorganizado". O que é, então, o povo organizado? Certamente aquelas parcelas da população que atuariam nos sindicatos e em outras entidades profissionais, estudantis e culturais. O objetivo de tais organizações, ao serem criadas, é defender os interesses das categorias e classes sociais que representam.

A verdade, porém, é que isso nem sempre acontece e pode até mesmo ocorrer que tais organizações passem a se valer de sua suposta representatividade para atuar contra os interesses que deveriam defender.

Isso pode acontecer de várias maneiras, especialmente nos regimes autoritários. Por exemplo, no Brasil, quando os militares tomaram o poder, prenderam as lideranças sindicais e as substituíram por agentes do regime. A partir de então, essas entidades, que deveriam representar o povo organizado, agiam em sentido oposto, isto é, impedindo toda e qualquer manifestação contrária ao governo.

Por isso que a primeira grande manifestação popular contrária à ditadura -a passeata dos Cem Mil- nasceu da mobilização espontânea de intelectuais e artistas que, em face da repressão policial, se concentraram num teatro e dali apelaram para a solidariedade da população, que aderiu a eles.

Mas essa noção da potencialidade política do povo desorganizado deveria ser acionada também no estado democrático, quando as entidades, que deveriam lutar pelos direitos da população, são cooptadas pelos que exercem o poder.

No Brasil, temos um péssimo exemplo: o de Getúlio Vargas, que, ao criar o imposto sindical, anulou a combatividade dos sindicatos de trabalhadores. Foi uma medida maquiavélica.

Enquanto em outros países os sindicatos nascem da conscientização dos trabalhadores, que neles se organizam e os mantêm com sua contribuição mensal, os nossos, sustentados pelo imposto que é cobrado de todos os assalariados e controlado pelo governo, dispensam a participação efetiva dos assalariados.

Noutras palavras, são entidades-fantasmas, que não nasceram da necessidade dos empregados de se organizarem em entidades que defendam seus direitos. Por isso mesmo, poucos são os trabalhadores que delas participam, enquanto os oportunistas, com o apoio de minorais organizadas, passam a dirigi-las, impondo-se como lideranças fajutas.

Através delas, vinculam-se a partidos políticos, elegem-se deputados, tornam-se ministros e passam a atuar na vida política. Como a maioria dos trabalhadores ignora tudo ou quase tudo do que estou dizendo aqui, esses impostores passam por ser líderes de verdade e servem de "pelegos" para manter os trabalhadores submissos aos jogos de interesses.

Agora, mesmo esses falsos líderes apresentaram-se como defensores de um aumento do salário mínimo maior que o oferecido pelo governo, num jogo de cartas marcadas, demagógico, cujo resultado estava previsto.

E assim as coisas irão até que, um dia, o povo desorganizado perca a paciência e acabe com essas lideranças de araque e esses sindicatos de mentira.

JOSÉ SIMÃO

Carnaval! Só Como na Rua!

As Virgens do Formigueiro Quente. Devem ser Susana Vieira, a Angela Bismarchi e a Monique Evans!

BUEMBA! BUEMBA! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República!

Tensão no Mundo Árabe! Últimas Notícias! Breaking News: Arroto de quibe do Habib's espalha guerra bacteriológica no mundo árabe! Rarará! Tensão no Habib's. Daqui a pouco vai ter Rebelião no Habib's. Já imaginou se ele aumenta o preço da esfiha? A esfiha agora custa R$ 8,99! BUM! Derruba!

E o chargista Zedassilva revela os três piores inimigos dos ditadores árabes: Orkut, Facebook e Twitter! E essa foi a semana do Gaddafi, ops, Kagadhafi! Que tá a cara do Seu Madruga! E sempre com aquele traje típico: Baiana do Quibe. De turbante e tudo. Quem é a estilista do Gaddafi? A filha do Dunga. Rarará.

E o Berluscome, o Maluf Pornô? Adorei que as surubas do Berlusconi se chamam Bunga Bunga. E adivinha quem ensinou o Berlusconi a fazer bunga bunga? O Gaddafi, o próprio. Por isso que teve rebelião na Líbia. O povo também quer bunga bunga. Esfiha barata, bunga bunga e internet.

Ou seja, tudo o que um ser humano precisa pra ser feliz. É como aquele cartaz no boteco em Minas: "Aqui nóis tem fumo, cachaça, rapadura e rapariga". Ou seja, tudo o que um ser humano precisa pra ser feliz.

E o Romário que só dorme nas sessões do Congresso. Vai ter que mudar o nome pra Roncário. E esse Carnaval que não chega? Vou pular no Bloco da Ansiedade. E três frases clássicas de todos os carnavais: 1) se a Gretchen soltar um pum num saco de confete, é carnaval o ano inteiro. Então o que ela tá esperando? 2) transar com uma mulher só é trair todas as outras. 3) Faça sexo seguro. Segura aqui, ó! Rarará!

E tô adorando os Blocos 2011! Direto do Rio: Já Comi Pior, Pagando. Isso não é um bloco, é uma verdade insofismável! E uns coroas de Búzios que fizeram um bloco chamado Os Tremendo! Mal de Parkinson com delirium tremens! E uns corretores de Copacabana: Os Imóveis! E direto de São Gonçalo: Passa a Mão Mas Não Mete o Dedo! Isso, vamos elevar o nível do Carnaval. Mais respeito com o Carnaval.

E direto de Olinda: Bloco Gastronômico Só Como na Rua! Rarará! E direto de Minas: As Virgens do Formigueiro Quente. Devem ser a Susana Vieira, a Monique Evans e a Angela Bismarchi!
E tá certo; o Carnaval é um formigueiro quente! Nóis sofre mas nóis goza! Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

simao@uol.com.br

ELIANE CANTANHÊDE

Kassab socialista, PSB ruralista

BRASÍLIA - Uma andorinha só não faz verão, mas um Kassab só pode dar um calorão danado na política partidária brasileira.

Para se livrar do DEM, desistir do PMDB e pular no PSB, Kassab quer criar o PDB (Partido da Democracia Brasileira) e tentar fugir dos rigores da lei e de processos por infidelidade partidária que podem, em tese, chegar à perda de mandato.

Abre assim as porteiras do DEM e do PPS e uma janela para tucanos descontentes, com a oposição há oito anos fora do poder, sem discurso, união e perspectiva.

Mas é cedo para o governo federal e o PT comemorarem. Ok, o apoio a Dilma vai aumentar, mas o PSB, que já tem Eduardo Campos e Ciro Gomes e colecionou vitórias nas eleições de 2010, vai encorpar e disputar forças com o PMDB. Os dois podem "ensanduichar" o PT.

O PMDB já é o maior partido, o PSB infla, e o PT está cheio de si e de cargos, mas não é porto seguro para os "neogovernistas" loucos para virar dilmistas desde criancinhas. Como ficam os "aliados" agora e na eleição de 2014?

Não bastasse, o movimento do prefeito da principal capital brasileira terá, evidentemente, efeitos na política paulista e na armação do jogo de 2012 tanto no PSDB quanto no PT. E poderá, eventualmente, desabar no Supremo.

Basta o Ministério Público ou um partido -o DEM, por exemplo- questionar a manobra sinuosa de Kassab para desabar no PSB, arrastando para o "socialismo" até a senadora ruralista Kátia Abreu.
Aliás, como diz o ministro Ricardo Lewandowski, do STF, quanto mais a oposição se enfraquece no Congresso, mais o Supremo se fortalece nas decisões políticas.

Vai decidir a ficha limpa (vale já ou não?), os suplentes (do partido ou da coligação?), o salário mínimo (pode ser por decreto?) e agora pode ser chamado a analisar a manobra Kassab: é criar partido ou driblar a lei e a ideologia para virar socialista no PSB?.

CLÓVIS ROSSI

Um fracasso global

ZURIQUE - Ouso discordar da manchete de ontem desta Folha, que dizia: "EUA atropelam a ONU e anunciam sanções à Líbia".

Na verdade, aconteceu mais ou menos o contrário: o mundo, o mundo todo, é que foi atropelado pelas revoltas árabes e, talvez por isso, demora uma eternidade para tentar conter os massacres.

Se alguém disser que previu a onda de revoltas que começou em dezembro na Tunísia, ou está mentindo ou o fez em voz tão baixa que ninguém ouviu. O fato é que o mundo todo está feito tonto tentando entender o que está acontecendo e antever o futuro, pelo menos o futuro imediato.

Há especialistas que até se atrevem a fazê-lo, geralmente em tom apocalíptico.

Diz, por exemplo, Elliott Abrams, que serviu no Departamento de Estado sob George Walker Bush e agora é pesquisador do Council on Foreign Relations: "[Gaddafi] deixará para trás uma terra arrasada sem governo alternativo, sem verdadeiros partidos políticos, sem experiência em eleições livres, imprensa livre, tribunais independentes ou qualquer um dos blocos constitutivos da democracia".

Apocalíptico ou realista, o diagnóstico não deixa margem para corrigir o passado. Mas, quanto ao presente, deveria haver meios de intervenção que impeçam a terra arrasada. Nada contra impor sanções à Líbia, congelar contas do ditador, parentes e cúmplices.

Mas nada disso serve para enfrentar o problema imediato que é parar a sangria.

Aí entra-se no território da governança global, que, a rigor, inexiste.

A exasperante lentidão com que se move a ONU, só pior no caso da União Europeia, denuncia essa inexistência. As sanções, tal como até agora propostas, parecem destinadas mais à consciência do público ocidental do que a evitar o sangue. Que, de resto, ninguém sabe onde mais vai correr.

GRACILIANO ROCHA DE PORTO ALEGRE (RS)

Morre o escritor Moacyr Scliar

Morreu neste domingo (27) o escritor e colunista da Folha Moacyr Sclyar, 73. A morte ocorreu à 1h. Segundo o Hospital das Clínicas de Porto Alegre, onde ele estava internado, Scliar teve falência múltipla dos órgãos. O velório acontece hoje na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, a partir das 14h.

O escritor sofreu um AVC (acidente vascular cerebral) isquêmico no dia 17 de janeiro. Ele já estava internado para a retirada de pólipos (tumores benignos) no intestino.

Logo depois do AVC, o escritor foi submetido a uma cirurgia para extirpar o coágulo que se formou na cabeça. Depois da cirurgia, ele ficou inconsciente no centro de terapia intensiva.

O quadro chegou a evoluir para a retirada da sedação, mas no dia 9 de fevereiro o paciente foi abatido por uma infecção respiratória e teve de voltar a ser sedado e à respiração por aparelhos.

Por causa da idade, os médicos evitaram fazer prognósticos sobre a recuperação do escritor.

CARREIRA

Nascido em Porto Alegre e formado em medicina, o escritor e colunista da Folha publicou mais de 70 livros entre diversos gêneros literários: romance, crônica, conto, literatura infantil e ensaio.

Sua obra tem forte influência da literatura fantástica e da tradição judaica.

Integrante da Academia Brasileira de Letras desde 2003, Scliar já recebeu prêmios Jabuti, uma das mais prestigiadas premiações literárias do país, em 1988, 1993, 2000 e 2009.

Entre suas obras mais importantes destacam-se os livros 'A Guerra no Bom Fim', 'O Centauro no Jardim', 'O Exército de um Homem Só' e 'Max e os Felinos'.

Lamentável, mas Suas crônicas e todos os seus escritos, passam agora a serem publicadas, por certo, no céu, para onde Deus chamou mais esta fabulosa pessoa. Desde o iníco deste Blogger em 2002, foram publicadas aqui as suas crônicas da Zero Hora e da Folha. Esteja com Deus Moacyr.

sábado, 26 de fevereiro de 2011



27 de fevereiro de 2011 | N° 16624
MARTHA MEDEIROS


Som e fúria

Será mesmo necessário saber xingar, berrar e dizer palavrões para ser considerada o que se chama por aí de normal?

O filme O Discurso do Rei pode ser apreciado tanto por seus diálogos espirituosos como pelo desempenho de Colin Firth e Geoffrey Rush, ambos impecáveis, mas o filme me tocou principalmente por seu aspecto psicológico, ao demonstrar o valor terapêutico de se exprimir raiva.

Uma das razões que levou o rei George VI a sofrer de uma gagueira aparentemente incurável foi o fato de passar por alguns constrangimentos na infância e sofrer tudo calado, como se fosse natural obrigarem um menino canhoto a escrever com a mão direita ou a conviver com uma babá que o deixava sem comer.

Sobrevive-se a coisa muito pior do que isso e nem todos se mantém reprimidos, e muito menos se tornam gagos, mas de uma forma ou de outra a ausência de voz na infância cobra seu preço, que pode ser alto ou nem tanto. A minha repressão infantil saiu mais em conta do que a do rei da Inglaterra, e mais produtiva também.

Não venho de uma família real e tampouco sofri qualquer abuso que me travasse a vida, mas exprimir raiva, decididamente, nunca foi um esporte incentivado lá em casa. Dizer que não havia motivos seria inocência demais de minha parte: claro que havia, sempre há.

Todo ser humano se rebela contra a autoridade – no caso, os pais. Mas eu não expressava em voz alta o que me incomodava, não xingava, não berrava, não dizia palavrões, não saía do sério – nunca. Vontade não faltava. Foi então que fiz minha voz sair não pela boca, e sim pelos dedos.

Não me tornei uma escritora maldita, mas, secretamente, passei a exorcizar alguns demônios através da poesia. Já que não mostrava as garras em casa ou na rua, procurei deixar nas folhas dos livros uma impressão mais realista de mim mesma, aquela que não possui nenhum sangue azul.

Achei que bastaria, mas não.

Só recentemente, de uns anos pra cá, me senti verdadeiramente convocada pra guerra. Aprendi a apresentar minhas armas e externar minha agressividade latente. Meio desajeitada no papel, admito, mas as tentativas não foram totalmente mal sucedidas: cheguei um pouco mais perto da natureza selvagem que caracteriza a todos. Às vezes custo a entender o que isso traz de bom, além de evitar gagueiras reais ou metafóricas.

Será mesmo necessário saber xingar, berrar e dizer palavrões para ser considerada o que se chama por aí de normal? A vida sem controle se torna mais intensa, concordo, mas só quem conhece o pavor que tenho de barracos pode imaginar o quanto me é desconfortável protagonizar cenas de brigas e insultos.

Não nasci pra coisa, prefiro continuar usando a escrita silenciosa para elaborar meus conflitos, mas ao menos aprendi que não irei pra cadeia se, eventualmente, soltar a fúria através da voz, e que não perderei a majestade se, em vez de cisnes brancos, povoar o lago do meu castelo com alguns cisnes negros também.

Mas isso já é outro filme.


27 de fevereiro de 2011 | N° 16624
VERISSIMO


O príncipe das águas

Duas histórias de amores de verão

Dizem que amor de verão nunca dura mais do que o bronzeado, mas no caso deles seria diferente. Doris e Douglas tinham se conhecido na praia e no fim das férias ela já estava segurando as coisas dele quando ele entrava no mar para surfar e não há prova maior de amor eterno do que isto.

Doris ficava na beira do mar vendo o Douglas surfar, abraçada à sua japona, à sua bermuda e às suas Havaianas e pensando ele é um Deus, ele é um príncipe das águas.

Tinham se amado tanto que nem sobrara tempo para se conhecerem. Não sabiam nada um do outro. Era como se a vida dos dois tivesse começado ali, naquela praia. Sem passado, sem biografias, sem confidências (gostas de novela?), sem nada. Apenas se adoravam.

Ela precisou voltar para a cidade antes dele, seu curso (Direito, como o pai) já ia começar, mas combinaram de se telefonar todos os dias. Mas passou o tempo e ele não telefonou, e quando ela ligava para o celular dele dava caixa de mensagens, e ele não respondia as suas mensagens.

Até que ela desistiu, e passaram-se meses. E um dia pediram pizza na casa dela (meia calabresa, meia primavera, não que isto importe) ela abriu a porta – e era ele! O entregador de pizzas era o Douglas. O príncipe das águas.

– Douglas! – Dóris! – Você, você...

Dizer o quê? Você não passa de um entregador de pizzas? E ele, diria o quê? Qual é o problema, entregar pizzas é uma profissão digna como qualquer outra. Ou: eu entrego pizza como bico enquanto termino o meu curso de física nuclear.

Ou: sou o dono da pizzaria, o nosso movimento é tão grande que hoje faltou entregador, você não imagina o que nós faturamos por mês, além de bonito eu sou rico, quer casar comigo. Ou: na praia era um disfarce, ou isto é um disfarce. Você escolhe.

Mas só o que ele disse foi: – Pois é... – Por que você não telefonou? – É que, sabe cumé...

Ela pagou pela pizza, agradeceu e, quando pensou em perguntar “no verão que vem, a gente se vê?”, ele já tinha entrado no elevador e desaparecido. Como quem desaparece numa onda, para nunca mais.

BRUCE

Outra história de amor de verão parecida começou com uma mentira. Quando ele perguntou para ela qual era seu nome, ela respondeu:

– Stefani.

Ele por pouco não desistiu. Puxa, Stefani. Não sabia se tinha condições para ficar com uma Stefani. Aquele corpo, aqueles cabelos loiros escorridos, aquela boca – e Stefani! Ele se chamava Felipe. Um simples Felipe. Suas pretensões eram de Felipe, seus limites eram os de um Felipe.

Tinha medo de que, depois do primeiro beijo, ela sorrisse um sorriso de Stefani e seus olhos dissessem “vá se catar, garoto”, e ela saísse à procura de alguém que a merecesse, que certamente não seria um mero Felipe. O mundo das Stefanis não é para qualquer um. Há eunucos armados guardando o portão do mundo das Stefanis para proibir a entrada de felipes e similares.

– E o seu? – O quê?

– Como é o seu nome? – Ah, é... Bruce. – Bruce?

Bruce. Um Bruce poderia beijar uma Stefani sem medo. Sem risco de um “vá se catar”. Um Bruce transitaria pelo mundo das Stefanis com naturalidade, como um frequentador assíduo. Um Bruce...

– Na verdade – disse ela – meu nome é Maria Helena.

– Você mentiu! – É. Desculpe.

Beijaram-se. Ficaram. Namoraram até o fim das férias. O único problema para o Felipe foi manter o Bruce. Adotar um comportamento de Bruce. Ser um Bruce, sem que a Maria Helena desconfiasse que ele também mentira.


27 de fevereiro de 2011 | N° 16624
PAULO SANT’ANA


Laringoscópio

Não sei se os leitores já repararam, mas 70% das minhas colunas são fruto das minhas experiências pessoais.

Ao contar o que se passa comigo, devo ser, além de intimista, uma pessoa que entrega parte da sua privacidade aos leitores.

Não sei como escrever diferente. Escrevo sempre o que sinto, o que está dentro de mim.

Sendo assim, como uns 12 médicos têm me atendido ultimamente, esta semana foi a vez do otorrino Dr. Geraldo Sant’Anna, conhecidíssimo na praça por sua competência.

Fui lá ver minha garganta, que incrivelmente dói há 96 dias, esta maldita dor resiste a toda carga de antibióticos e anti-inflamatórios.

Dr. Geraldo enfiou-me pela boca um longo cano que se chama laringoscópio.

Segurou minha língua para que ela não atrapalhasse sua visão e fez-me alvo de sua penetração.

Viu alguma coisa lá, tipo uma lesão na epiglote, vermelha no vídeo.

Não contente, disse-me que precisava ver mais, mas tinha que ser desta vez através do nariz.

Eu já não tinha permitido que outros médicos me fizessem o exame de minha laringe pelo nariz, incômodo eu sabia que era, excruciante eu desconfiava.

Mas, como essa dor insiste em me causar receio e preocupação, cedi.

Ele me enfiou pela narina direita uma mecha de algodão embebida num anestésico.

Deixou esperar por três minutos para que agisse o anestésico e a seguir partiu para a materialização do meu terror: enfiou-me pela narina, lentamente, sem nenhuma dor, um cabo observatório que foi parar na laringe.

Estavam no vídeo à disposição da visão dele e da minha, em colorido, até as cordas vocais.

O médico usou aquilo que eu chamaria de naringoscópio para olhar atrás das cartilagens da epiglote.

E nada viu por lá que se destacasse.

A hipótese médica mais atraente é de que eu esteja sendo alvo de refluxo esofágico, ou seja, que um mal estomacal esteja se refletindo em ação sobre a minha laringe, causando-me dor e/ou desconforto.

Estou tomando remédio para tentar debelar o mal.

E lá vou eu. Os males surgem e eu, com a ajuda dos médicos, os vou atacando.

A minha saúde tem sido nos últimos anos vulnerável e resistente.

São muitas doenças. A principal é o diabetes, a seguinte em gravidade é a tontura permanente. Pela ordem de vez, a surdez total de um ouvido e parcial e ascendente de outro, além de outras mazelas.

Inúmeros hospitais e clínicas médicas me atendem com assiduidade e competência.

E minhas esperanças são as últimas que morrem.


27 de fevereiro de 2011 | N° 16624
DAVID COIMBRA


Cuidado com o Homem de Vermelho

Minha mãe tinha muito medo do Homem de Vermelho.

Volta e meia falava nele, sempre depois de um suspiro, as gotas de horror lhe pingando das esquinas da boca:

– Ai, meu Deus, o Homem de Vermelho vai bater na minha porta...

O Homem de Vermelho existiu até o fim dos anos 70. Nos 80, derreteu. Tanta coisa derreteu em meio à bruma ácida dos anos 80. O Brasil mudou demais na passagem de uma década para outra. O Brasil, o mundo, nós todos estamos sempre mudando.

A vida vai se transformando devagar, um dia depois do outro. Você não consegue perceber. Olha-se no espelho de manhã, está um dia mais velho. Porém, o que você vê é a mesma imagem de ontem.

A sua cidade também envelheceu, o prédio onde mora, as ruas por onde anda, as árvores que lhe dão sombra e os cães que o acompanham, tudo e todos mudam a todo tempo, mas é impossível notar a diferença.

Só 79 para 80 é que notamos.

Foi uma mudança brutal e brusca. Algo deve ter acontecido no fim de 1979, exatamente nos últimos dias de dezembro. Aquele pequeno pedaço de tempo foi uma fronteira.

Um marco. Poucos dias se passaram e, sem que houvesse uma revolução, sem que ocorresse um cataclismo, sem que as Torres Gêmeas fossem derrubadas nem que os turcos tomassem Constantinopla, sem que o Arquiduque Fernando ou o presidente Kennedy fossem assassinados, sem que o homem pisasse na lua ou que Pelé marcasse seu milésimo gol, sem que nada de memorável acontecesse, tudo mudou.

Quando o Brasil entrou nos anos 80, era outro Brasil: as ruas estavam mais perigosas, as cidades mais violentas, as pessoas menos ingênuas, ninguém mais acreditava nos militares como governantes, as crianças pararam de chamar os adultos de senhor e as mulheres não sabiam mais cozinhar.

Até os anos 70 ainda era possível o Opalão, o Fusca, o Corcel, o DKW e o Gordini, ainda era possível Ademir da Guia e Roberto Rivellino, ainda era possível caminhar na rua de madrugada, atravessar o Parque da Redenção à meia-noite, ainda era possível ser comunista ou anarquista. Até o finzinho dos anos 70 os times tinham ponta, as pessoas transavam sem camisinha, os militares eram chamados de milicos, o Chico Buarque lapidava 10 diamantes musicais por ano, os médicos fumavam nos hospitais, as meninas de 15 anos de idade eram encaradas como mulheres e as mulheres de 35 anos de idade eram encaradas como senhoras.

Até o fim dos anos 70 ainda existia o Homem de Vermelho, e ele punha medo nas pessoas, sobretudo na minha mãe.

Imagine que o Homem de Vermelho vestia-se inteiro de vermelho: sapatos, meias, calça, camisa, gravata, paletó, tudo vermelho e só vermelho, nada além de vermelho. Para chamar a atenção mesmo. O Homem de Vermelho era o cobrador. Quando ele batia numa porta todo paramentado de vermelho, os vizinhos já sabiam: o dono da casa devia e não pagou. Era o opróbrio público.

Por isso a minha mãe tinha tanto medo do Homem de Vermelho. É que, nos anos 70, ela comprou uma TV e uma geladeira à prestação lá na Ibraco da Assis Brasil. Uma ousadia para quem ganhava salário de professora primária. Mas era preciso, nós não tínhamos geladeira nem TV.

As mensalidades começaram em cinco cruzeiros e foram subindo. No fim do ano passavam dos 300 cruzeiros. Minha mãe não conseguia pagar. Então, atravessava as noites em claro temendo a visita do Homem de Vermelho.

Fosse nos anos 80, não teria medo. Porque nos anos 80 ninguém mais sentia vergonha de dever. Donde, o Homem de Vermelho se tornou inútil. Perdeu o emprego. Hoje, se alguém o visse batendo em alguma porta, comentaria:

– Olha ali um colorado radical.

Ninguém pensaria que se tratava de um cobrador tentando envergonhar o devedor, porque nenhum devedor, depois dos anos 80, sente vergonha de dever. Os exemplos mais notórios dão os clubes de futebol. Todos devem, não negam, pagam quando podem, alguns não pagam. Quando isso acontece, quando não pagam, dá-se um fenômeno horrendo: os jogadores comentam, contam uns para os outros, e o clube fica com imagem de mau pagador. Nenhuma fama pode ser mais destrutiva.

É o caminho mais curto para a derrota. Logo, estão certas as direções quando tomam medidas preventivas, como o enxugamento que o Inter está promovendo. Pode ser dolorido, mas é melhor do que ter o Homem de Vermelho na porta.

Ruth de Aquino

“O mundo é masculino e assim deve permanecer”

A lei Maria da Penha é um conjunto de regras diabólicas. Se essa lei vingar, a família estará em perigo. Ora, a desgraça humana começou no Éden: por causa da mulher. As armadilhas dessa lei absurda tornam o homem tolo, mole.

O mundo é masculino e assim deve permanecer. No caso de impasse entre um casal, a posição do homem deve prevalecer até decisão da Justiça, já que o inverso não será do agrado da esposa.

Releia o parágrafo acima, mas agora entre aspas. O autor dessas palavras é o juiz mineiro Edílson Rumbelsperger Rodrigues. Ele disse exatamente tudo isso em sentença, em 2007, ao julgar homens acusados de agredir e ameaçar suas mulheres. A Lei Maria da Penha existe desde agosto de 2006.

Ela aumenta o rigor a agressões domésticas. Seu nome é uma homenagem à biofarmacêutica Maria da Penha Maia. Após duas tentativas de assassinato pelo marido em 1983, ela ficou paraplégica. O marido, Marco Antonio Herredia, foi preso após 19 anos de julgamento e ficou só dois anos em regime fechado.

Em novembro do ano passado, o juiz Rodrigues foi suspenso por dois anos pelo Conselho Nacional da Justiça por suas “considerações preconceituosas e discriminatórias”. Na última terça-feira à noite, o ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, cancelou a punição.

Defendeu a liberdade de pensamento dos magistrados. Para Marco Aurélio, a opinião de Rodrigues é “uma concepção individual” e “suas considerações são abstratas”. Segundo o ministro, não é preciso concordar com o juiz, mas a punição seria um exagero.

Na sexta-feira, tentei entrevistar Rodrigues. Por meio da assessoria da Associação dos Magistrados de Minas Gerais, ele informou que não vai falar sobre o assunto até o julgamento final do Supremo. Ditou uma nota aos assessores: “Meu pronunciamento pessoal seria mais prudente depois da decisão definitiva do STF, na qual evidentemente confiamos”. Rodrigues já conta com a solidariedade do ministro Marco Aurélio. Um sinal de que poderá ser definitivamente reabilitado.

Por muito tempo, Rodrigues sentiu-se perseguido. “Fui mal interpretado”, disse na ocasião, em 2007. Explicou que não ofendeu ninguém e, em sua sentença, citou até “o filósofo Jesus”. Mas admitiu achar a Lei Maria da Penha um “monstrengo tinhoso”, que leva a um “feminismo socialmente perigoso”.

Segundo Rodrigues, alguns colegas concordam com ele, mas não têm coragem de dizer isso publicamente. Ele se considera um defensor do gênero feminino: “A mulher não suporta o homem emocionalmente frágil, pois é exatamente por ele que ela quer se sentir protegida”.
A frase do juiz língua solta nos leva a refletir sobre os limites da liberdade de expressão

O caso do juiz língua solta de Sete Lagoas, Minas Gerais, nos leva a refletir sobre os limites da liberdade de expressão. Podemos pensar o que der na telha. Falar é mais complicado. Especialmente quando ocupamos um cargo importante e representamos uma instituição.

Mais delicado ainda é um juiz ter uma “concepção individual” que contrarie uma lei instituída. Digamos que, em casa, no domingão com a família, ou nos bares de Sete Lagoas, o cidadão Edílson desça o sarrafo na Lei Maria da Penha. Tudo bem. Mas usar sua convicção de superioridade masculina para julgar e proferir sentenças o torna pouco confiável para avaliar processos de agressão no lar. Ou não?

Gafes de pessoas públicas têm um preço. A presidenta Dilma repreendeu o general José Elito por ter declarado que os desaparecidos na ditadura militar são “um fato histórico”. O general foi obrigado a pedir desculpas.

O papa Bento XVI repreendeu o bispo britânico Richard Williamson por negar o Holocausto. Williamson pediu perdão. A presidenta do Flamengo, Patricia Amorim, repreendeu o ex-goleiro Bruno por perguntar, em defesa de Adriano: “Qual de vocês, casado, nunca brigou ou até saiu na mão com a mulher?”. Bruno pediu desculpas. Ele está preso, acusado de agredir e fazer sumir a ex-amante e mãe de seu filho Bruninho.

Todos os acusados – juiz, general, bispo, goleiro – se disseram “mal interpretados”. Queria saber se o juiz Edílson Rodrigues repetiria tudo o que pensa diante de Dilma. Algo me diz que ela tem apreço pela Lei Maria da Penha e não acha o mundo masculino.

RICARDO MEIRELLES

Assim é se lhe parece

O título acima é de uma peça de Pirandello, que tomei emprestado para ilustrar um equívoco de nossas autoridades regulatórias.
Para propor a proibição dos medicamentos para controle do apetite e saciedade, a Anvisa superestimou os efeitos adversos e subestimou os seus benefícios.

Analisando os mesmos trabalhos que os especialistas de seis entidades médicas utilizaram para produzir a diretriz "Obesidade e Sobrepeso: Tratamento Farmacológico", integrante do Projeto Diretrizes da Associação Médica Brasileira e do Conselho Federal de Medicina, chegaram a conclusões diametralmente opostas. Concluíram que a farmacoterapia, na obesidade, não é eficaz nem segura.

Ora, a maioria desses medicamentos está no mercado há mais de 30 anos, o que, por si só, já é uma evidência de que têm utilidade. Nenhum produto se mantém por tanto tempo à venda se não for eficaz.

Por outro lado, os efeitos indesejáveis podem ser observados com qualquer fármaco, até mesmo com o uso de placebos, substâncias inertes, sem atividade farmacológica. O importante é avaliar a relação risco/benefício.

O tratamento da obesidade deve se basear, sempre, no aumento da atividade física e na orientação dietética. Alguns pacientes, entretanto, não conseguem modificar hábitos alimentares mantidos durante anos ou décadas de vida e podem se beneficiar do uso de remédios que ajudem a controlar o apetite (anorexígenos) ou a se sentirem satisfeitos com menores quantidades de alimentos (sacietógenos).

Sua prescrição sempre deverá levar em consideração as possíveis contraindicações, como doenças cardíacas preexistentes, antecedentes psiquiátricos ou hipertensão arterial não controlada.

Além disso, só faz sentido manter a prescrição se ocorrer perda de peso satisfatória; caso contrário, o medicamento deve ser interrompido ou substituído por outro.

Se efeitos adversos fossem motivo para a retirada de um produto farmacêutico do mercado, os corticoides, tão úteis para tratamento de processos alérgicos e inflamatórios, deveriam ser banidos, pois podem causar aumento de peso, hipertensão arterial, osteoporose, necrose da cabeça do fêmur, psicose e até suicídio.

A morfina, imbatível para o tratamento de dores intensas, também deveria ser proibida, por causar dependência. Não passaria pela cabeça de ninguém fazer isso, tendo em vista os benefícios que esses medicamentos produzem.

No caso da obesidade, já se demonstrou que perdas de 5% a 10% do peso corporal já trazem redução do risco de diabetes e doenças cardiovasculares e que não é preciso atingir o peso ideal para obter os benefícios do tratamento.

No caso específico da sibutramina, a própria nota técnica da Anvisa reconhece que há estudos na literatura que corroboram sua eficácia para tratamento da obesidade a longo prazo. O motivo para a proibição seria um possível aumento do risco de eventos cardiovasculares.

Isso, entretanto, só aconteceu em pacientes que já tinham um passado de doença cardiovascular, o que é uma contraindicação assinalada na própria bula do produto.

Não há qualquer evidência científica de que haja aumento de risco para pacientes sem história prévia de distúrbio circulatório.

Se usados com critério, respeitadas as indicações e contraindicações, os medicamentos para controle do apetite e da saciedade são úteis e auxiliam na perda de peso e na prevenção das consequências da obesidade. Em lugar de retirá-los do mercado, é preciso fiscalizar e coibir a prescrição incorreta, abusiva e antiética.

RICARDO MEIRELLES é presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia.

FERNANDO RODRIGUES

A banda estreita de Dilma

BRASÍLIA - É louvável o governo federal se preocupar em tornar universal o acesso à internet no Brasil.

Antes tarde do que nunca. Mas há um evidente exagero em chamar de Plano Nacional de Banda Larga (PNBL) um programa cuja velocidade de conexão oferecida será de 516 kbps a 784 kbps (kilobits por segundo). Nessas condições, o usuário mal consegue baixar os e-mails que recebe. Com certeza, não os baixará se estiverem com alguns arquivos de fotos anexados.

Para piorar, esse acesso dito barato (até R$ 35 mensais) e de baixa velocidade só estará disponível de forma disseminada (em 68% dos domicílios) em 2014. Daqui a quatro anos, o que hoje é considerado lento talvez se torne inútil.

O ministro da Comunicações, Paulo Bernardo, em uma entrevista recente explicou a opção pela lentidão: "Para algumas finalidades, é uma velocidade satisfatória. Para ler jornais, baixar e subir fotos, para um uso modesto.

Mas hoje, no Brasil, 34% das conexões são de até 256 kbps; 20%, de 256 kbps a 1 mbps [megabits por segundo]; e acima de 8 mbps tem somente 1%. Então, disseminar 512 kbps vai ser um avanço enorme, mas isso não nos exime de fazer um plano para ter conexões de 2 gbps [gigabits por segundo] no Brasil em oito anos".

O cenário é desalentador. Primeiro, um serviço de internet lento e de baixa qualidade nos próximos quatro anos. Conexões mais sofisticadas, só no final desta década.

Ao resignar-se a esse atraso tecnológico, o governo admite sua incompetência gerencial. Condena o Brasil ao século passado. Informação é uma commodity vital para o desenvolvimento.

É inconcebível uma administração há oito anos e dois meses no Palácio do Planalto ainda não ter pensado em como abreviar os prazos de implantação de uma banda larga real no país.

Dilma Rousseff tem repetido em discursos sua promessa de melhorar a educação no país. Sem internet rápida, não cumprirá a meta.

fernando.rodrigues@grupofolha.com.br


26 de fevereiro de 2011 | N° 16623
NILSON SOUZA


Formigas

Nunca tive medo de tempestades, nem mesmo quando era menino e via minha mãe cobrindo às pressas os espelhos da casa, provavelmente na suposição de que os relâmpagos pudessem ser atraídos pelas superfícies refletoras. Mais tarde descobri que esta crendice tem entre suas origens as armações de metal que amparavam grandes espelhos nos tempos coloniais e que, às vezes, funcionavam mesmo como para-raios.

Os cientistas dizem que muito mais perigoso é ficar em contato com a água, esta, sim, um condutor elétrico capaz de captar uma descarga fatal. Pois bem, embora não me assustem as tormentas, já ando olhando desconfiado para as nuvens escuras que pairam sobre nossas cabeças nestes meses de verão. Elas agora deram para despejar a água num lugar só, de supetão, em vez de protagonizar uma chuva democrática e saudável, como faziam desde o início dos tempos.

Já não se fazem mais chuviscos como antigamente, nem mesmo aqueles pinga-pingas demorados e deprimentes que prendem as pessoas em casa. Não. Agora São Pedro deu para esvaziar a caixa-d’água do céu sem qualquer aviso, invariavelmente emborcando-a sobre a cabeça dos desavisados transeuntes do cotidiano. Viramos formigas de jardim na hora da rega.

Em segundos, passa-se do seco para o alagadiço, as ruas viram rios, os morros derretem como sorvete, e a água despejada do alto leva tudo por diante, inclusive vidas. Tem muita gente convencida de que andamos mexendo demais com o planeta e que essas trombas-d’água localizadas podem ser uma espécie de troco de madame Gaia, como talvez também o sejam os terremotos, os tsunamis e outras catástrofes naturais.

Pode ser – e pode não ser, pois também já ouvi de um respeitável ambientalista que, por mais que nos esforcemos para poluir, desmatar e consumir, não fazemos nem cócegas na Terra. Disse o homem:

– Não estamos destruindo o planeta como muita gente pensa. O tempo geológico é diferente do nosso. Estamos, isto sim, provocando a nossa própria destruição.

Somos, outra vez, reles formigas diante de uma gigantesca bola viva, que nem se abala com a nossa incômoda presença. Seja como for, o efeito bumerangue parece claro. A borboleta bate asas na China e alguma coisa despenca por aqui. Esta semana mesmo, a Nova Zelândia teve um tremelique e o sítio da Família Lima, em Sapiranga, foi levado pelas águas sem que ao menos estivesse chovendo no local.

Acho que vou começar a cobrir os espelhos.


26 de fevereiro de 2011 | N° 16623
PAULO SANT’ANA


Recursos humanos

Recebi inúmeras manifestações de aplauso pela coluna escrita ontem, quando abordei a convivência em grupos humanos (empresas) entre medíocres e brilhantes.

Muitas das congratulações recebi de pessoas ligadas à área de Recursos Humanos de empresas.

Mas eu não sei se me fiz claro num ponto: os medíocres são necessários muitas vezes nas empresas ou nas repartições.

Os medíocres são necessários, os brilhantes são imprescindíveis.

Por sinal, não adoto algumas significações que os dicionários dão para a palavra medíocre.

No meu sentir, medíocre não quer dizer comum ou vulgar. Eu entendo que medíocre é mediano, que vem de médio.

Ou seja, para mim medíocre não é o pior que uma pessoa pode ser. Ela se situa apenas num termo intermediário em qualquer escala.

Entendo também que a mediocridade é um purgatório que se situa acima da vulgaridade e um degrau abaixo do brilhantismo e dois degraus da genialidade.

Como a mediocridade é um purgatório, ela pode dar acesso ao brilhantismo em seguida, tanto através da cultura, do conhecimento, quanto, acima de tudo, da capacidade de raciocinar.

Porque, em matéria geral, os medíocres são aqueles que não criam, e os brilhantes têm alta e admirável capacidade de raciocínio criativo.

O jogador de futebol medíocre é o que faz a jogada que se espera que ele faça.

Já o jogador brilhante ou gênio é aquele que faz a jogada brilhante que ninguém esperava que ele fizesse.

O mundo é feito de medíocres e brilhantes assim como o céu está cheio de pessoas honestas.

Só que há duas espécies de pessoas honestas que vão para o céu: são os que foram honestos na Terra por dignidade e os que foram honestos por medo de serem punidos ou escandalizados.

Há os honestos por princípio e há os honestos que assim o são por medo da prisão ou da vaia social.

Por falar nisso, sempre digo que a melhor definição de honestidade que conheço é a seguinte: “A medida de honestidade de uma pessoa é tomada pelo que ela faria se soubesse que nunca seria descoberta”.

Se eu por acaso fosse para o céu assim que se desse a minha morte, gostaria fundamentalmente de me encontrar com muitas pessoas lá.

Mas as mais desejadas por mim são Platão, Leonardo da Vinci, Chesterton, Chico Buarque e Lupicínio Rodrigues.

Que zorra!

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011


JOSÉ SIMÃO

Socuerro! Kagadafi na Líbia!

E o Muammar Gaddafi já lançou até plano de saúde para os líbios: o MORRAMED! Rarará

BUEMBA! BUEMBA! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República!

Tensão no Mundo Árabe! Últimas Notícias! Breaking News! Arroto de quibe do Habib's espalha guerra bacteriológica no mundo árabe! Rarará! Isso já é golpe baixo! Arroto de quibe do Habib's derruba até a Muralha da China!

E é tanta grafia pro Gaddafi que vou inventar mais uma: KhaGadaffi! Rarará! E o Gaddafi já lançou até plano de saúde para os líbios: o MORRAMED!
Sabe o que o Tiririca falou do Gaddafi? "Ele quer morrrreeeee!". O Gaddafi vai arder no mármore do inferno!

O Gaddafi vai acabar na Bahia. Olha esta do jornal "A Tarde": "Ditador líbio tem negócios em Juazeiro, Bahia". Ele tem R$ 1,2 bilhão investidos no Vale do Salitre! O Gaddafi vai acabar na Bahia! Com aquele seu traje típico de baiana do quibe! Vão pensar que é um folião!

E diz que o filho de um ditador árabe estudando em Londres escreveu pro pai: "Estou me sentindo envergonhado de andar com a Ferrari 5999GTB enquanto meus amigos andam de trem". Resposta do ditador árabe: "Pare de nos envergonhar! Vá e compre um trem pra você também". Rarará!

E agora direto do País da Piada Pronta: "Vereadores de BH gastam de gasolina uma quantia que daria pra dar 119 voltas na Terra". Qual o nome do vereador mais gastador? Paulinho MOTORISTA! Rarará!

É que tem cidadezinhas em Minas que pra você chegar tem que dar 119 voltas na Terra. Rarará! Eu já viajei muito por Minas. Minas é um monte de montanhas com gente dando adeus!

E aquela minha amiga perua que chama o Aleijadinho de Aleijadérrimo? Eu vou pra Minas comprar obras do Aleijadérrimo! Rarará!

E direto de Minas, o bloco As Virgens do Formigueiro Quente! Com Suzana Vieira, Monique Evans e Angela Bismarck, as virgens do formigueiro quente! E tá certo: o Carnaval é um formigueiro quente!
E dois blocos do Rio só pra preguiçosos: Concentra Mas Não Sai e Bate Pra Mim Que Eu Tô Cansado.

E direto de Olinda: EU ACHO POUCO! Eu também! Rarará!

E já saiu a marchinha do Gaddafi: "Cadê Gaddafi? Cadê Gaddafi? Ói ele ali, foi dançar com o Mubarak/ Cadê Gaddafi? Cadê Gaddafi? Ói lá o ómi, fazendo bunga bunga com o amigo Berluscómi".

Ô marchinha horrível. A cara do Muammar Kadáver! E o gringo bateu no carro dum baiano e desceu falando: "Hello! Hello!". E o baiano: "Relou o cacete! Amassou foi tudo!". Rarará. Nóis sofre, mas nóis goza!

Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

simao@uol.com.br

JOSÉ SARNEY

A roda do mundo

Em duas áreas do mundo, assistimos à história mover-se, sacudindo séculos de tradição, de costumes, de vida e de inércia. No Oriente Médio, a convulsão, diferentemente de todas as passadas, que não mais mobiliza diretamente o povo, como nos tempos de Napoleão, e sim pelas ondas invisíveis da internet -essa coisa diabólica que fundou uma nova era de comunicação, um caminho sem volta- num chamamento que começa nas casas e transborda para as praças motivadas por ideias, e não pessoas.

No extremo Oriente, China -que supera o Japão- e Índia convidam para entrar na disputa Coreia, Cingapura, Tailândia e até os emergentes Vietnã e Mianmar.

Lembro duas personalidades que conheci, homens extraordinários, para mim profetas do que estou vendo. Deng Xiaoping, já velho, um pouco surdo, mas de uma expressão de personagem mitológica, a dizer-me que nós no Ocidente não conhecíamos o tempo.

Falou-me do futuro do mundo, tempos de paz, tempos de outra concepção, o fim dos sectarismos e a possibilidade da convivência de dois sistemas, o capitalista e o socialista. Não era para ele uma decisão voluntarista, mas a corrente do tempo, riachos cristalinos que carregavam os séculos. Eu o fitava, com seu dólmã dos velhos revolucionários, e não perdia uma palavra.

Pegou na minha mão, com carinho, assim como se nossas mãos se entrelaçassem pelo lado, e me disse que o Brasil e a China tinham o destino de encontrar-se. Eu pedia relações estratégicas, ele respondia: "Só o tempo consolida a confiança". Agora, vejo os olhos do mundo fixados na China, e a competição tecnológica em plena efervescência.

Ele já não vive, mas suas palavras não foram esquecidas.

Lembro Shimon Peres, quando não estava no governo, vinha de muitas derrotas e trazia marcas, na voz suave, de frustrações que não me contou. Mas ouvi dele uma exposição extraordinária sobre aquela área, sua visão do quanto o peso dos séculos, a marca religiosa, a saga do povo judeu pesavam nas decisões políticas.

Ele tinha a consciência do sofrimento do povo palestino e da impotência de encontrar soluções, de achar o caminho das pedras. Era um humanista que me encantava com seus conhecimentos de literatura e, sobretudo, com o contraste, que nele vislumbrei, com a ideia que eu fazia de Ariel Sharon e Benjamin Netanyahu.

Hoje, vejo o fogo do Oriente Médio, Israel vivendo um momento de apreensões com a mudança da política na área. Olho a China, brilhando, orgulhoso de ter conhecido Deng, esse transformador e Confúcio redivivo.

Lembro Drummond: "Mundo mundo vasto mundo / se eu me chamasse Raimundo". E quem se chama Gaddafi?

jose-sarney@uol.com.br

CRISTINA GRILLO

O direito de Chiara

RIO DE JANEIRO - A disputa pela guarda do menino Sean Goldman,10, pode ganhar um novo capítulo na terça-feira. Neste dia, a 3ª Turma do STJ julga um recurso especial para que Chiara Bianchi Lins e Silva, 2 anos e meio, irmã por parte de mãe do menino, seja admitida no processo que decidiu dar a guarda de Sean para seu pai, o americano David Goldman.

Os advogados da família Bianchi argumentam que Chiara é parte interessada no processo -afinal, a sentença da Justiça Federal a afastou do convívio com o único irmão.

Se o recurso for aceito, todo o processo que culminou com a volta de Sean para os Estados Unidos poderá ser anulado. Um bom advogado poderá argumentar que Sean, cidadão brasileiro, está retido irregularmente no exterior, já que foi retirado daqui com base em uma sentença invalidada.

Há muito a disputa pela guarda de Sean deixou de ser uma questão familiar entre dois lados que se acusam mutuamente de tentar excluir a outra parte de seu convívio.

Virou um grande conflito jurídico, que envolve complicados temas de direito internacional. O menino nasceu nos EUA, mas também foi registrado no consulado brasileiro de Nova York. Chegou ao Brasil aos 4 anos, trazido pela mãe que assim punha fim ao casamento com o americano David.

Passou cinco anos convivendo com os avós maternos, sem poder ver o pai. Aqui perdeu a mãe, morta por complicações de parto. Aqui ganhou uma irmã. Daqui saiu na véspera do Natal de 2009 devido a uma decisão jurídica que entendeu ser melhor ele viver com o pai e que agora pode perder sua validade.
Desde então, não foi mais visto por seus parentes brasileiros. Sempre que pergunta pelo irmão, Chiara ouve que e
le está viajando.

Não se trata de defender este ou aquele lado. Todos têm suas razões e seus direitos. Inclusive Sean e Chiara.


25 de fevereiro de 2011 | N° 16622
PAULO SANT’ANA


Medíocres e brilhantes

Existem muitos medíocres triunfantes. Assim como existem muitos brilhantes fracassados.

A vida nesse ponto é justa: não basta ser brilhante para ter êxito, assim como nada assegurará que o medíocre não terá sucesso.

Se fosse o contrário, bastaria ser brilhante para atirar-se nas cordas, o sucesso viria ao natural.

Ou, então, um medíocre estaria condenado desde o nascimento ao fracasso.

Existem até, por incrível que pareça, algumas atividades em que basta ser medíocre para alcançar sucesso.

E outras em que, sendo brilhante, não há nenhuma chance de triunfar nelas.

Sem falar na luta que obrigatoriamente se estabelece, em qualquer organização, entre os medíocres e os brilhantes.

A característica dos medíocres é que, sendo medíocres, sozinhos não enfrentam os brilhantes.

Por isso é que os medíocres são muito unidos. Unidos eles se tornam fortes e podem derrotar os brilhantes.

Já os brilhantes, por serem raros, enfrentam solitariamente os medíocres.

O perigo que se corre em qualquer organização reside em que os medíocres venham a vencer os brilhantes. E os espantem ou os anulem.

Não existe nada mais desolador do que uma empresa ou qualquer conglomerado vir a ser dominado pelos medíocres.

Porque muitas vezes os medíocres vestem a capa de brilhantes, embora ali adiante possam ser desmascarados.

É necessário que as lideranças de qualquer agrupamento humano se acautelem contra os medíocres e contra os falsos brilhantes.

O segredo é que, em qualquer grupo, sejam colocados nos lugares devidos os medíocres. E também os brilhantes.

Botar um medíocre num lugar que deveria ser dado a um brilhante é um desastre.

E botar um brilhante num lugar em que o medíocre desempenharia é um desperdício.

Mas tem uma coisa muito importante: um líder medíocre não oportuniza liderados brilhantes.

E um líder brilhante só faz multiplicar os brilhantes entre seus liderados.

Mudando de assunto. Foi um jogo de futebol tão violento, que até o juiz e os bandeirinhas usaram caneleiras protetoras.

O chato pode ser surdo, pena é que, se o for, será mais chato ainda.

O que o chato não pode ser é mudo: quem é mudo não é chato (toda pessoa que só escuta acaba se tornando agradável, principalmente aos falantes que dominam as rodas de conversa).


25 de fevereiro de 2011 | N° 16622
DAVID COIMBRA


Eu quero aquela dor

Há pouco, ainda esta semana, meu filhinho queixou-se de dor de cabeça. Dor de cabeça? Um menino de três anos de idade?

Fiquei preocupado. Mas, acionada por telefone, a médica não deu muita importância ao caso, fez uma referência rápida ao calor dos dias e mandou dar ali umas gotinhas. Peguei-o no colo e comecei a lhe apalpar a testa:

– Dói onde, filhinho? Aqui? Aqui?

E eis que, num instante, ele sorriu e anunciou:

– Não estou sentindo mais nada, papai!

Sorri de volta. Só que, naquele exato momento, quem passou a se sentir meio estranho fui eu. E estranho continuei horas afora e piorei a cada palmo da tarde e, à noite, ardia em febre. No final do dia seguinte é que dei uma melhorada.

É claro que aquilo não foi a manifestação de algum superpoder, eu sugando a dor do meu filho pela ponta dos dedos e absorvendo-a. Minhas tarefas de paternidade seriam muito facilitadas, se tivesse essa faculdade. Não foi isso. Foi uma de duas possibilidades. A primeira:

Mesmo sem perceber que havia ficado nervoso, “somatizei” a dor do meu filho e a adotei, enquanto ele ficava bom graças ao remédio ministrado minutos antes. Quer dizer: os subterrâneos da minha mente agiram por desígnio próprio e atuaram diretamente sobre o meu corpo, ainda que não fosse essa a minha vontade manifesta.

Fosse assim, eu teria um poder, afinal. Eu e você. Todos nós. Bem treinados, poderíamos dominar as reações do nosso corpo. Poderíamos controlar os batimentos do coração e o fluxo do sangue nas veias, poderíamos aplacar a fome e queimar a gordura que se acumula nos flancos, poderíamos fazer luzir mais os olhos e tornar mais sedosos os cabelos.

Poderíamos interromper o crescimento das unhas e fazê-las crescer de novo. Poderíamos ser super-nós-mesmos. Desde que aprendêssemos os segredos da mente e da vontade.

Seria tão bom. Mas não acredito nisso. Acredito na segunda possibilidade, que é a da vulgar coincidência. A coincidência torna a vida tão menos interessante. Mas ela existe. Muitos dos acontecimentos decisivos da História da Humanidade são construídos por coincidências. Depois do feito, é que os analistas se põem a ordenar as causas. Aí tudo parece premeditado, tudo parece inevitável. Aconteceu porque tinha de acontecer, aconteceria de qualquer maneira. Houve cálculo. Houve um plano racional desenhando a ação.

Bobagem.

Na maioria das vezes, não é assim. Na maioria das vezes, as pequenas circunstâncias, a força da vontade, a inércia gerada pela preguiça ou o simples acaso determinam uma longa sequência de acontecimentos.

O acaso também pontua vidas comuns. Todos morreram na queda do avião, só um se salvou. O sobrevivente dirá que foi a mão de Deus que o livrou da morte. Por quê? Por que ele, e não qualquer outro dos 324 que morreram? Ele é especial? Ele é ungido? Teve sorte? Nada disso. Ele está vivo por acaso.

O Senhor não gosta mais dele do que dos outros, o destino dele não está escrito, em lugar algum está inscrita a hora improrrogável do seu passamento. Muito sem graça, sem cor e sem charme. Mas é como é. Pena: você não é diferente de ninguém.

Pena ainda maior: não posso pegar emprestadas as dores do meu filho.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011



24 de fevereiro de 2011 | N° 16621
EDITORIAIS


Descomplique-se e publique-se

É sensata a decisão do Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (Daer) de rever as exigências anunciadas recentemente para o transporte de pacientes do interior do Estado à Capital e às cidades que possuem hospitais de referência.

A ambulancioterapia já é uma deformação da relação do poder público com os cidadãos. O certo seria proporcionar aos doentes o atendimento adequado nos seus domicílios. Pois o Daer, com a resolução que exige das prefeituras o envio da lista de pacientes e acompanhantes com 12 horas de antecedência, conseguiu tornar ainda mais doloroso o calvário de doentes já submetidos a longas viagens e demoradas esperas.

A intenção é boa, disciplinar o transporte diário de pacientes e evitar que essas viagens subsidiadas pelas prefeituras, que contam inclusive com isenções de taxas, sejam utilizadas para finalidades turísticas. Mas não se pode jogar fora a água da bacia com a criança dentro. Cabe ao Daer fiscalizar rigorosamente a circulação de ambulâncias e veículos oficiais pelas estradas gaúchas, sempre com o objetivo de facilitar o acesso dos doentes ao tratamento, e não de dificultá-lo.

De outra parte, também é impositivo que as autoridades municipais sejam seletivas no envio de doentes para os grandes hospitais, tanto para evitar riscos desnecessários no transporte quanto para aliviar a sobrecarga das casas de saúde.

O mesmo processo de triagem que está sendo feito nas emergências dos hospitais deveria ser adotado pelos pequenos municípios na hora do embarque. Claro que esta seleção tem que contar com a chancela de profissionais especializados, para que recebam prioridade os casos que realmente necessitam de recursos mais sofisticados.

O essencial é que todas as partes envolvidas no processo – e não apenas o Daer – revisem suas posições com o propósito de descomplicar a vida de pessoas já suficientemente castigadas pelas doenças.


24 de fevereiro de 2011 | N° 16621
CLAUDIA TAJES


Pai com filha

Não faz muito, pai que não tivesse um filho varão era o sujeito mais infeliz do mundo. Nobres e pobres, quantos não mandaram a patroa passear ou arrumaram guris fora do casamento para garantir aquele que perpetuaria o nome da família?

Culpar a mulher por não gerar um menino era a prática desses tempos em que a ignorância superava de longe a genética. Não que ainda hoje, depois de inúmeras edições do Globo Repórter explicando que o pai é quem determina o sexo da criança, falte alguém para insistir na bobagem.

Na contramão da época, meu próprio pai sempre se imaginou com três filhas, as Três Marias. Pediu, levou. Em mais uma e inesperada gravidez da dona Tajes, estava tão convicto de que viria outra guria que o meu irmão Eduardo quase se chamou Maria Cândida, mesmo nascendo homem. Para constar, o Eduardo não se abalou com a confusão inicial, e nunca quis ser a Quarta Maria.

Mas a coisa está diferente. Não são poucos os pais de primeira viagem torcendo para que a ecografia mostre uma menina. E, quando mostra, a piadinha tosca, “fulano vai passar de consumidor a fornecedor”, quase não é mais ouvida. Não que os pais de antes não morressem de amor pelas suas filhas, a impressão é que os pais de agora perderam a vergonha de demonstrar. E já não deixam toda a responsabilidade de cuidar das meninas para a mãe.

Virou cena comum ver pai e filha juntos nos cinemas, nos estádios, nos restaurantes, na praia. E pai com filha forma sempre uma dupla encantadora. Ou trio, ou quarteto, ou quinteto, sejam elas quantas forem. Pai hoje sabe pentear cabelo, combinar saia com blusa, pintar unha, escolher biquíni. Não perde mais o humor em loja de departamentos, quem diria.

Transmite o gosto pelo futebol e pelo seu time à guria, acabando com um antigo privilégio dos meninos. Pai hoje sabe que tic-tac não é apenas o barulho do relógio, que devem haver mais ou menos 1.579 variações de cor-de-rosa no mercado e que banho rápido, tal qual o genro perfeito, não existe.

Acompanhando a filha assim de perto, dá para apostar que o pai, de brinde, vai terminar por entender melhor as outras mulheres também. Sorte delas.

E dele, então, nem se fala.


24 de fevereiro de 2011 | N° 16621
PAULO SANT’ANA


O que fazer da vida?

Um conhecido meu me pegou pelo braço e me deu conta de sua decisão: “Informo-te que estou largando tudo, tudo mesmo, e estou largando também a vida”.

E eu disse a ele: “Não te incomoda largando todas as outras coisas: simplifica e larga só a vida”.

Eu, como os filósofos, os sacerdotes e os curiosos em geral, me ocupo em decifrar a vida.

Às vezes, quase que me dou por vencido. São tantos os mistérios da vida, que não consigo perscrutar a maioria deles.

Mas outras vezes me encorajo, como quando recebi de uma pessoa uma mensagem cheia de esplendor teológico.

Alcançaram-me a mensagem ontem aqui no jornal.

O resumo da mensagem: “As misericórdias de Deus são as causas de não sermos consumidos”.

Eu me sinto muitas vezes assim: noto no meu dia a dia a proteção de Deus, da Virgem Santíssima. Parece-me nitidamente que sem essa assistência eu não poderia levar à frente a minha existência, tantos são os fatores que abalam minha resistência física.

E dali a pouco, como por um milagre, eu passo por mais aquele obstáculo. E por mais outro. Assim eu vou levando. Passam-se os anos e os meus autovaticínios pessimistas não se confirmam.

Só pode ser a mão de Deus. Algo me diz que ele está cuidando de mim, que ele não está se descuidando de mim e está me levando, mesmo aos trancos e barrancos, para a frente nos meus caminhos.

Eu preciso firmar na minha mente que Deus é bom e é justo. E, sendo justo Deus, ele está a meu lado, aproveitando essa vigília para manter-me erguido até a hora que soar a minha morte. Mas, antes disso, ele está me proporcionando alguns momentos estupendos da vida, aqueles instantes em que noto que cada vez mais eu raciocino melhor e mais visível se torna a minha capacidade de saborear a vida na sua mais profunda e significativa essência, que é o meu relacionamento com as outras pessoas.

Tanto que muitas vezes concluo que o inferno não são os outros. Pelo contrário, eu estou sabendo fazer dos outros meus agentes na busca e encontro de uma existência deliciosa.

A única coisa que me consola quando me defronto com grande dificuldade é que olho atentamente ao meu redor e vejo que outras pessoas sofrem igualmente a mim com dificuldades iguais ou congêneres.

Nunca se deve pensar que só conosco acontecem pequenas ou enormes catástrofes existenciais.

Consola-nos muito saber que todas as pessoas são suscetíveis de grandes problemas afins aos nossos.

A vida por si só também é um grande problema.

Trocar de amor é tão difícil e intrincado quanto trocar o pneu.

Da última vez que troquei de amor, fiquei todo engraxado.

E, quando se troca de amor, fica-se sempre num grande dilema: o que fazer agora com o pneu avariado?

O pneu bom foi colocado no carro, mas se deve agora continuar usando o ex-amor como estepe?


24 de fevereiro de 2011 | N° 16621
L. F. VERISSIMO


Infalibilidade

Os reis estão mais seguros do que os ditadores no norte da África e no Oriente Médio. No Marrocos e na Jordânia, pelo que se lê, a queda dos reis não está entre as reivindicações principais da rua. A revolta está custando a chegar à Arábia Saudita, protótipo de autocracia absoluta na região, e o poder dos aiatolás iranianos não parece estar ameaçado, por enquanto.

Já os ditadores estão caindo um a um, como jacas. Governavam como reis mas sem a autorização divina, eram reis ilegítimos. Assim, curiosamente, ao mesmo tempo em que dá um belo exemplo de conquista popular de democracia e modernidade, a sublevação endossa, indiretamente, a monarquia.

Constantino, que transformou o cristianismo de uma seita clandestina na religião oficial do seu império, escreveu certa vez numa carta que sua conversão tinha sido bem recompensada. “Recebemos da Providência Divina o supremo favor de estarmos eternamente livres de qualquer erro.” Os ditadores costumam acreditar que junto com o poder absoluto vêm, implícito, no pacote, os favores que a Providência Divina concede de nascença aos reis, começando pela infalibilidade. Mas não funciona assim.

“PARA-INFERNÁLIA”

É pura implicância, eu sei. Mas tenho tanta antipatia por toda essa para-infernália eletrônica que, enquanto nos facilita a vida, nos escraviza e nos humilha, que vibro a cada notícia de sua desmoralização, por menor que seja. Comemoro cada nova prova de que ela não é infalível.

Agora mesmo, surgiu um supercomputador, chamado Watson, que venceu dois humanos jogando “Jeopardy” na televisão americana. “Jeopardy” é um jogo de respostas que testa a memória e o conhecimento, e a capacidade do Watson de armazenar informação, reconhecer a informação que corresponde à pergunta e enunciá-la antes dos humanos representa um grande avanço sobre os computadores que, por exemplo, derrotavam campeões de xadrez, mas com os quais não se podia ter uma boa conversa sobre filmes, livros, a vida alheia etc.

O Watson não, o Watson sabe tudo. Leu tudo, viu tudo – mas (arrá!) tem uma falha. O Watson, às vezes, tem dificuldade em contextualizar. É o que seus construtores chamam de Síndrome de Paris Hilton.

Se você alimentá-lo apenas com as palavras “Paris Hilton”, o Watson se confunde, não sabe se a referência é ao hotel Hilton de Paris ou à herdeira maluquete dos Hilton, Paris. E é capaz de ficar mudo para não dar vexame. Um pequeno defeito para um computador, mas uma grande vitória para a humanidade. Eu não conseguiria vencer um computador nem num jogo de damas, mas jamais confundiria a Paris Hilton com um hotel. Ou vice-versa.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011



23 de fevereiro de 2011 | N° 16620
MARTHA MEDEIROS


A vontade de um povo

Mais forte que o amor, mais forte que o medo, mais forte que tudo: ninguém pode contra a vontade. O dia em que a gente compreender a magnitude disso, ninguém poderá conosco também. A Tunísia e o Egito mostraram a força da sua vontade recentemente, e fizeram escola, inspiraram outras nações.

As consequências, boas ou ruins, a história dirá, mas o que se pode confirmar dessas experiências políticas é que, quando se deseja verdadeiramente alguma coisa, as paredes somem, ninguém mais está preso.

Uma vez escrevi sobre a diferença entre querer e querer mesmo. Querer, apenas querer, todos querem: um país mais justo, uma vida mais excitante, só que fica tudo no plano dos sonhos. Ah, se um dia Deus olhasse aqui pra baixo...

Querer mesmo é diferente. Os que querem mesmo são considerados “eleitos”, porém não são tão sortudos assim. É um grupo de pessoas extremamente determinadas, que colocam uma coisa na cabeça e a perseguem até alcançar.

Teimosos? Às vezes são, e correm inclusive o risco de serem chatos. Mas, quando atingem seus objetivos, a teimosia se justifica e ganha o status de heroísmo.

A nação brasileira não é heroica, não nesse sentido. Pode ser heroica na luta pela sobrevivência individual, mas, coletivamente, é uma pátria sem vontade. Fazemos piada com a nossa desgraça, reclamamos muito em mesas de bar, mas dificilmente trocamos a praia por uma assembleia, o sofá por uma manifestação de rua.

É do nosso caráter acreditar que alguém fará o que tem que ser feito, não precisamos participar. Um a mais, um a menos, não fará diferença.

Quem dera nos mobilizássemos pelo que é sério assim como nos mobilizamos pelo que é alegre e descompromissado. Invadimos as ruas de um bairro inteiro para seguir um trio elétrico, batemos recordes de telefonemas para eliminar um BBB, vamos em bando ao saguão de um aeroporto para dar boas-vindas a um centroavante que acaba de ser contratado, mas a vontade não é tanta quando está em jogo algo que pode mudar nossas vidas.

Somos solidários na calamidade, fazemos doações, mas passeata para pressionar governantes a tomarem atitudes permanentes de prevenção do caos e da corrupção? Ah, nunca dá em nada. Garçom, mais um chope.

É bonito ver uma população se unir para defender um projeto comum, e assustador também, porque sempre há o componente da violência, seja pelo vigor do ataque ou da repressão. De forma alguma, é fácil. Mesmo quando pacífica, uma manifestação é sempre um barril de pólvora, bastam dois ou três elementos destoantes.

Então, pelo sim e pelo não, o brasileiro vota, enquanto for obrigatório, e o resto deixa a cargo do tempo, que é quem resolve tudo mesmo. Garçom, a saideira e a conta.


23 de fevereiro de 2011 | N° 16620
DAVID COIMBRA


Por que Beethoven era mau

As pessoas olhavam para Beethoven e nele viam um homem mau. É fácil perceber isso ao ler qualquer de suas tantas biografias. O próprio Beethoven não fazia nada para suavizar essa imagem. Ao contrário, tratava-se de um irritadiço que não poupava as pessoas da mediocridade em que viviam.

Como era um gênio alçado muito acima da platitude dos mortais, pouco ligava para a caridade, a solidariedade ou a justiça social. Numa carta para um amigo, escreveu:

“Não quero saber de seu sistema ético. A força é a moralidade de um homem que se destaca do resto, e eu a tenho”.

De arrepiar. Alguém poderia dizer que isso era darwinismo puro uma geração antes de Darwin, ou Nietzsche puro duas gerações antes de Nietzsche, ou nazismo puro quatro gerações antes de Hitler. Não era nada disso. Era solidão.

Obtive a prova ao deparar com uma carta que Beethoven escreveu aos seus irmãos, reproduzida num livro precioso e já esgotado, não adianta procurar: “As Grandes Cartas da História”, de Lincoln Schuster.

Nesse livro há uma carta de Alexandre, o Grande, para o homem que derrubaria e levaria à morte, o rei persa Dario III. Há uma carta de Agripina para seu filho Nero, ressaltando o amor de mãe, aliás inutilmente, já que logo depois ele ordenou que ela fosse estrangulada.

Há cartas escritas pelos amantes proibidos Abelardo e Heloísa; pelo descobridor equivocado Cristóvão Colombo; pelos gênios Michelangelo e Leonardo da Vinci; por Blaise Pascal, o homem que contestou Descartes e disse que conhecemos a verdade não apenas pela razão, mas também pelo coração.

E ainda há cartas de Spinoza, o meu filósofo favorito. Lá estão pulsando cartas de Voltaire, Benjamin Franklin e Thomas Jefferson, de Washington, Robespierre e Danton, de Napoleão a Josefina, de Faraday a Sara Barnard, de Victor Hugo, Byron, Keats, Poe e Dostoievski, de Dickens, Lincoln, Wagner e Tchaicovsky. De Zola. De Trotsky. E de Lênin, que advertia ser Stalin “um homem demasiado rude”.

Há uma troca de correspondências es-pe-ta-cu-lar entre dois dos homens que mais admiro na História: Will Durant e H. L. Mencken. Em 1933, Durant perguntou a vários intelectuais qual era, para eles, o sentido da vida. Mencken respondeu:

“O senhor me pergunta, em suma, que satisfação encontro na vida, e por que razão trabalho. Trabalho pela mesma razão que uma galinha põe ovos. Há em toda criatura viva um impulso obscuro mas poderoso de funcionamento ativo.

A vida quer ser vivida. A inação, a não ser como medida de recuperação entre duas fases de atividade, é penosa e arriscada para a saúde do organismo – e de fato é quase impossível. Só os moribundos podem ser realmente ociosos”.

E por aí vai, atirando pérolas pelos parágrafos afora.

Pena que você jamais, eu disse JAMAIS!, vai ler esse livro. Porque esgotou-se, e eu não empresto.

Mas dizia que nesse livro há cartas de Beethoven. Algumas para sua namorada misteriosa, que ele chamava de “Amada Imortal”, e a tal, que me referi acima, para seus irmãos, nunca enviada, para ser lida apenas depois de sua morte. No texto, Beethoven discorreu pungentemente sobre sua surdez:

“Ó homens que me considerais ou me fazeis passar por odiento, cabeçudo ou misantropo. Como sois injustos para comigo! (...) Nascido com um temperamento fogoso e ativo, acessível mesmo às distrações da sociedade, cedo tive de me afastar dos homens, de levar uma vida solitária (...), castigado pela experiência redobradamente triste da minha surdez. (...)

Não me era possível dizer às pessoas: fale mais alto, grite, que eu sou surdo. Como me seria possível revelar a fraqueza de um sentido que eu deveria possuir num grau mais perfeito do que os outros homens, um sentido que dantes tinha em mim a maior perfeição?”

Beethoven continua carta abaixo confessando que havia pensado até em suicidar-se, mas decidiu viver por amor à arte – ainda havia muito a fazer, e ele fez. Suas maiores obras, compôs surdo.

Por isso Beethoven parecia um homem mau – ele se afastava das pessoas de medo delas. Com medo de que percebessem sua deficiência e o julgassem menor do que era, ele que era imenso.

Que trágica ironia, o homem que, junto com Mozart, foi o maior gênio da música, terminar os seus dias sem poder ouvir. O sentido mais importante para Beethoven, o sentido que, sem trocadilho, dava sentido à sua vida, ele o perdeu. Ronaldo, um gênio da bola, não viveu algo semelhante, ao encerrar a carreira sendo encarado pelos medianos mortais como não mais do que um centroavante gordo?

Riam de Ronaldo, como Beethoven temia que rissem dele. A mediocridade é cruel. Mas, quando a poeira da História toma assento, é o gênio que fica, e só o gênio, nada mais.


23 de fevereiro de 2011 | N° 16620
JOSÉ PEDRO GOULART


As pedras do caminho

Há milhões de anos a Terra foi bombardeada por meteoritos. Os impactos estilhaçaram a planície rochosa, monolítica – criada a partir de uma espessa lava vulcânica. Os pedaços formaram novas cadeias de acomodação. Alguns desses pedaços continuaram imensos, outros, relativamente pequenos. Depende se você é um dinossauro, um ser humano ou uma formiga.

As pedras estabeleceram formas comuns. Às vezes, o desenho ficou excêntrico, verdadeiras esculturas, provocando conceitos místicos sobre aquilo.

A lei da gravidade reteve imóveis as rochas maiores, apenas impulsos violentos (um terremoto, por exemplo) mexem naquela eternidade complacente; enquanto as pedras pequenas e as bem pequenas foram liberadas para rolar, serem chutadas ou se esfarelarem com o vento, formando novos rascunhos no horizonte.

O que não é comum é que uma delas, de meia tonelada, possa ser alavancada por uma passo em falso durante o percurso de um montanhista; e isso é tão improvável quanto o fato dela cair numa fenda sobre esse mesmo montanhista sem que ele morra, mas tendo o braço esmagado e preso sob o peso de mais uma acomodação.

O encontro dela e do corpo levará a vítima inevitavelmente a uma reflexão fatalista: a pedra esteve ali, naquele lugar desde sempre, com o propósito daquele instante dramático.

É o que imagina o protagonista do filme 127 Horas. Ele crê que tudo começou com a viagem daquele meteorito num tempo remoto, conclui que o destino fez com que um pedaço de rocha repousasse ali, esperando pelo infortúnio dele, esperando para lhe tirar a vida numa morte prematura.

Ele pensa nisso enquanto está preso, um momento claustrofóbico para o espectador, sendo essa o tipo de claustrofobia que se define pela contradição entre a imobilidade do corpo versus a fluidez do oxigênio.

Porém há uma outra claustrofobia que é paradoxal à ideia determinista. E essa não tem nada a ver com os aspectos físicos. É a seguinte: há algo mais claustrofóbico que um destino de pedras marcadas?

O sufoco de imaginar que possa haver uma agenda para cada um de nós, algo inexorável que nos torne marionetes de um interesse desconhecido, independente da nossa vontade e decisão?

Se há alguma ordem no universo, acima das leis da física, ninguém provou. A fé depende de ficção e até aqui, desde o fim da Era Glacial, as pedras estão presas ou soltas como sempre estiveram, e o desejo que temos de sobrepô-las mesmo à custa de muita dor como no filme é a única coisa que pode nos libertar.

P.S.: Os dinossauros dominaram a Terra por 160 milhões de anos. O homem existe há 3 milhões. Precisamos de mais 157 milhões para igualar o feito. Será? Já as formigas entraram na primeira chamada e não sairão antes do fim da festa.


23 de fevereiro de 2011 | N° 16620
PAULO SANT’ANA


O céu é dos bombardeiros

Os aviões de guerra do ditador Muamar Kadafi, da Líbia, estão bombardeando as manifestações populares que pedem sua renúncia.

Eu já tinha visto reações de todo tipo por parte de ditadores. Mas bombardear as ruas apinhadas de manifestantes, isso eu nunca tinha visto.

Os bombardeios sobre o povo não têm um fim nobre que poderia ser alegado: a manutenção da ordem pública. Esses massacres obedecem a apenas uma lógica: o ditador quer manter-se ainda no poder, depois de já décadas de poder.

O poeta Castro Alves escreveu: “A praça é do povo como o céu é do condor”.

Kadafi perverte esse axioma poético e libertário, bombardeando as praças repletas de multidões, tentando afirmar ao mundo que “a praça é dos aviões de bombardeio, saiam da frente que estamos descendo dos ares para aniquilá-los”.

Para o povo, deveriam vir do céu as bênçãos de Alá, trazidas em mensagens pelas aves condoreiras.

Ao contrário, vêm mísseis e balas disparadas pelo déspota. Não foi esse mesmo Kadafi visitado esses dias pelo então presidente Lula?

Levantamos as mãos para o céu, só agora, por Hosni Mubarak e Zine El Abidine Ben Ali, ditadores apeados do poder na crista desta onda de revoltas e protestos árabes, não terem bombardeado com aviões os povos egípcio e tunisiano: acataram relativamente bem os protestos e abandonaram seus tronos sem este estigma cruel de bombardeá-los nas praças e ruas.

Ainda bem que os ditadores reais do Iêmen e do Bahrein, Ali Abdullah Saleh e rei Hamad bin Isa al-Khalifa, estão resistindo às revoltas sem bombardear seus súditos.

O que mais impressiona são os líbios que se atiram aos protestos nas ruas, uns tombando, outros resistindo à espúria e desumana reação de Kadafi, esses mortos líbios que já podem estar em torno de 500, se é que já não são um milhar – as comunicações são estrategicamente atrapalhadas ou ceifadas para que o mundo desconheça a carnificina, são heróis da raça, combatentes pela liberdade e contra o autoritarismo, é muito pouco mas têm de receber nossa solidariedade.

O homem é lobo do homem e não raro os governantes são lobos dos governados.

É desanimador que em nenhuma parte do planeta os homens consigam erigir seus sistemas de governo e institucionais de forma que não sofram violências e iniquidades.

Nos dois hemisférios, desde a fundação da humanidade, bilhões de vítimas de ditadores e déspotas em geral ganharam a morte como prêmio a sua rebeldia.

Maldito Kadafi.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011



22 de fevereiro de 2011 | N° 16619
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Como eram os domingos

Essa história de que os domingos de ontem eram parecidos com os de hoje não é bem assim. Havia muitas diferenças, e nem sei te dizer se para pior ou para melhor.

Para princípio de conversa, o dia começava, nas famílias de classe média remediada, com um ritual obrigatório: a missa, acompanhada de confissão, comunhão e jejum absoluto. Depois servia-se o almoço, que no geral se compunha de um cardápio em que não costumavam faltar a salada de batatas, a massa e a galinha assada.

E aí estendia-se, risonha e franca, a tarde. Era um programa de múltipla escolha. Você podia eleger as matinês daquela multidão de cinemas espalhados pelo Centro – da Rua 7 de Setembro à Avenida Borges de Medeiros.

Desejava ver um filme romântico? As opções eram muitas, dos dramas sentimentais do Imperial, do Guarani ou do Victoria, à atmosfera europeia do Ópera ou do Cacique. Preferia um policial ou um suspense? Era simples: bastava inclinar-se pelo Capitólio ou pelo Continente. E havia ainda a livre opção, já fora do Centro, pelo Marabá, o Avenida, o Ipiranga, o Colombo, o Orfeu e mais uma dezena de salas espalhadas pelos bairros.

Mas se a tua inclinação não fosse a chamada Sétima Arte, sobrava o apelidado Esporte Bretão. Ainda peguei em grande forma o Estádio dos Eucaliptos e nele vi jogar Tesourinha.

A cidade tinha sete times disputando o campeonato local: Internacional, Grêmio, Cruzeiro, Renner, Nacional, São José e Força e Luz. Fui apresentado a eles num embate entre Inter e São José, gloriosamente vencido pelo primeiro, numa goleada memorável. Também gloriosa foi a inauguração do Beira-Rio, que conheci ainda em seus alicerces.

Hoje já não existem cinemas, desses com bilheterias abertas para as calçadas. O Estádio dos Eucaliptos, segundo me informam, será transformado num shopping. Mas restará o Beira-Rio, renovado e pronto para uma Copa do Mundo.

E restarão minhas lembranças de um tempo em que eu segurava ternamente as mãos de minha amada nas matinês do Cine-Teatro Imperial.