quinta-feira, 30 de setembro de 2010


CLÓVIS ROSSI

O sonho e o amontoado

SÃO PAULO - De repente, ouço do cantor e compositor Oswaldo Montenegro, em entrevista para a TV Gazeta, uma frase que, para o meu gosto, é uma síntese quase perfeita para o momento: "Sou do tempo em que a gente sonhava junto; hoje, sonhar junto é cafona".

Vale para as eleições brasileiras. A frieza que as cerca reflete, acho, a falta de sonhos coletivos e o predomínio do individualismo. Essa história de "pai" ou de "mãe", por exemplo, é típica de relação patriarcal, de cima para baixo, bem longe do "somos todos iguais/ braços dados ou não" daquela canção de Geraldo Vandré. Foi um dos hinos da resistência à ditadura.

Por falar em ditadura, nunca esqueci de uma frase que os espanhóis usavam muito, nos anos posteriores à morte de Francisco Franco Bahamonde, o ditador que ganhou a guerra civil (1936/39) e que ficou no poder até morrer, em 1975: "Contra Franco, vivíamos melhor", dizia-se.

Viviam melhor, apesar das perseguições, apesar da ditadura, porque sonhavam juntos e era facilmente discernível quem era mocinho, quem era bandido, conforme o lado que se escolhesse.

As centrais sindicais espanholas que sonhavam junto com socialistas e comunistas, entre outros, lideravam ontem uma greve geral contra as reformas impostas pelos socialistas, que estão no governo e já não sonham, rendem-se ao pesadelo imposto pelos mercados.

Lembrei de Vandré por causa da entrevista que a Globo News anunciava na semana passada e cuja exibição acabei perdendo.

Fui buscar na internet e encontrei uma frase que remete ao início. Questionado sobre em que país vive, Vandré respond
e: "Eu até me atreveria a dizer que quem não vive no Brasil é a maioria dos brasileiros. A quase totalidade dos brasileiros não vive mais no Brasil. Vive num amontoado".

crossi@uol.com.br


30 de setembro de 2010 | N° 16474
LETICIA WIERZCHOWSKI


Um livro, um homem, um lugar

Memórias de Adriano, da belga Marguerite Yourcenar, é um dos livros que marcou a minha vida. Com pasmo e encantamento voltei por suas páginas, prendendo a respiração ante a magnificência do mundo dos Césares, a fúria do Império Romano e os amores e angústias que rondaram a alma do Imperador Adriano.

Tanto esse livro me marcou – não somente por sua bela narrativa, detalhada e imaginativa, amparada em intermináveis estudos e fontes – que muitas vezes eu andei, também imaginativamente, pelos largos caminhos adornados de estátuas da vila que Adriano construiu para sua residência em 125 d.C., nos arredores da cidade de Tíbur, hoje conhecida como Tivoli.

Estive na Itália na semana passada, e com que euforia tomei o trem até Tivoli e me vi às portas da antiguíssima Vila Adriana. Senti-me voltando no tempo – isso até pisar na pequena praça em frente à Vila, onde bancas vendem bebidas geladas, um hotelzinho anuncia seu Café Vila Adriana e ambulantes oferecem as eternas bugigangas que os incautos levam para casa à guisa de suvenir.

No meio da pequena praça, uma placa anunciava: Largo Marguerite Yourcenar, e senti vergonha pela escritora em cujas anotações pós-epílogo da edição que guardo em casa dizia “oliveiras foram cortadas para dar lugar a um indiscreto estacionamento e a um quiosque-bar, gênero parque de exposições, que transformam a solidão do Pécile numa paisagem de praça mediocremente ajardinada”. Pobre Marguerite, pensei – mas as homenagens quase sempre são constrangedoras.

Enfim, lá dentro, a despeito de tudo, a Vila Adriana ainda é um lugar encantado. Longe o suficiente das hordas de turistas que abarrotam as ruas de Roma, a propriedade parece estar às margens do tempo.

Andar entre as ruínas daquilo que foi uma das mais magníficas obras do gênio humano, onde o destino do mundo romano foi discutido e acertado e onde Adriano chorou seu amor pelo jovem Antínoo, é um exercício de humildade e de contemplação. Cada pedra daquelas, quantas vidas já testemunhou?

Entre o mítico Adriano e eu, quantos romanos, quantos bárbaros, quantos nobres, vagabundos, poetas, pastores, soldados, loucos de amor e suicidas passaram por entre os belíssimos caminhos do Canopo?

Saqueada ao longo dos séculos, a Vila Adriana foi bombardeada durante a Segunda Guerra Mundial, mas suas ruínas seguem ostentando a grandiosidade que Marguerite Yourcenar logrou recriar no seu belíssimo romance. O mesmo tempo que levou o Imperador romano e a escritora francesa há de seguir passando de roldão por sobre todos nós. As ruínas da Vila Adriana, no entanto, ele parece palmilhar com carinho


30 de setembro de 2010 | N° 16474
PAULO SANT’ANA


Os sonhos

Tenho sonhado insistente e variadamente nas últimas noites.

O que me impressiona é que, mal acordo, sinto que sonhei bastante, mas não me lembro de nenhum dos meus inúmeros sonhos.

Como não lembro deles, não sei se são bons ou maus os meus sonhos.

Entre eles, devem existir alguns pesadelos, mas tenho certeza de que nenhum deles se equipara ao pesadelo de minha vida real.

Afinal que significarão os sonhos? Será que Freud explicou isso no seu famoso livro dos sonhos?

Serão os sonhos manifestações do nosso inconsciente? De uma coisa tenho certeza, pela experiência do tempo em que recordava a íntegra dos meus sonhos: eles se referem muito mais a meu passado do que propriamente sejam previsões do futuro.

Por isso é que sempre desconfiei que meus sonhos tivessem a ver com vidas passadas, outras encarnações por que eu tenha atravessado.

Tem gente que sonha com números e ganha na loteria por isso.

Quero dizer que sei como isso se processa: 8 milhões de pessoas sonham com números e jogam na loteria.

Evidentemente que um deles ganhará na loteria e o que se pensou era uma premonição não passou de um cálculo aritmético, mediante o qual fica afirmado que, quando milhões jogam na loteria, é evidente que um só deles acertará no palpite que levou ao prêmio.

Mas eu tenho uma certeza maior a respeito de sonhos, adquirida ainda no tempo em que me lembrava deles no dia seguinte: os sonhos são muito ligados ao medo.

Por mais de uma centena de vezes notei que meus maiores medos não se concretizavam na vida real, mas ocorriam sempre nos sonhos.

Por sinal, o medo preside a vida humana. Dizem até que os medos são necessários para que o homem se conduza bem na vida.

Assim, quem tem medo de perder o emprego caprichará muito mais na sua profissão e estará garantido contra o desemprego.

Um sonho muito comum é aquele de quem está amando: fatalmente sonhará com a perda do ser amado.

E como dói no sonho ver-se traído pela mulher amada! Então, a gente acorda e pergunta para a mulher amada, que está ao lado na cama: “Está tudo bem?”. E ela: “Sim, tudo bem. Mas por quê?”. E você conclui: “O.k. Por nada”.

A única grande e impressionante coincidência que houve comigo em sonhos faz mais de 40 anos.

Eu era inspetor de polícia em Arroio dos Ratos e sonhei que era varredor de ruas. Varredor, com vassoura.

Acordei e fui trabalhar. A primeira ocorrência policial que fui atender era um acidente de trânsito na BR-290.

Cheguei lá e havia diversos mortos e ainda tive de sacrificar a tiro um cavalo que se envolvera no acidente, estava sendo transportado por um caminhão.

Fiz o levantamento do local, logo em seguida tive de varrer o chão da rodovia, que ficara inteiramente sujo pelas mercadorias de um outro caminhão.

Eu varrendo chão da via pública?

Pois não era exatamente o que eu tinha sonhado na noite anterior?


30 de setembro de 2010 | N° 16474
L. F. VERISSIMO


Exageros demais

Gosto muito da frase do Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, quando lhe contaram que andavam dizendo que ele era homossexual:

– O pessoal exagera um pouco...

O “pessoal” – aí entendido como não apenas os contemporâneos e conterrâneos do grande Stanislaw como a humanidade em geral – tem mesmo uma tendência a exagerar.

O exagero simplifica e aguça, tem mais graça, chama mais atenção – enfim, é compreensível. E deve ser tratado com a mesma tolerância com que o Stanislaw tratou os boatos do “pessoal” a respeito da sua sexualidade.

Tomemos como exemplos os exageros que dominam este fim de campanha, todos sobre o papel da imprensa nas eleições. De um lado, o dos que dizem que a parcialidade da grande imprensa brasileira chegou a uma espécie de paroxismo com a perspectiva de uma vitória da Dilma com maioria no Congresso, e que há uma conspiração em curso dos grupos que controlam a mídia no país para evitar que isto aconteça.

Do outro, o dos que vêem na vitória da Dilma com maioria uma ameaça à liberdade de pensamento e expressão no Brasil, ainda mais depois do que andou dizendo o Lula – comparado ao Mussolini como líder de uma ameaça populista à nossa democracia – sobre uma grande imprensa “oposicionista”.

Dois exageros perfeitamente compreensíveis, como se vê. O pessoal só exagerou um pouco demais. É difícil imaginar as quatro ou cinco famílias supostamente donas do espaço publicitário no país reunidas para evitar a continuação de um governo que ampliou este espaço como nenhum outro.

Já é difícil imaginar as tais famílias juntas por qualquer motivo. E alguém acredita que a Dilma, uma vez eleita, convocaria os barões da imprensa para, embaixo de um retrato do Duce de Garanhuns, obrigá-los a publicar só o que o governo quer, sob pena de represálias?

De um lado ou de outro, busca-se uma mobilização contra fantasmas inventados. Ou um pouco exagerados.

Mas sejamos como o grande Stanislaw e perdoemos os que exageram. É época de eleições, grandes questões, para não falar em grandes somas, estão em jogo, a moderação e o senso comum perdem para as paixões e, afinal, o “pessoal” é assim mesmo. Aconteça o que acontecer, eu estou saindo de férias.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010



29 de setembro de 2010 | N° 16473
SERVIÇO LIMITADO


Bancários iniciam greve às vésperas das eleições

Sindicalistas e cientistas políticos negam tática eleitoral na paralisação

Apesar de faltarem apenas cinco dias para o primeiro turno das eleições, funcionários da Caixa, Banco do Brasil, Banrisul e bancos privados no Estado decidiram ontem entrar em greve por tempo indeterminado a partir de hoje. A decisão segue o movimento nacional da categoria.

Os bancários decidiram pela paralisação em virtude do impasse principalmente em torno do índice de reajuste. Enquanto os sindicatos pedem um aumento de 11%, a Federação Nacional dos Bancos (Fenaban) oferece uma negociação a partir de 4,29%.

A categoria foi orientada pelo Comando Nacional dos Bancários a rejeitar a proposta e decidir pela greve. Até as 21h30min, a greve já havia sido aprovada na maioria das capitais e principais cidades, como São Paulo, Rio, Belo Horizonte e Porto Alegre.

– As decisões das assembleias demonstram a indignação dos bancários com a postura intransigente dos bancos – afirma o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf-CUT), Carlos Cordeiro. – Com os lucros de R$ 21,3 bilhões obtidos somente por cinco bancos no primeiro semestre é possível o atendimento das demandas da categoria.

Este é o sétimo ano consecutivo que os bancários fazem greve. Em 2009, pararam durante 15 dias.

Na Capital, assembleia teve participação de 500 pessoas

De acordo com líderes sindicais gaúchos, a decisão próxima ao pleito não tem motivação eleitoral. Lembram que o movimento é realizado anualmente em setembro por ser a data base da categoria.

– As eleições não interferiram – afirma o diretor de organização da Federação dos Trabalhadores em Insitituições Financeiras no Estado (Fetrafi-RS) Arnoni Hanke, filiado ao PT.

Também ligado ao PT, o presidente do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e Região Metropolitana (SindiBancários), Juberlei Bacelo, reafirma que o calendário eleitoral não interferiu na data. Um dirigente sindical, no entanto, diz que sentiu dos líderes nacionais e paulistas intenção velada de levar a decisão para depois do segundo turno como forma de evitar desgaste à candidata do PT à Presidência, Dilma Rousseff.

Para a cientista política Celi Pinto, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o impacto do movimento nas eleições será nulo. Celi não vê tática eleitoral no movimento, pois atinge todos os bancos. A opinião é dividida com cientista político Ricardo Caldas, da Universidade de Brasília (UnB):

– Como os bancos nem fizeram contraproposta, a greve mostra a perda de importância relativa dos bancários pela informatização dos serviços. Boa parte da população nem vai perceber a greve.

Na Capital, a decisão foi tomada em assembleia com cerca de 500 pessoas. Até as 22h, a Fetrafi-RS tinha o retorno de 15 dos 38 sindicatos do Interior e todos teriam decidido pela greve.

Bem quando não há outra maneira de se fazer ouvir, é o recurso previsto na lei. Lamentável é que todos os anos tenha que ser assim. Ainda assim um lindo dia para você


29 de setembro de 2010 | N° 16473
PAULO SANT’ANA


Paraná de passo certo

Caía-me o queixo que nenhum tribunal do país tivesse impedido de serem publicadas as pesquisas eleitorais, tão flagrantemente ilegais elas se revelam.

Basta dizer que as pesquisas, não fosse por outro motivo, apontam o resultado das eleições antes mesmo que elas se firam.

Além disso, as pesquisas retiram das eleições o seu charme supremo, que é a emoção da apuração dos votos.

Com as pesquisas, aquela pergunta emocional que rondava todos os espíritos (“quem vai ganhar a eleição?”) deitou-se por terra.

Ninguém mais quer saber dos resultados das eleições, todos são atraídos pelos resultados das pesquisas.

As datas de divulgação das pesquisas pelos meios de comunicação se tornaram muito mais aguardadas que a data da eleição.

Não me cai mais o queixo que permitam a realização de pesquisas. É que no Estado do Paraná as pesquisas foram proibidas pelo Tribunal Regional Eleitoral.

E, estranhamente, enquanto nos outros Estados todos as pesquisas são divulgadas, o Paraná está vendo a campanha eleitoral se realizar sem o acompanhamento das pesquisas.

Enfim, um reduto jurisdicional acolhe o entender desta coluna de que as pesquisas desequilibram as eleições.

Espanta-me somente que nos demais Estados não tenham os tribunais competentes se perfilado à decisão do Paraná.

Nesses casos, evidentemente, a Justiça decide se provocada. Algum partido político ou candidato aponta as pesquisas como ilegais e vai até o pretório para anulá-las. Com toda a certeza, foi isso que aconteceu no Paraná. Levado ao julgamento o óbice que interpunha algum prejudicado, foi sua ação considerada oportuna.

Será que em nenhum outro lugar do Brasil ninguém mais reclamou? Ou será que a inquinação de ilegalidade não deveria ser levantada pelos Ministérios Públicos eleitorais?

Enfim, quanto mais não seja, as pesquisas tiram a graça das eleições.

E eleições são coisas tão importantes que não poderiam ter seu conteúdo destruído, avariado, sequer molestado pelo poder decisório das pesquisas sobre as mentes dos eleitores.

A Câmara de Vereadores entregou ontem ao juiz de Direito Rinez da Trindade o título de Cidadão de Porto Alegre.

Rinez da Trindade, depois de percorrer várias comarcas do Interior, atua atualmente como assessor especial da presidência do Tribunal de Justiça para assuntos institucionais.

Em todos os seus misteres como juiz e antes na qualidade de servidor público de outros poderes, Rinez da Trindade granjeou a admiração dos amigos e de todos pela sua solicitude, cordialidade e eficiência.

O recinto da Câmara foi assim pequeno para receber tanta gente tocada por Rinez nesses anos todos.


29 de setembro de 2010 | N° 16473
DAVID COIMBRA


Como surgiu a palavra escrita

Tempos atrás conheci um cara que foi professor de surdos-mudos. Ele me contou algo sobre o qual nunca havia pensado: que, para um surdo-mudo, é MUITO MAIS DIFÍCIL aprender a ler e a escrever do que para quem ouve bem. Revelou-me, o professor, que não raro, um surdo-mudo atravessa a existência nas trevas do analfabetismo absoluto.

A informação a princípio me deixou perplexo. Afinal, a leitura é um exercício silencioso. Você não precisa falar ou ouvir para ler. Nem deve. A concentração necessária à boa leitura faz-se na paz e na quietude.

Assim, eu imaginava que os livros eram um refúgio de Primavera para quem não podia ouvir ou falar, quando ocorre exatamente o contrário.

Por quê???

Porque nosso sistema de escrita é fonético. Quer dizer: cada letra representa um som. A palavra escrita “casa” reproduz simbolicamente os sons pronunciados: “ca... sa”.

Para quem nunca ouviu este som, a palavra “casa” não significa nada. É apenas um desenho: uma meia-lua crescente, “C”; uma pequena torre, “A”; uma serpente, “S”; outra torre, “A”. Agora, se eu desenhar um quadradinho com um triângulo em cima, todos vão entender que estou representando uma casa.

Um surdo-mudo de nascença, para aprender a ler, tem de DECORAR todas as palavras. Você percebe como isso é complexo? Se eu escrever, por exemplo, fuquifúqui, lóqui, extradular, aiam e triquetrique-rolimã-blimblim, que são palavras típicas do dialeto porto-alegrense, mas que não existem na língua portuguesa padrão, se eu escrever qualquer um desses termos, um surdo-mudo que decorou as palavras não compreenderá do que se trata. Mas um carioca que ouve bem, e que jamais conversou com um gaúcho, vai depreender o significado das palavras pelo som:

– Eles fizeram fuquifúqui.

– Tu é um baita dum lóqui.

– E aiam? Tudo tri?

– Tudo triquetrique-rolimã-blimblim.

Nós escrevemos os SONS que falamos, entende?

Nosso alfabeto é auditivo.

Suponho que um surdo-mudo tenha mais facilidade em ler em chinês. Afinal, a escrita chinesa é pictográfica. O alfabeto deles é visual. Os chineses precisam decorar o significado de cada desenho que representa uma ideia, um objeto e até um sentimento. Não é à toa que há mais de 40 mil caracteres chineses. Porque há mais de 40 mil coisas no mundo para serem expressas.

Você não precisa saber falar chinês para saber ler em chinês. Um estrangeiro, alguém que jamais pisou na China, jamais viu os olhos amendoados de um chinês ou jamais falou uma única palavra na língua de Mao, esse estrangeiro pode muito bem ler chinês. Porque os pictogramas são símbolos visuais, não sonoros. Como as luzes verde, amarela e vermelha dos semáforos. Como os cartões amarelo e vermelho do futebol.

Os cartões foram inventados, precisamente, por causa do desentendimento verbal entre os homens. Sobretudo devido a UM desentendimento verbal: Inglaterra e Argentina se enfrentavam na Copa de 1966. O capitão da Argentina, o mítico Rattín, não concordou com uma decisão do juiz.

Foi reclamar, mas Rattín só falava espanhol e o juiz só falava inglês. Esbravejou com toda a ênfase de um argentino indignado. Em vão. Não havia um único europeu nas imediações que o entendesse. Resultado: Rattín foi expulso de campo. A caminho do vestiário, furioso, amassou uma bandeira da Inglaterra, escandalizando a torcida, a rainha e o técnico inglês, Alf Ramsey, que xingou os hermanos:

– Animals!

Um incidente internacional, pois. Para que isso nunca mais acontecesse, a FIFA criou os cartões amarelo e vermelho. Ninguém precisava mais falar, ninguém precisava mais escrever, bastava um símbolo. Uma cor.

E agora, no Campeonato Brasileiro, o que se vê é juiz mostrando cartão amarelo por qualquer deslize, até por erro de concordância. Por favor! Por que não usar a língua portuguesa, a última flor do Lácio, inculta e bela?


29 de setembro de 2010 | N° 16473
DIANA CORSO


Saudosa senzala

O Brasil mudou muito nesses últimos anos, e nem todos prestamos atenção ou nos demos conta, para bem ou para mal não somos os mesmos. Especialmente as classes C e D são as novas protagonistas num país que não estava acostumado com isso, agora elas compram, estão mais visíveis.

Pequenos detalhes, como ter um telefone que era caro e difícil, hoje é barato e banal, estão acessíveis a geladeira nova, a TV maior, o trânsito está entupido por novos carros. Prestações e carnês enchem as lojas e esvaziam as prateleiras.

Entre os irritados com a conjuntura atual, encontram-se alguns economistas que, em seus termos misteriosos, fazem previsões de que pagaremos caro pelos dias de fartura. Sei lá, sou ignorante de suas sabedorias.

Mas há outro tipo de gente incomodada com a situação atual, e esses, sim, me exasperam: são os viúvos do sistema de castas, que tinham um sem-número de pobres à mercê de suas roupas velhas, pequenas esmolas e favores de senhor da casa-grande. Essa senzala invisível está sendo erradicada do coração dos mais humildes, mas sobrevive na memória recente dos mais abastados e não é fácil abrir mão dela.

A diferença social fazia de qualquer remediado de classe média um senhor feudal, sua vida era mais admirável, seus bens mais reluzentes, seus filhos mais promissores.

Hoje, o filho de uma empregada doméstica pode disputar vaga na universidade federal com o da patroa que estudou em escolas caras, graças ao sistema de cotas, o que enche esta última de indignação, e ambas podem ter o mesmo modelo de celular. Mesmo entre os intelectuais, uma miséria digna e consciente lhes parece mais atraente do que essas novas hordas de entusiastas consumidores, de quem lamentam a banalidade de horizontes.

Um ser humano se torna o que é porque outro lhe faz espelho, contraponto. A miséria de uns auxilia a que a imagem de outros pareça mais faustosa, são papéis que se complementam. Melhores índices de qualidade de vida em um país, portanto, não têm motivo para agradar a todos, mesmo que seja por motivos inconfessáveis, inconscientes.

Estamos muito longe da igualdade social com que sempre sonhei, mas esse novo quadro, aliado ao fato de que os candidatos mais importantes neste pleito são oriundos das fileiras da luta contra a ditadura, me deixa de bom humor.

Gosto de ver a política viva, embora ela costume aparecer apenas trajada de escândalos, prefiro-a paramentada de promessas. Além disso, nunca esqueço que as eleições diretas foram uma árdua conquista, por isso, elas ainda me produzem certa emoção, simplesmente por existirem.

terça-feira, 28 de setembro de 2010



28 de setembro de 2010 | N° 16472
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


A vida e a História

Não é muito comum que pessoas que já nos deixaram – algumas delas merecendo cadeira cativa nos manuais de História – voltem a visitar-nos vivas e presentes nas páginas de uma novela. Foi o que me aconteceu ao percorrer as páginas de A Noite de Netuno e da Virgem, do arquiteto e urbanista Osni Schroeder. É um livro que somente agora, três anos depois do lançamento, recebo, por uma gentileza de meu irmão Eduardo.

Toda a trama se passa em Cachoeira, numa noite de inverno. Nathalio, boêmio por gosto e inclinação, é o personagem principal, mas não absolutamente o único. Num estilo direto e saboroso, o autor nos apresenta uma variadíssima coleção de criaturas, algumas saídas de sua imaginação, como Vilma, a que sente muito frio, mas não sai da janela de sua casa, com vista privilegiada para a Praça Balthazar de Bem e as vidas alheias; outras, retiradas do fundo dos decênios e dos séculos.

Mas as grandes personas desse cenário, todas iluminadas pela narrativa envolvente de Schroeder, são a esplanada moldada pela Catedral e a Virgem que está em seu topo, o Château d’Eau, um caprichoso conjunto de fontes, palmeiras e pontes, o prédio antigo da Prefeitura, visitado pelo Imperador Pedro II.

A Catedral é toda uma bela escultura coroada por duas torres e mais um exercício de estilos que remontam ao ano de 1799. O Château d’Eau, que tem no topo o deus Netuno apontando seu tridente para o infinito, é o símbolo da cidade, em particular pelas ninfas, que derramam a água de seus cântaros sobre um lago povoado de peixes vermelhos. E a Prefeitura, que tem estampada na fachada o ano de 1864, é um exemplo magnífico da arquitetura colonial brasileira.

Esse foi o palco escolhido por Osni Schroeder para exercer seu realismo fantástico. Não pretendo fazer desfilar nestas poucas linhas toda a riqueza dos personagens que povoam sua ficção.

Direi apenas que há uma cena, para mim inapagável, em que João Neves da Fontoura saúda em um discurso meu pai, Liberato Salzano Vieira da Cunha. Restam lugares para criaturas sobrenaturais, como Santa Josefa, a velha estação de trens, ou um carro antigo, que acelera do avesso do tempo.

E mais não conto para não roubar o prazer da leitura de quantos só agora, como eu, estão folheando as páginas de um livro singular.

Uma linda terça-feira. Aproveite o dia.


28 de setembro de 2010 | N° 16472
LUÍS AUGUSTO FISCHER



Um antigo 28 de setembro

Sinceramente, eu ia escrever sobre outro tema: a curiosa circunstância de os três principais candidatos ao governo do estado serem da mesmíssima geração (Yeda nascida em 1944, Fogaça e Tarso em 1947). São todos sessentões, e eu ia tentar uma teoria sobre a falta de protagonistas da geração seguinte, que é a minha (classe de 1958).

Para dar um exemplo notável: nas eleições de 82 se candidataram Simon (na flor dos 52), Collares (55), Jair Soares (49) e Olívio (categoria júnior, então com 41 anos). É que o tempo se espichou para todos, e além disso um ciclo histórico está em seu auge, etcétera e tal.

Mas resolvi deixar de lado o tema ao ver a data de hoje: 28 de setembro. Todo leitor de Machado de Assis, como este seu criado, sabe que a data está no centro de sua atenção. A 28 de setembro de 1871 foi promulgada a Lei do Ventre Livre, primeira legislação relevante depois de 1850 em torno do tema da escravidão. Se dependesse das elites proprietárias mais ricas, nada disso teria acontecido.

Um dos argumentos que usavam era notavelmente cretino: que os proprietários de escravos não podiam ser penalizados uma vez que – o argumento tinha fachada liberal – os escravos tinham sido comprados dentro da lei e portanto o governo nada tinha que se meter num negócio privado.

Um primor de retórica vazia (e política cheia), que mantinha centenas de milhares de indivíduos na abjeção. A Lei de 28 de setembro tinha um enunciado singelo: ficavam livres os filhos de ventre escravo nascidos depois daquela data. Mas a aplicação é que foi uma farsa, dessas que o Brasil apresenta de vez em quando: a lei previa que, como não havia registro confiável dos escravos, ficavam os donos obrigados a “fazer a matrícula” dos escravos; se não fizessem, os escravos ficariam livres. Barbada, então?

Nada disso. Ocorre que a lei recebeu umas providenciais emendas, de representantes dos escravagistas: tal liberdade por falta de matrícula só ocorreria em determinadas condições, “por culpa ou omissão dos interessados”, dizia o texto. Adivinha?

Essa emenda criou uma ambiguidade que deu margem a muita firula, muita chicana, e então, como agora, havia advogados disponíveis para alegar que os escravos eram culpados por não terem sido matriculados. Uma palhaçada, além de uma ignomínia, mas que funcionou, deixando a aplicação da lei para depois.

Machado entra ao vivo nessa história como funcionário público que dava pareceres sobre casos problemáticos de aplicação da lei, como se pode ler num ótimo trabalho, Machado de Assis Historiador, de Sidney Chalhoub (Cia. das Letras, 2003).


28 de setembro de 2010 | N° 16472
PAULO SANT’ANA


O tédio da fortuna

Mas, também, chega de fazer excelentes colunas. Tanto que o presidente da RBS me cumprimentou pela entrevista com o Pitanguy, o Jayme Sirotsky me telefonou para me cumprimentar pela mesma entrevista e o vice-presidente da RBS Geraldo Corrêa me telefonou para dizer que minha coluna de domingo estava melhor que a entrevista com o Pitanguy.

Já o meu barbeiro disse que gostou da entrevista com o Pitanguy porque pensou, erradamente, que o tema com o grande cirurgião já tivesse sido esgotado.

O Geraldo se enganou: não poderia haver nada melhor que aquela entrevista.

Chega de fazer grandes colunas. Um dia há de sair uma coluna medíocre, ainda que digna.

Só tem uma coisa mais difícil que escrever uma coluna por dia: é escrever ótimas colunas todos os dias.

E a coluna que o Geraldo Corrêa elogiou foi aquela que escrevi sobre o tédio, um tema em que, assim como o ciúme, eu sou mestre.

O tédio está aquém da tristeza, no sentido de que ele é menos dolorido. Só que a diferença entre o tédio e a tristeza é que o tédio é quase permanente e a tristeza vai amanhã com o vento.

Além disso, tédio é um sentimento que se sabe voltará amanhã, no domingo, qualquer dias destes. Estará sempre grudado à nossa pele até o fim dos nossos dias.

O tédio rói silencioso as nossas entranhas, ele se manifesta em aliança com o desânimo: quando se tem tédio, a gente se domina da desesperança em dias melhores.

O tédio é um aperto no peito e na mente, um cansaço no coração, dá vontade de a gente ir para não sei onde, ou então de desaparecer.

Eu chamaria o tédio de uma doença mental que, no entanto, quem a tem não sente vontade de suicidar-se.

Depressão leva ao suicídio, tédio não. Isso é que é curioso no tédio, ele se instala na vida e não quer fugir dela.

E posso dizer alto e bom som: tenho tédio; logo, existo.

O tédio paralisa, não se sabe o que pensar nem fazer. Não se sai do lugar nem fisicamente, nem com o pensamento.

E, se por acaso a gente decide ir ao cinema, o filme não se incorpora à gente, o tédio continua dominante.

Outra característica do tédio é que a gente culpa o domingo por ser tedioso, quando tedioso é a gente.

O domingo é tedioso seja por causa da chuva ou da rotina, mas bem que dava para não ter tédio se a gente estivesse amando naquele mesmo domingo.

Ou seja, o tédio vem de dentro da gente, irrompe no nosso âmago e se espalha por todos os ambientes que se frequenta.

O tédio é um imenso aborrecimento. E, o pior: ele não tem causa; se tivesse, saber-se-ia atacá-la.

Mas, não, a gente tem tédio como tem resfriado, não sabe de onde veio.

Por sinal, bem que poderiam inventar uma vacina contra o tédio. Faria mais sucesso que uma vacina contra a gripe, tal a demanda que se instalaria nos postos de saúde.

E, por fim, o tédio é uma doença tão terrível, que ataca até os ricos. Por sinal, ataca mais os ricos que os pobres, porque, se é tedioso um pobre, ele atribui o tédio à sua pobreza.

E o rico vai atribuir a quê?


28 de setembro de 2010 | N° 16472
MOACYR SCLIAR


Falemos de flores

O paraibano Geraldo Pedroso de Araújo Dias Vandregísilo, Geraldo Vandré, que neste mês completou 75 anos, é uma das figuras mais fascinantes da música popular brasileira.

Tornou-se famoso nos anos 60 pelas composições apresentadas nos festivais da canção, à época atos de protesto contra o regime autoritário. Venceu o festival de 1966 com Disparada, mas o grande sucesso veio em 1968, com Pra não Dizer que não Falei das Flores, verdadeiro hino de resistência.

Autoexilado, passou cinco anos no Exterior. Regressando, afastou-se do mundo artístico; ficou “fora dos acontecimentos”, disse, em entrevista a Geneton Moraes Neto, exibida na Globo News no último sábado. E acrescentou: “Foi melhor assim”. Na ocasião da dita entrevista, Vandré estava no Rio, hospedado em um hotel do Clube da Aeronáutica.

O que não é de estranhar: no retorno do exílio, manteve boas relações com o pessoal da Força Aérea Brasileira (FAB) em homenagem à qual, aliás, compôs o hino “Fabiana” (a FAB certamente perdoou-o pelo trocadilho).

Já a letra de Pra não Dizer que não Falei das Flores começa com o famoso “Caminhando” e diz: “Pelos campos há fome/ em grandes plantações/ pelas ruas marchando/ indecisos cordões/ ainda fazem da flor/ seu mais forte refrão/ e acreditam nas flores/ vencendo o canhão”. Claramente o autor discordava dos indecisos, daqueles que acreditavam nas flores.

Falou nelas, claro, meio condescendente, mas o refrão traduzia sua inconformidade: “Vem, vamos embora/que esperar não é saber/quem sabe faz a hora/ não espera acontecer”. Ou seja, era preciso agir, uma dramática certeza que levou muitos de seus companheiros à guerrilha e à morte.

Vandré sobreviveu, apesar da solidão ou graças a ela. O que gerou o melancólico comentário do jornalista, ao término do programa: “Vandré se recolhe aos seus aposentos no hotel do Clube da Aeronáutica, para um mundo onde só existe um habitante: ele próprio”.

Vivendo embora nesse mundo peculiar, Vandré não deixa de ser um ser humano e não deixa de ser brasileiro, sujeito aos impulsos, às incertezas e às vacilações dos seres humanos e às peculiaridades de nosso país.

O revolucionário de ontem mudou, e isto não é raro acontecer. É irônico, alguém dirá, que um conhecido opositor do autoritarismo se tenha transformado em hóspede de militares. Isto pode, contudo, representar uma evidência da tradição conciliadora do país.

O regime de 1964 ficou conhecido como ditadura militar, mas na verdade era uma ditadura de militares, dos generais que assumiam o poder e de seus seguidores, vários deles civis. Outros militares se opunham a isso, e alguns continuavam simplesmente cumprindo suas funções. Noel Nutels, o “médico dos índios”, esquerdista conhecido, tinha o apoio da Aeronáutica para seu Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas, mesmo depois de 1964.

A verdade é que o país, apesar de tudo, continuou caminhando (não em disparada) e entrou no seguro rumo da democracia; disso, as atuais eleições dão testemunho. Nem tudo são flores, mas as coisas estão muito melhores

segunda-feira, 27 de setembro de 2010



27 de setembro de 2010 | N° 16471
TRAGÉDIA NA ESTRADA


Acidente mata quatro na Serra

Colisão vitimou três pessoas de uma mesma família que estavam em um Palio e motorista de caminhão, na tarde de sábado

O sonho de Adílio Goulart, 32 anos, Lorici Fátima dos Santos, 37 anos, moradores de Caxias do Sul, de recomeçar a vida na terra natal – Erechim – foi interrompido na tarde de sábado. Os dois, e a filha deles, Vitória dos Santos Goulart, quatro anos, morreram em um acidente no km 9 da rodovia Guaporé-Bento Gonçalves (ERS-431), em Linha Alcântara, interior de Bento.

O Palio da família colidiu com um caminhão, com placas de Arroio do Meio. Os dois veículos caíram em um barranco. Paulo Laércio Bruxel, 22 anos, motorista do caminhão também morreu.

A família foi sepultada ontem à tarde no cemitério Santa Cruz, em Erechim, no norte do Estado, onde residem os familiares.

De acordo com o comandante do Grupo Rodoviário de Bento Gonçalves, Zidemar Petry de Freitas, o caminhão, carregado com caixas de pintos, seguia no sentido Bento Gonçalves-Guaporé, em um trecho de cerca de quatro quilômetros de forte declive. O caminhão e o Palio colidiram e caíram em um barranco, indo parar num parreiral. Os corpos do caminhoneiro e dos três ocupantes do carro foram arremessados.

A tragédia com os moradores de Caxias ocorreu pouco antes de uma mudança na vida da família. Nascidos em Erechim, Adílio e Lorici trabalhavam vendendo livros na cidade e moravam no bairro Pioneiro há aproximadamente um ano. Conforme familiares, eles estavam preparando o retorno à região onde nasceram para os próximos dias.

Já tinham, inclusive, alugado uma casa onde morariam com os três filhos na cidade de Barão de Cotegipe, município vizinho a Erechim. Um dos motivos pelo qual a família desejava retornar para o norte do Estado, era o fato de a mãe de Adílio estar fazendo um tratamento cardíaco.

Além da menina de quatro anos que morreu no acidente, o casal ainda tinha um filho de 17 anos e uma filha de 13 anos.

Pois então: O trânsito continua fazendo suas vítimas, numa verdadeira guerra, em que todo o fim de semana há um número expressivo de vítimas fatais e de mutilados.

Ainda assim, que possamos ter uma boa semana, esta que encerra setembro para dar lugar a outubro que vem ai a largos passos.


27 de setembro de 2010 | N° 16471
LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL


Danúbio

A arte do documentário requer grande refinamento, capaz de estabelecer justo equilíbrio entre o assunto do filme e a criação estética. São poucos, em nosso país, que o conseguem e, entre estes, cito Douglas Machado e sua exemplar série Literatura Brasil.

O nosso Henrique de Freitas Lima realizou um belo documentário, ainda não lançado, sobre o pintor, gravador e desenhista gaúcho Danúbio Gonçalves. É o primeiro da série Grandes Mestres.

Ressalta, desde logo, a simplicidade e sinceridade de Danúbio. Isso não é fácil de atingir, e a nem todos a idade ajuda nesse ponto. Impressiona também a fidelidade do protagonista às suas origens que estão em sua voz, nas expressões linguísticas, está no modo de parar-se ante a câmera. É um homem sóbrio como o são os gaúchos, rígido consigo mesmo, quase áspero, o que contrasta com momentos de bom humor.

Danúbio expõe com lucidez sua trajetória de guri de estância, de jovem em Porto Alegre e de homem de andanças pelo mundo, de homem capturado pelo seu Zeitgeist, marcado pela disputa ideológica e de contraposição à arte abstrata; esse pensamento reafirmava o compromisso social expresso pela arte do mexicano Diego Rivera, bem como pelos artistas do Taller de Arte Grafica Popular do México.

O documentário, para recuperar esse passado, foi àquele país, registrando momentos de visitação de Danúbio às suas referências artísticas, o que bem se constata no comovente encontro com o gravador e mestre impressor Mario Reyes.

Resulta muito bem articulado o diálogo de Danúbio com sua geração; isso se explicita em sequências em que suas obras transitam em meio às de seus contemporâneos, o que fica mais evidente no segmento dedicado ao Clube de Gravura, o mesmo de Glauco Rodrigues, Bianchetti, Carlos Scliar.

Só mesmo em retrospectiva é possível entender o capítulo dedicado ao Atelier Livre; ali, Danúbio Gonçalves foi a alma mater de um sem-número de artistas de hoje, que concedem carinhosos depoimentos acerca de seu mestre.

Com tudo isso, Danúbio, em sua sinceridade, não tem o menor receio de criticar certo tipo de arte: “hoje qualquer um pega uma tábua, põe sobre tijolos e joga tinta em cima, e diz que isso é uma pintura”. Afirmar isso é apenas permitido a quem atingiu um estágio de superior entendimento das vaidades humanas.

Para incidir deliberadamente no lugar-comum, este documentário é um retrato de corpo inteiro. Precisávamos disso, Danúbio precisava, o Rio Grande também.


27 de setembro de 2010 | N° 16471
PAULO SANT’ANA


Os dois maiores

Continuo imantado pela entrevista que fiz com o dr. Ivo Pitanguy.

Eu já sabia que além de notável cirurgião ele era um ótimo filósofo.

Então quando ele disse que a “melhor cirurgia é a gente se tolerar a si próprio”, eu fui às nuvens.

E quando ele disse que “difícil é não explicar Deus”, como que querendo dizer que é muito fácil acreditar que Deus não existe, eu – e acredito que todos que nos leram – cheguei a um êxtase intelectual e filosofal orgasmático.

Este Ivo Pintanguy que me operou e já operou milhares de pessoas é mesmo um ser diferenciado.

Ele tem 84 anos e me disse que ainda opera, no mínimo, duas vezes por semana.

Constitui-se assim num exemplo para todos os médicos e para todas as pessoas, um grito de alerta no sentido de que é possível a todos nós chegarmos aos 84 anos e ainda produzirmos talvez até mais e melhor do que produzíamos quando tínhamos apenas 40 anos.

Pitanguy saiu de Porto Alegre agradecido pelas coisas simples e gostosas que ouviu e comeu aqui: disse que estava divino o cordeiro mamão que lhe serviram e recordou com água na boca a linguiça de Erechim que os amigos lhe mandam.

Em seu rosto e em suas palavras, nenhuma queixa pela velhice, ao contrário, a exalta como uma aproximação com Deus, além da valiosa experiência que ela carrega.

Ele agradece a Deus por tudo que foi, é e talvez pela posteridade que sua lembrança irá deixar.

Pintanguy é um dos grande vultos que marcam a história brasileira, como Chico Buarque e Villa Lobos.

Por sinal, estes dias escolhi Leonardo da Vinci e William Shakespeare como os dois maiores vultos da humanidade em todos os tempos, vejam bem que acima de Ghandi e Freud.

Hoje, depois desta entrevista que fiz com Pitanguy, o escolheria, junto com Chico Buarque, como os dois maiores vultos brasileiros de todos os tempos, acima de Getúlio Vargas e do Barão do Rio Branco.

Desculpem, meus leitores e leitoras, por esta mania excêntrica que tenho de hierarquizar os homens, como se fosse possível isso, diante de tantas diferenças de estilos e atividades.

É que estou sempre querendo saber quem foi o melhor. Estes dias classifiquei Roberto Carlos e Emílio Santiago como os melhores cantores brasileiros da atualidade.

Assim como classifiquei como as melhores cantoras brasileiras de todos os tempos Dalva de Oliveira e Elis Regina.

Os dois maiores poetas nossos para mim foram Augusto dos Anjos e Olavo Bilac.

Os dois maiores jogadores do Grêmio em todos os tempos foram Airton Ferreira da Silva e Renato Portaluppi. Perdão a Eurico Lara a quem não vi jogar, mas dizem dele coisas fantásticas.

E um dos dois maiores jogadores colorados de todos os tempos, pelo que ouvi falar, porque só assisti a três jogos dele, foi Tesourinha. E o segundo oscila entre Falcão, Carpegiani, Figueroa e Chinesinho, estes quatro eu os vi.

E quando um dia forem escolher os dois maiores jornalistas gaúchos de todos os tempos, sonho, talvez com pretensão exagerada, que meu nome esteja no painel.


27 de setembro de 2010 | N° 16471
FABRÍCIO CARPINEJAR (interino)


O pequeno goleiro

Eu prometi para o filho levar os colegas do futebol ao cinema. Disse por dizer, mais educação do que esperança. Qual a minha surpresa quando Vicente tocou em meus ombros na semana seguinte:

– Amanhã é o filme!

Tudo bem; coloquei o cocar da indiada. Pensei que seria um colega, foram cinco, que estavam à espera após o jogo no ginásio. Suados, felizes, gritalhões. Logo olhei a carteira para conferir se tinha dinheiro suficiente – o pacote agora incluía pipoca, refrigerante e ingressos quintuplicados.

Atravessar a rua com a turma representou tremor de ponte pênsil, sempre havia alguém distraído da faixa de segurança, flertando com o perigo. Andava aos trancos de polvo, com os braços levantados, não entendia como os avós vigiavam, ao mesmo tempo, 10 filhos. Naquela época, sair de casa correspondia a montar um comício.

Quando entrei no shopping, suspirei, fiz a contagem mental do time e segui adiante. Rezava para terminar a tarefa, tirar os sapatos e segurar o controle remoto em paz. Mas André, ruivo e sardento, no alto de seus 11 anos, travou no início da escada rolante. Enguiçou de verdade, mergulhou num transe de pavor. Busquei segurar sua mão e ele ganhou de imediato o peso de um Rei Momo.

Não se mexia, seus dedos estavam gelados, escorregadios. Formava-se uma fila ansiosa atrás da gente e o guri vidrado no corrimão de borracha, nos degraus se abrindo e fechando. Será que ele tomava remédio? Enfrentava crise séria na família? Possuía uma fobia de lojas? Não conhecia bulhufas do temperamento, só que jogava no gol. Quem é goleiro deve ter algum problema, não é muito certo servir voluntariamente de saco de pancadas.

– O que foi? – O que é isso aqui?

Raciocinei que perdeu a memória, ainda precisava fiscalizar os outros angustiados com o nosso atraso.

– O quê? É uma escada rolante. Não vê?

– Eu nunca vi. – Quê?

– Nunca visitou um shopping?

– Não. Ela se mexe, como posso colocar o pé?

Aquilo me pegou de jeito. Achava um absurdo um menino de cidade grande não conhecer uma escada rolante. Mudei o comportamento e o analisava com avidez de colecionador, uma espécie rara, rural. Um bicho estranho e assustado, com cinco olhos, três orelhas, duas bocas.

A turma começou a rir de sua inexperiência de vida, não consegui defendê-lo, imerso em igual pasmo. Depois veio uma compaixão pelos pais desnaturados, que o deixavam à margem do mundo. Tomei o pequeno no colo e o carreguei para cima.

Era tarde para interromper a gozação, alvo de dedos apontados, gargalhadas e apelidos. Foi quando André confessou:

– Eu já beijei uma menina na boca.

E todos esqueceram a escada rolante para descobrir mais detalhes.

domingo, 26 de setembro de 2010


DANUZA LEÃO

A posse das coisas

E o que era o dinheiro, essa invenção diabólica, razão de brigas, deslealdades, traições, guerras, mortes?

HÁ MUITOS anos, vendi o apartamento onde morava para um americano, e como ele não tinha conta em banco, pediu para pagar em dinheiro; dinheiro vivo. Eu até gostei. No fundo, no fundo, muito melhor dinheiro do que cheque.

Depois que se deposita ainda são 48 horas para compensar, sabe-se lá se nesse tempo o comprador não morre e a mulher, com quem ele tem conta conjunta, vai lá e leva tudo. Em dinheiro é melhor.

Marcamos numa sala do meu banco, chegou o advogado, o homem do cartório, todos nos sentamos em volta de uma mesa -eu sorrindo, porque estava vendendo, ele sorrindo, porque estava comprando-, e começou a leitura da escritura. Não prestei muita atenção; já que estava vendendo, a única coisa que me interessava era receber o dinheiro e depositar.

Aí, chegou a hora do pagamento: o comprador abriu uma maleta tipo James Bond, botou os maços de dinheiro em cima da mesa e esperou que eu conferisse. Até tentei, mas como não estava (nem estou) acostumada a contar dinheiro, a coisa ficou lenta. Aí, a gerente do banco perguntou se eu não gostaria que um funcionário, com mais prática, fizesse isso por mim; eu, aliviada, disse que sim.

Por alguma razão -talvez pelo respeito que o dinheiro impõe- fez-se silêncio. Todos olhávamos para as mãos da pessoa que contava e para as notas, como se estivéssemos hipnotizados. E foi aí que viajei em meus pensamentos.

No quinto pacotinho, pensei que com eles podia comprar um carro. Mas aí vieram os outros, e me perdi. Me perdi e só via montes de folhas de papel pintado, cortados do mesmo tamanho; muito bonitinhos até, mas apenas um monte de papel. Perdi a noção de que aquilo era dinheiro e comecei a pensar.

Então estava trocando meu apartamento com vista para o mar, onde fui tão feliz, por aqueles montinhos de papel? E o tempo que levei escolhendo a cor das paredes, os sonhos que sonhei, os momentos de amizade, amor, felicidade, tristeza, desespero, ódio, esperança, tudo isso acabou, trocado por papel colorido?

E o que era o dinheiro, afinal, essa invenção diabólica, razão de brigas, deslealdades, traições, guerras, mortes?

O rapaz não acabava de contar, o silêncio continuava, e eu pensando. De tantas coisas tinha ouvido falar: de pessoas que abriram mão de suas convicções, trocaram de amigos, de marido ou de mulher, tudo por dinheiro, dos políticos que mudam de partido, que traem, que se vendem, que fazem qualquer coisa -qualquer coisa mes-mo- para serem eleitos e viverem em Brasília.

A contagem do dinheiro estava quase acabando, quando me lembrei de ter lido alguma coisa escrita sobre o Brasil na época do Descobrimento; há quem diga que os índios eram inocentes e felizes porque não conheciam nem o dinheiro, nem o casamento, nem a propriedade, isto é: a posse das coisas ou das pessoas.
E eu acrescento: eles também não conheciam o poder.

O dinheiro acabou de ser contado, assinei a escritura, suspirei, esperei pelo recibo do depósito e saí.

Já era noite, os ônibus passavam lotados; dei graças a Deus por ter dinheiro para tomar um táxi e fui para casa pensando que talvez fosse bem bom viver no meio do mato. Mas para isso seria preciso ter nascido há uns 500 anos.

danuza.leao@uol.com.br

GILBERTO CARVALHO

Por que Dilma

Dilma, que tem, sobretudo, um coração sensível, pode levar adiante a reconstrução de nosso povo, para o bem da democracia plena e verdadeira

Porque queremos que esta nova luz que começou a brilhar no olhar de milhões de brasileiros, como sinal de afirmação humana e cidadã, continue a brilhar sempre mais.

Porque queremos que esta autoestima que se afirma no coração e na mente de um povo por tanto tempo humilhado e excluído se consolide e afugente para sempre o triste "complexo de vira-latas" que vitimou aqueles que diziam nos representar.

Porque sabemos que a chave e a questão mais profunda do atual debate eleitoral é esta: a emergência de uma nova consciência, de um novo posicionamento de milhões de pessoas mantidas até aqui cuidadosamente "em seu lugar", destinadas apenas a reproduzir a riqueza e a reproduzir o pensamento, usos e costumes dos senhores e dos "formadores de opinião".

O significado do governo deste presidente, que desconcerta tanto os seguidores dos velhos manuais, vai muito além do novo posicionamento do Brasil na comunidade internacional; vai muito além da implementação deste modelo econômico que nos permitiu crescer e ao mesmo tempo distribuir renda e retirar milhões da miséria.

Vai muito além dos benefícios sociais e de tantas conquistas obtidas pelas maiorias e minorias marginalizadas, levando mais de 30 milhões de brasileiros a ingressar na classe média.
Todas elas são, por certo, muito importantes e constituem base material que assegura o apoio ao presidente e a seu governo, mesmo após anos seguidos da mais dura e absolutamente livre crítica, muitas vezes infundada, desrespeitosa e eivada de vil preconceito.

Na verdade, o significado mais profundo do exercício do governo por este "sobrevivente da tribulação", com todos os seus limites e erros, é esta ruptura que ocorre quando a população percebe que "um de nós" mostra ser possível ultrapassar muros antes intransponíveis.

Porque esta relação com um presidente que representa as maiorias não só por ter sido eleito mas por "ser um dos nossos" produziu no nosso povo um fenômeno inédito, de identificação que teve consequências de difícil avaliação.

Porque esta identificação não ficou apenas na simples contemplação, mas na assunção efetiva de um novo papel que as grandes maiorias passaram a exercer.

Essa gente começa a ocupar seu novo lugar e a exigir a vigência de uma democracia verdadeira, em que novos direitos são conquistados e partilhados, sem guerras, mas com muita firmeza.

Esse povo começa a pisar em terrenos antes proibidos, do Palácio do Planalto às poltronas dos aviões, dos supermercados e lojas de eletrodomésticos às universidades, teatros e cinemas... Essa gente começa a pensar com cabeça própria. E aí não tem volta.

É, de fato, muito difícil para a casa grande, particularmente para seus áulicos, admitir que a senzala se moveu e que não se sabe onde isso pode parar. Isso explica a raiva destilada em tantos textos de iluminados e donos da verdade... É justamente este processo do nosso povo, com o qual sempre sonhamos, e que apenas começa, que queremos ver continuar...

E Dilma, que não tem um projeto pessoal, mas que se entrega a um projeto coletivo; Dilma, que tem toda a energia deste povo com quem passou a conviver; que tem grande competência, forjada em tantos anos de trabalho, e que tem, sobretudo, um coração sensível, pode levar adiante esta reconstrução de nosso povo e do nosso país.

Para o bem da democracia plena e verdadeira. Para o bem da paz social, do respeito aos direitos de todos e para a queda de tantos muros que até aqui separam irmãos. Por isso, Dilma!

GILBERTO CARVALHO, 59, é chefe de gabinete da Presidência da República.

FERREIRA GULLAR

Às vésperas do pleito

Situo-me no polo oposto àqueles que aspiram chegar a uma sociedade de uma opinião só

A PROXIMIDADE do dia das eleições, quando iremos às seções eleitorais exercer nossa cidadania, votando nos candidatos de nossa preferência, tem inevitavelmente acirrado os ânimos, não só dos candidatos, como os nossos, de eleitores.

Isso pode ser bom ou mau. É bom quando indica empenho em escolher os melhores para legislarem e governarem -e é mau quando nos leva a perder a capacidade de discernir o certo do errado, a mudar a convicção política ou ideológica em fanatismo.

Sem pretender me dar como exemplo de isenção, verifico, não obstante, como algumas pessoas passam dos argumentos objetivos -ainda que impregnados de paixão- a afirmações que mitificam a personalidade deste ou daquele candidato.

Como já escrevi aqui, repito agora que não pertenço a partido político nem tampouco estou engajado na campanha de nenhum candidato. Ao opinar sobre qualquer deles, faço-o na condição de articulista que, assim como discute questões culturais e sociais (arte, política psiquiátrica, inoperância da Justiça, ficha suja etc.), discute também a conjuntura política que, neste momento, interessa à maioria dos leitores.

Podem meus comentários, eventualmente, influir na decisão de um ou outro leitor, mas não é essa minha intenção prioritária e, sim, contribuir para que sua escolha se faça da maneira mais lúcida e autônoma possível. Acresce o fato de que outros comentaristas opinarão em sentido diverso, trazendo à baila outros argumentos e, com isso, contribuindo para que o debate se amplie e se aprofunde. Situo-me no polo oposto àqueles que aspiram chegar a uma sociedade de uma opinião só.

É com esse propósito que tenho abordado aqui alguns aspectos polêmicos da conjuntura eleitoral e política. Procuro, igualmente, refletir a preocupação de outras pessoas que, mantendo-se à margem da disputa eleitoral, manifestam preocupação com o rumo que as coisas estão tomando, sendo que alguns deles temem pelo futuro da própria democracia brasileira.

Para estes, a vitória de Dilma Rousseff, por implicar o prosseguimento no poder do mesmo partido, poderia ter consequências imprevisíveis, dado o crescente aparelhamento da máquina do Estado por petistas e sindicalistas, que a utilizam partidariamente.

Isso poderia levar à crescente privatização do Estado, em benefício de um mesmo grupo político e, em última instância, ao cerceamento da ação política divergente.

Faz parte deste processo a mitificação da figura de Lula que, no curso de sua história pessoal, passou de líder raivoso a Lulinha paz e amor e agora -para meu espanto- à categoria de grande estadista, que teria mudado a face do Brasil.

Nessa linha de raciocínio, vem se formando a teoria segundo a qual quem se opõe a Lula opõe-se na verdade ao povo brasileiro, uma vez que ele é o primeiro presidente, "que veio do seio do povo".

Trata-se de um argumento curioso, que busca qualificar o indivíduo -no caso, um líder político- por sua origem social de classe. Digo curioso porque os que assim argumentam consideram-se obviamente de esquerda, mas não se dão conta de que, com esta postura, repetem as elites do passado, que também qualificavam os indivíduos por sua classe social de origem.

Naquela visão -que a esquerda definia como reacionária-, quem tivesse origem nobre era tacitamente superior a quem não o tivesse. Agora, na sua inusitada avaliação, superior é quem nasce do "seio do povo" e, por isso, quem critica Lula coloca-se, na verdade, contra o povo. E povo -entenda-se- é só quem for pobre. Mas atrevo-me a pergunta: e quem não recebe Bolsa Família é o que?

Não resta dúvida de que a ascensão de um operário à Presidência da República brasileira é uma importante conquista de nossa democracia, mas não porque quem nasce no seio do povo venha impregnado de virtudes próprias aos salvadores da pátria. Do seio do povo também veio Fernandinho Beira-mar.

Lula chegou onde chegou não por sua origem e, sim, por sua capacidade de liderança e sua sagacidade política; a origem social e a condição de operário, que certamente influíram na decisão do eleitor, não devem servir de pretexto para transformá-lo num líder a quem tudo é permitido, acima de qualquer juízo crítico.

sábado, 25 de setembro de 2010



26 de setembro de 2010 | N° 16470
MARTHA MEDEIROS


A anestesia do impacto

Desde que houve o acidente com o filho da Cissa Guimarães, eu só havia falado com ela por telefone. Semana passada estive no Rio e pude finalmente dar o abraço que desejava. Passamos uma tarde juntas e, entre outras coisas, foi inevitável conversar sobre o que aconteceu e como ela está lidando com tudo isso.

Ainda que esteja sendo sustentada emocionalmente pelos outros filhos, pelo neto, pelo trabalho e pelos amigos, sua dor está maior agora, ao contrário do que se imagina. E vem aumentando a cada dia.

Acabei lembrando de uma entrevista que o pugilista Popó deu certa vez, onde dizia que na hora a pancada não dói, só dói no dia seguinte. Faz sentido. O choque anestesia a brutalidade dos fatos.

Imagino que a morte de um filho deve ser como uma bomba atômica que explode no meio da sala. Todos ficam catatônicos, sem ação, não sabendo mais como agir, comer, dormir, viver. Não há mais o que havia antes.

Até se adaptar a essa desorganização radical do cotidiano, fica-se num estado de entorpecência, e não raro os familiares se iludem de que será razoavelmente fácil administrar a nova situação. Mas aí, aos poucos, o efeito anestésico da surpresa vai diminuindo, a reconstrução de uma nova rotina se impõe e a ausência torna-se acachapante pra valer.

Não precisamos vivenciar uma dor dessa dimensão para entender como funciona. Todos nós passamos por outros tipos de impacto que, num primeiro momento, parecem facilmente superáveis. Um casamento desfeito, a traição de um sócio, uma demissão, o cancelamento de um sonho, a ruptura definitiva com um parente. Na hora da pancada, ficamos atordoados, porém buscamos forças para continuar de pé e seguir no ringue, afinal, temos cérebro para quê?

Tiramos da cartola argumentos que nos seguram, a autoestima é convocada, nos agarramos à fé: tudo vai dar certo, nada nos atingirá. Mas aí o tempo passa, as coisas se acomodam e começamos a nos permitir sentir o que antes não permitíamos.

Descobrimos então que estamos frágeis emocionalmente, cansados de combater a tristeza, sozinhos diante da inevitalidade dos fatos, e então jogamos a toalha e aceitamos a derrota. O analgésico contra o choque não faz mais efeito.

Não é justo nem injusto, simplesmente é assim. Somos condicionados a nos acostumar com o que é regra, com o que é conhecido, com emoções controláveis. Quando a vida nos tira o chão e reverte a ordem natural dos acontecimentos, ficamos pendurados por uma cordinha tênue que se chama esperança, e nem sabemos exatamente esperança de quê: de aniquilar com a dor?

De voltarmos no tempo? De uma nova alegria nos alcançar? De tudo isso e mais o que for necessário para a gente reencontrar quem não podemos perder em hipótese alguma, que é a si próprio.


26 de setembro de 2010 | N° 16470
MOACYR SCLIAR


O Brasil decola

Existe algo no ar, além dos aviões de carreira, dizia o grande humorista (gaúcho, aliás) Aparicio Torelli, Barão de Itararé.

Foi uma previsão. Existe, sim, algo de novo no ar, e a novidade está dentro dos aviões de carreira; é representada pela nova classe média brasileira, a classe C, que, pela primeira vez na história do país, está conseguindo viajar de avião. São 90 milhões de brasileiros (Noventa milhões em ação...), com renda familiar entre R$ 1,1 mil e R$ 4,5 mil, que representam 60% das vendas totais de passagens: o clássico passageiro de bermuda e Havaianas.

E só 14% viajam a trabalho; 80% das viagens são a passeio ou para visitar a família. Consumidores da classe C representam 60% das vendas totais. Cerca de 11 milhões de brasileiros farão sua primeira viagem de avião nos próximos 12 meses. Desses, 8,7 milhões de pessoas pertencem às classes C e D; nove entre 10 passagens econômicas são de clientes que migraram do ônibus para o avião. Do ônibus, e também do caminhão pau-de-arara, e do jegue, e das longas marchas a pé. O Brasil mudou.

Parte dos novos passageiros ainda se sente constrangida com a novidade. Uma pesquisa mostrou que 62% dos entrevistados que não tinham viajado de avião disseram que não ficariam à vontade em um aeroporto. O que não é de estranhar. Durante muito tempo, viajar de avião era coisa para gente fina.

Os cavalheiros iam de terno e gravata; as damas usavam vestidos elegantes. Uma viagem de avião era uma celebração; prova disso eram as lautas refeições, servidas em bandejas com belos talheres e guardanapos de linho. Aliás, para quem estreava nas viagens, essas refeições eram motivo de aflição: aquilo era de graça, ou custaria um preço exorbitante?

Na dúvida, muita gente recusava as bandejas. Um amigo meu era um pouco mais atrevido: servia-se de uma torrada ou de uma bolachinha, para óbvio espanto da aeromoça, que não conseguia entender tal frugalidade.

Quando o pessoal finalmente descobriu que o serviço estava incluído no preço da passagem (caríssima), tratava de aproveitar: os talheres eram subrepticiamente enfiados em bolsas e iam direto para casa (nos voos internacionais, os cobertores seguiam o mesmo caminho).

Outras coisas também pareciam estranhas: sei de um homem que, quando teve de embarcar no ônibus para ir até o avião (coisa que ele nunca tinha feito), reclamou, bradando que queria chegar a seu destino por via aérea, não rodoviária.

Tudo isso está ficando coisa do passado: o Brasil decola. Alguém dirá que há prioridades mais urgentes, que esgoto nas casas é mais necessário do que viagens aéreas. Certamente. As prioridades das pessoas, expressem-se elas em televisores de tela plana, ou celulares, ou salgadinhos, têm conotações emocionais. Mas a racionalidade predomina e todo o mundo acaba descobrindo o que é importante. O Brasil decolou e certamente vai chegar a seu destino.

E olhem só a coincidência: a Haydée Porto manda um nome que condiciona destino, o do técnico de vôlei Bernardinho Corta (que deve ser um mestre em cortadas), enquanto que, de Lisboa (ZH chega longe), o Pastor Roni Querino envia o nome de outro técnico, o do Sporting de Braga: Domingos Paciência. Quando ele perde nos fins de semana a esposa o consola: aos domingos, paciência.


26 de setembro de 2010 | N° 16470
PAULO SANT’ANA


O tédio

Era um domingo tão tedioso, que os maridos foram fazer sexo com suas próprias mulheres.”

Não sei onde li essa frase monumental.

E eu emendo que era um domingo tão tedioso, véspera de segunda-feira em que se tem de pagar as contas, domingo de pijama, de chuva rala que impede que se leve o cão para passear.

Era tão tedioso o domingo, que o homem senil foi jogar dominó com a empregada doméstica que mora no emprego.

Era tão tedioso o domingo, que se aproximava o meio-dia e a família ainda não tinha decidido se iam cozinhar em casa ou iriam a um restaurante.

Nenhum dia é mais próprio para o tédio do que o domingo. É dia de pensar, neste tedioso domingo de setembro, nos cálculos financeiros sobre quanto vão custar e onde se passarão as férias que se aproximam.

Tédio terrível o deste domingo em que os colorados estão desinteressados do campeonato nacional de pontos corridos porque já estão classificados para Abu Dhabi, e os gremistas já sentiram que o destino do seu time é vagar e vagar pelas nuvens pardacentas da zona da Sul-Americana.

Tédio dominical em que a filha comunica ao pai que não vai mais continuar cursando o sexto semestre da Faculdade de Veterinária e se transferirá para o primeiro semestre de Psicologia, ambos os cursos, é claro, em universidade privada.

O tédio se mistura à rotina e à mesmice. A vida vai sendo empurrada com a barriga.

Tédio do pneu da bicicleta furado e do rádio com pilhas gastas.

O brutal tédio de quem adia já há dois anos o implante de um dente ou a decisão sobre se vai ser agora ou não que se submeterá à cirurgia plástica nos seios.

Tédio brutal do domingo.

O tédio de um domingo de inverno só permite que se selecione e se leve ao ar no jogo da própria vida os piores momentos.

E, se, ao contrário, o domingo de inverno se transforme por milagre num domingo calorento, só se pensa que foi estragado assim o último e único prazer do domingo, que era comer um mocotó ou uma feijoada. Não se sabe por que cargas d’água os gaúchos só comem feijoada e mocotó no inverno.

Tédio monótono que se torna ainda mais tedioso quando se lê e se ouve nos programas pentecostais que a pena para quem sofre na vida é a vida eterna. Vai se sofrer para sempre?

Quando se pensou que a só a morte poderia acabar com o tédio, surge a ameaça de que depois da morte começa a vida eterna.

Por sinal, na vida eterna também tem domingos?

Olho para meu cãozinho Kunga e concluo que o tédio é próprio dos homens e dos animais.

Só que os cães vivem o tédio, mas não sentem o tédio como nós, humanos. Porque o tempo passa mais depressa para os cães, que só vivem 13 anos.

Enquanto que nós, humanos, vamos ter de conviver com este pesado tédio ainda durante 70 anos.


26 de setembro de 2010 | N° 16470
DAVID COIMBRA


O maravilhoso mundo do circo

Decidi levar meu filhinho ao circo. Cheguei uns minutos antes, estacionei o carro e, a caminho da bilheteria, vi que dois palhaços zanzavam por ali, do lado de fora da lona. Os palhaços fumavam e conversavam ao celular, cada qual com seu aparelho. Eles falavam alto e sopravam grandes baforadas para o ar e vez em quando riam com estridência:

– Rô, rô, rô! Rá, rá, rá!

Umas risadas maliciosas, não eram risadas de circo, não eram risadas que criancinhas entendessem.

Resolvi não deixar o Bernardo ver os palhaços naquele momento mundano. Peguei-o no colo, fiz com que olhasse para o outro lado.

– Olha um cachorro ali, Pocolino! – Onde? Onde?

Um velho truque. Qualquer vira-lata é atração para criança.

Entramos no circo. Malabaristas, trapezistas e tudo mais.

– Cadê os bichos, papai? – O circo agora não tem mais bichos.

– Nem leão? – Nem leão.

– Nem elefante?

– Nem elefante. Mas tem o Globo da Morte, olha as motos ali.

Apesar da destreza dos motoqueiros, o Bernardo não chegou a se empolgar. Queria ver os bichos, os bichos. No intervalo, levei-o para comprar um bastão de luz colorida que outros meninos empunhavam. Um troço parecido com aquela espada de energia do Star War, manja? Bom. Estava com ele no colo, escolhendo o tal bastão de luz, quando alguém gritou:

– David Coimbra! Olhei para o lado.

Era um palhaço. Talvez fosse um dos que vi fumando na rua, talvez não. Não sei, só sei que o palhaço veio na minha direção quase gritando:

– Tu é o David Coimbra, não é?

Eu era.

Tratava-se de um palhaço carioca, flamenguista, como a maioria dos cariocas, nada satisfeito com as notícias que vinham saindo em Zero Hora sobre o Flamengo.

– Vocês não dão importância para os times do Rio! – reclamava, irritado.

Olhei para o Bernardo. Ele encarava o palhaço com aqueles olhos pretos dele bem arregalados. O palhaço seguiu se queixando da linha editorial do Esporte da Zero Hora. Fiquei um pouco preocupado. Um palhaço esbravejando daquele jeito poderia comprometer as ilusões infantis do meu filhinho acerca do mundo do circo, a alegria, lalariralala, aquela coisa toda. Tentei mudar de assunto.

– Qual é o teu nome? – perguntei.

Achei que responderia com uma mesura:

– Pingolin! Palhaço Pingolin, a seu dispor!

Ou:

– Paçoquinha, o palhaço do Brasil!

Ou:

– Bolotinho!

Mas ele disse:

– Mateus.

O Bernardo abriu a boca, perplexo.

Mateus? Mateus é lá nome de palhaço???

Desconversei, disse que tinha de levar meu filho à segunda parte do espetáculo e voltei para frente do picadeiro.

– Agora vêm os bichos, papai?

– Não. Não tem bicho.

– Nem o tigre?

– Ali tem umas moças que dançam, ó.

Embora não houvesse bichos, o Bernardo até que gostou do circo. Na saída, eu de novo com ele no colo, já estávamos perto do carro quando ouvi o grito:

– Ô, David! Ô, David!

O palhaço Mateus.

Olhei. O Bernardo olhou também.

– Fala bem do Flamengo, hein!

– Podeixar – gritei em resposta.

– Vê se dá um pouco mais de atenção ao Mengo, pô! É o Mengão! O campeão do Brasil!

Afivelei o Bernardo na cadeirinha enquanto o palhaço berrava de lá:

– Mengão! Mengo! Mengo! Mengão!

Saí com o carro, e ele ainda gritando.

– Fala bem do Mengo! Fala bem do Mengo!

Vou dizer: estou torcendo para que o PUTZGRILL@$!”(ZREOFFEM***()*HRTEPPPYT¨&* do Flamengo caia para a segunda divisão.


25 de setembro de 2010 | N° 16469
NILSON SOUZA


Campos de sonhos

O primeiro jogador de futebol de verdade que conheci chamava-se Darlã e tinha a orelha esquerda encolhida por uma queimadura. Nunca vou esquecer aquele rosto. Foi nos Eucaliptos, esse estádio que o Internacional acaba de vender e que em breve será transformado num conjunto residencial.

Juntamente com outros meninos da minha idade, tinha assistido ao treino e estávamos rondando o vestiário quando aquele jovem negro, ainda suado pelo exercício recém concluído, colocou a cabeça numa janela e me escolheu aleatoriamente:

– Guri, vai ali no bar e busca uma Crush pra mim.

Sem nunca ter me visto, me entregou o dinheiro do refrigerante. Acho que eu devia ter uma cara honesta – ou então ele confiava no próprio prestígio, pois os atletas profissionais sabiam que a meninada os idolatrava. Atravessei a rua correndo e voltei logo com a bebida, uma espécie de laranjada, que vinha numa garrafa de vidro com ranhuras. Anos depois, no mesmo local, acompanhei como jornalista esportivo a mudança do Inter para o Beira-Rio e o abandono sistemático do velho estádio.

Também frequentei o Olímpico na adolescência. Fui aprovado numa peneira, uma espécie de teste coletivo para candidatos a jogador. Dei um passe de três dedos e o selecionador parou o treino, dizendo que eu já podia sair e esperar ao lado do campo porque tinha sido aprovado.

Os outros dois meninos do meu bairro, que me acompanhavam na aventura, não tiveram a mesma sorte. Morávamos na Zona Norte, do outro lado da cidade. Voltei aos estádios algumas vezes, de bonde, solitário, carregando um par de chuteiras velhas, sem muito entusiasmo para treinar entre desconhecidos.

O que era diversão passou a ser sacrifício e acabei desistindo da meteórica carreira. Acho que nunca mais acertei um passe de três dedos, mas o Olímpico é até hoje uma lembrança doce daquele momento mágico da minha vida. Também lá voltei muitas vezes, para exercer meu ofício de jornalista.

Agora, o estádio do Grêmio também será demolido, para dar lugar a blocos de apartamentos.

A Azenha e o Menino Deus não serão mais os mesmos sem os seus templos do futebol. Imagino que, num futuro não muito distante, meninos de apartamento correrão atrás da bola no playground dos seus prédios, sem saber que pisam em locais que já foram campos de sonhos para muitas gerações de garotos. Alguns transformaram o brinquedo em profissão.

Outros, como este escriba, guardam daquela época apenas algumas lembranças enfumaçadas pelo tempo.

Como o Darlã – que tinha jeito de craque mas nunca foi; o bonde – que chacoalhava a solidão dos passageiros; e a Crush – que às vezes continha pedaços de laranja.


25 de setembro de 2010 | N° 16469
PAULO SANT’ANA


O decote

O rapaz era amigo da moça. Só amigo, nunca pensaram em se enamorar um pelo outro.

É possível, sim, um homem ser amigo de uma mulher sem ter romance com ela. E vice-versa.

Pois bem, eram amigos. Só que secretamente o rapaz desejava a moça. E, quando soube que ela iria colocar silicone nos seios, fez-lhe um desesperado e louco pedido, denotador do seu apetite sexual:

– Te peço, querida, que logo que te recuperes da tua mamoplastia (aumento) me permitas que eu olhe por inteiro o resultado da cirurgia.

A moça olhou para o rapaz, sorriu e foi respondendo: “Nem pensar. Estou fazendo esta cirurgia para agradar aos meus olhos e aos meus sentidos, talvez aos olhos e aos sentidos de um só homem, aquele por quem porventura eu venha a me apaixonar e se apaixone por mim também.

Já pensou se eu fosse mostrar meus seios operados a todos os meus amigos? Não haveria diferença se eu fosse para a esquina mostrar meus seios novos a todos os transeuntes”.

O rapaz quase foi a nocaute, mas tentou uma tímida recuperação:

– Está bem, entendo teu argumento, mas te faço um último e desesperado apelo: que depois da cirurgia tu passes a usar um decote de tua blusa ou vestido, nos seios, de modo que eu possa enxergar pelo menos 30% deles.

A moça concordou imediatamente, até mesmo porque o eixo do seu objetivo ao se submeter à cirurgia era o de mostrar publicamente o resultado parcial pela exibição no decote.

Não pode continuar assim: o Rio Grande do Sul era o primeiro lugar no Brasil em doação de órgãos e passou agora, de repente, a ser o sexto colocado no país.

Temos de revirar esta conta, imediatamente.

E para isso vamos arregaçar as mangas, caso da VIAVIDA, a Via Pró Doações e Transplantes de Órgãos e Tecidos, que realiza ações que visam a homenagear doadores anônimos que, num gesto de desprendimento e amor ao próximo, num momento de profunda dor pela perda de um ente querido, doam seus órgãos.

Segunda-feira próxima, dia 27 de setembro, comemora-se o Dia Nacional de Doação de Órgãos. Será realizada uma missa na Catedral Metropolitana às 18h30min. No Complexo Santa Casa, Hospital Dom Vicente Scherer, ficará em exposição, durante toda a semana, de 27 de setembro a 4 de outubro, uma mostra fotográfica de transplantados que retornaram às suas atividades normais depois de um transplante.

Convida-se a todos que compareçam.

Situação geral dos transplantes no Rio Grande do Sul: pessoas em lista de espera: 3,1 mil; média de espera por um órgão: quatro anos.

A VIAVIDA continua dando apoio a pessoas em lista de espera e transplantados em sua Pousada da Solidariedade, que abriga pacientes carentes que não habitam Porto Alegre. Além disso, atua nas mais diversas áreas, com ações que levem o RS a recuperar lugar de destaque no país.

O telefone é (51)3333-4519.

E essas informações todas me foram passadas pela diretora Maria Elisabet Burin e a voluntária Elisabeth Gomes, mulher do ortopedista João Ellera Gomes.

Esta coluna é sempre uma trincheira de apoio à doação de órgãos.

Vamos salvar vidas, gente!


25 de setembro de 2010 | N° 16469
CLÁUDIA LAITANO


Cabeça feita

Enquanto eu e você estamos aí, tocando nossas vidinhas do jeito que dá, um grupo de cientistas está tentando decifrar os segredos do cérebro humano – o que, entre outras descobertas, pode ajudar a entender por que tocamos nossas vidinhas de um jeito e não de outro. Ou não.

Esse monumental projeto de pesquisa chama-se Conectoma (Human Connectome Project) e foi lançado oficialmente nos Estados Unidos no ano passado. A ideia é fazer com o cérebro humano mais ou menos o que o Projeto Genoma fez com o DNA – um trabalho de formiguinha, desenvolvido por cientistas espalhados no mundo todo, com o objetivo de mapear zilhões de circuitos cerebrais. Imagine um gigantesco prato de espaguete.

O que o Projeto Conectoma vai tentar fazer é encontrar as pontas de cada fio de massa e ainda mostrar como uns se conectam com os outros e para que servem.

A complexidade do DNA é pinto comparada às intrincadas conexões de neurônios que comandam não apenas o que pensamos, sentimos e lembramos, mas até mesmo a consciência de sermos humanos e não rabanetes.

O esforço dos cientistas para decifrar o código dessa caixa-preta que nasce e morre conosco (mesmo que o resto do corpo continue funcionando) e não aceita reposição a não ser como ficção científica acende a esperança de que doenças como o Alzheimer venham a ser melhor compreendidas e tratadas. Os avanços foram enormes nos últimos anos, na mesma proporção em que a tecnologia de investigação se desenvolveu e tornou possível o sonho do mapeamento do cérebro.

Mas a curiosidade a respeito do que vai pelas nossas cabeças obviamente não se restringe a médicos e neurocientistas. O grande enigma filosófico que se cruza com a ciência nesse debate é aquele que surge quando tentamos entender como essa massa de neurônios embolada dentro de nossas caixas cranianas engendra aquilo que costumamos chamar de “vida interior” – nossa autoconsciência e a espantosa singularidade que nos distingue uns dos outros.

O assunto virou uma obsessão para o economista Eduardo Gianetti, que esteve em Porto Alegre há duas semanas, como convidado do seminário Fronteiras do Pensamento, falando sobre seu novo livro, o romance-ensaio A Ilusão da Alma – Biografia de uma Ideia Fixa. No livro, Gianetti imagina um personagem que, um pouco como o próprio autor, torna-se obcecado por uma teoria chamada fisicalismo, que sustenta que a mente é apenas a manifestação de um sistema físico.

Como o próprio título entrega, a alma, segundo essa teoria, é uma ilusão humana. Assim como não existe nada fora de nós (rabanetes e gambás, o mar e o arco-íris, os eclipses e a gravidade) que não possa ser explicado pelas leis da física, o que vai pela nossa cabeça é muito mais determinado pela biologia do que admitimos até aqui – e seria apenas uma questão de tempo até que a neurociência e pesquisas como o Projeto Conectoma começassem a decifrar esse mistério, como já foram desvendados antes os segredos por trás de arco-íris e eclipses.

A Ilusão da Alma é daqueles livros que a gente termina com mais dúvidas do que quando começou. O próprio personagem parece aturdido com suas convicções, e nós, leitores, não ficamos indiferentes a essa chacoalhada em uma das convicções mais profundas do ser humano: a da liberdade que temos para fazer as escolhas que fazemos.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010


Jaime Cimenti

Percival Puggina livre-pensando o Brasil

A gente sabe que são muitos os Brasis e os brasileiros, que já disse o Tom Jobim que nosso País não é para amadores, que Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Hollanda, Celso Furtado, Fernando Henrique Cardoso, Raymundo Faoro, Florestan Fernandes e muitos outros professores e estudiosos queimaram pestana para tentar nos explicar onde vivemos e o que somos.

Nosso País é mesmo uma Belíndia, como disse o outro, que agora não lembro bem o nome. Acho que foi o Luciano Coutinho, ou o Belluzzo, não sei. Meio Bélgica, meio Índia. País do futuro, sempre será? País do futuro do pretérito? Tomara que não.

Percival Puggina, um dos nossos remanescentes livres-pensadores, com suas opiniões, dá sua contribuição para que a gente não desista da política, de nossos destinos e para que a gente acredite no melhor. Pombos e Gaviões - Uma indispensável leitura sobre política, porque os ingênuos estão na cadeia alimentar dos mal-intencionados acaba de chegar às livrarias.

São dez ensaios que ocupam 168 páginas, tratando de política, economia, reforma agrária, questões religiosas, visão dos estrangeiros sobre o Brasil, ensino brasileiro, segurança, tópicos de política internacional e outros temas vitais de nosso cotidiano.

O consultor, palestrante e colunista de Zero Hora e de diversos sites pensa por si, com liberdade, mas, ao mesmo tempo, não deixa de ter suas convicções e de mostrar-se conectado com a realidade social, econômica e política de nossos dias, sem se importar com maiorias, minorias ou clichês.

Politicamente correto não é sua praia. É claro que muitos podem - e até devem - discordar de muitas posições dos textos e das visões do autor, mas o tom de alerta, os números, as informações, a combatividade e a coragem sobressaem. Puggina critica o relativismo moral e mostra como valores clássicos, eternos, podem nos levar a mais ordem social, dignidade humana, progresso e civilização.

O autor convida à reflexão, à ação, ao bom e alto debate, para que não sejamos simples pombas no meio dos gaviões. Para Puggina o Brasil tem jeito e a solução é política, com novos modelos institucionais. Vale conferir, concordar, discordar, não vale ficar de fora. Editora AGE, www.editoraage.com.br.

Jaime Cimenti

Inédito de Jack Kerouac no Brasil

Anjos da desolação, romance de Jack Kerouac inédito no Brasil, acaba de ser lançado com tradução de Guilherme da Silva Braga, texto de introdução do escritor norte-americano Seymour Krim e depoimento da escritora Joyce Johnson, que conta como conheceu Kerouac e como se tornou personagem da narrativa, com o nome Alyce Newman.

No alto do Desolation Peak, Kerouac disse que sua vida "foi um vasto épico com milhões de personagens". Seu romance pode também ser classificado assim. Anjos da desolação é considerado um dos livros mais autênticos do autor de On the Road, Visões de Cody, Tristessa, Os vagabundos iluminados, Big Sur e outros títulos que marcaram para sempre a lendária geração beat.

O romance foi transcrito diretamente dos diários de Jack, que no verão de 1956 trabalhou por 63 dias como vigia de incêndios no Desolation Peak, monte situado a dois mil metros do nível no mar, no estado de Washington.

Pela transcrição direta dos textos e diante do tom de carta íntima tornada pública, a obra ganhou caráter documental. O tom jazzístico da prosa e o ritmo da fala mostram o autor, os personagens e o clima por inteiro. Kerouac buscava um sentido para a vida, uma resposta para os questionamentos que o oprimiam. Sem o verniz do álcool e das drogas, rodeado pela paz e pelo isolamento da natureza, deu de cara com ele mesmo, com a finitude e com a solidão.

Essa foi uma de suas últimas experiências "on the road", antes de lançar o livro homônimo, que o catapultou para a fama em 1957. A obra é dividida em duas grandes partes, Livro um: Anjos da desolação e A desolação no mundo e Livro dois: Passando pelo México, Passando por Nova Iorque, Passando pelo Tanger, pela França e por Londres e Passando mais uma vez pela América.

A primeira parte é mais intimista, já a segunda dá lugar às bebedeiras, ao envolvimento com mulheres e às andanças características das outras narrativas. O amigo e contemporâneo de geração beat de Jack, Allen Guinsberg, escreveu que cada livro de Kerouac é único, uma dissonância telepática. Ele disse que Kerouac sintetiza Proust, Céline, Hemingway, Genet, Thelonius Monk, Charlie Parker e o insight do próprio Kerouac.

A revista Time referiu-se ao romance como "uma das mais verdadeiras, engraçadas e melancólicas viagens da literatura norte-americana". Mais não é preciso dizer. Leia o livro, ouça, se ligue. Suba a montanha da solidão, medite, depois desça para o mundo cheio de sons, vozes, pessoas e caia na farra. Bem como disse W.E. Woodward, citado por Jack: não há nada na vida afora o viver. L&PM Editores, 360 páginas, www.lpm.com.br.


24 de setembro de 2010 | N° 16468
PAULO SANT’ANA


A pré-velhice

No fumódromo de ZH, uma jovem senhora, ao ser elogiada pelo reflexo que fez em seus cabelos, disse que ela só faz aquilo para esconder os seus cabelos brancos.

Disse que em mulher ficam muito feios os cabelos brancos, enquanto que acha que nos homens até ficam bem os cabelos alvos.

Contestei-a na hora: para mim, cabelos brancos são inibidores da sedução do sexo oposto, tanto em homens quanto em mulheres.

Sempre acreditei com convicção que homem de cabelos brancos fica por isso descartado completamente do mercado da sensualidade.

As mulheres olham para os homens de cabelos brancos com piedade reverencial, afastam-nos completamente do seu raio de interesse e consideram-nos seres não competitivos nos certames românticos e sexuais.

Uma das mentiras mais espertas que conheço na relação homem-mulher é pronunciada pelas mulheres que dizem: “Considero que cabelo branco em homem é charme”. Grosso e ledo engano.

Cabelo branco em homem só fica charmoso se o homem tiver de 20 a 30 anos, o que então se torna um exotismo suscetível de curiosidade, objeto de atração.

Mas, se o homem tiver mais de 30 anos ou for quarentão ou cinquentão, cabelo branco é um estigma, uma marca aviltante.

Homem de cabelo branco se torna um homem respeitável, mas jamais será para as mulheres um homem desejável.

Se cabelos brancos masculinos fossem charme, todos os argentinos de mais de 50 anos não pintariam os cabelos como pintam. E o pior é que lá pintam com aquela cor acaju que os tintureiros fazem tornar os “coroas” numa multidão de alazões.

Vi como os argentinos que ingressam na terceira idade fogem dos cabelos brancos como o diabo da cruz, suportando a humilhação da tintura, então é porque cabelos brancos masculinos podem ser considerados uma maldição.

Tanto que, na grande maioria das empresas gaúchas, há executivos com mais de 50 anos que pintam os seus cabelos para não serem demitidos, nessa perversa lógica empresarial de que devem se livrar dos funcionários velhos.

Vi com estes meus olhos que a terra vai comer um executivo de 48 anos, que foi chamado a uma entrevista numa empresa que estava recrutando efetivos, submeter-se ao ato infame de mergulhar toda a sua cabeça em um tacho de tinta preta para tingir os cabelos.

Ele achava, com proveniência, que não lhe dariam o emprego se mostrasse a nu os seus cabelos brancos.

Não dariam mesmo.

Este é um Estado, e um país, em que é vergonhoso ser velho.

Velho aqui significa doente, inválido, Jesus está chamando.

E o mais doloroso é que há empresas que descartam os cinquentões ou os de mais de 40 anos, jogando fora a experiência desses homens, que supera a imaturidade profissional dos jovens de goleada.

A minha vingança é que todos algum dia serão velhos. E, por isso, serão demitidos ou não admitidos.

Que sórdido preconceito esse contra a pré-velhice!


24 de setembro de 2010 | N° 16468
DAVID COIMBRA


Um não rotundo

O maior discurso que um candidato já pronunciou num debate eleitoral em todos os tempos, no Brasil, o mais impactante, mais honesto, mais dramático discurso foi o não rotundo, de Brizola.

Corria a eleição de 1989. Nunca houve eleição como aquela neste país, nem antes nem depois. Não apenas por ser a primeira para presidente em três décadas, mas pela qualidade dos candidatos e porque fremia na atmosfera a certeza, aliás vã, de que a panaceia da democracia era a cura para todos os males da nação.

Os debates, nós os assistíamos como se fossem final de Copa. Para aquele, o último do primeiro turno, preparei o meu famoso arroz de china pobre, e os amigos trouxeram ramalhetes de cerveja. Éramos uns 30 na sala, tinha gente por todo lado, não havia cadeira suficiente e alguns sentaram-se no chão duro de parquê.

Quando Brizola começou a falar, fez-se o silêncio. Percebemos que estava emocionado. Fitou o olho da câmera e dirigiu-se diretamente ao eleitor. E então, algo inédito numa eleição, não pediu voto. Pediu um não voto. Que o eleitor votasse em outro candidato, se assim decidisse sua consciência, mas que não escolhesse Fernando Collor ou Silvio Santos. Que desse um não rotundo a esses dois, duas ameaças aos anseios do povo brasileiro.

Encerrou o discurso de forma brusca, a voz embargada, quase às lágrimas. Por alguns segundos, nenhum de nós, que o assistíamos, disse palavra. Eleitores ou não de Brizola, todos ficamos tocados.

Um trecho do discurso está no YouTube. Assista e diga se não tenho razão.

Porém, a despeito do apelo de Brizola, Collor elegeu-se.

Rei posto, a folhas tantas do novo governo, ocorreu o inesperado: Brizola aliou-se a Collor. Apoiou o homem que, meses antes, classificara como um perigo para o país, aquele para quem o eleitor devia gritar um não rotundo.

Ninguém entendeu. Brizola foi acusado de contraditório, de oportunista, de eleitoreiro.

Mas seu gesto havia demonstrado exatamente o contrário. Em primeiro lugar, Brizola foi democrático: respeitou a decisão do eleitor, embora não concordasse com ela. Em segundo, foi abnegado. Acatando Collor como presidente, apresentou-se para auxiliá-lo. Por ter mudado de opinião?

Por ter “caducado”, como sugeriram alguns? Não. Por ter visto ali a oportunidade de colocar em prática uma ideia na qual acreditava. Brizola ofereceu o sonho de sua vida, o projeto dos Cieps, a um presidente que não tinha nada a ver com ele e de quem não gostava.

Brizola agiu pensando nos interesses do Brasil, não em seus próprios interesses. Não barganhou cargos, não reivindicou privilégios políticos; pediu que fosse implantada a escola integral. Pediu que o presidente que o derrotou nas urnas salvasse as crianças brasileiras como ele, Brizola, sonhava salvar.

Quem é capaz disso? Quem tem a coragem de fortalecer um adversário para ver realizado um ideal? Que político tem a grandeza de ajudar o próprio inimigo para ajudar seu povo?

Hoje, nenhum. Hoje vê-se a sabotagem aos eleitos sob alegação de coerência.

É demais esperar capacidade de renúncia dos derrotados, bem sei. Mas que ao menos deixassem o vencedor tentar fazer o que propôs. Depois de 3 de outubro, eu aqui daria um não rotundo à oposição sistemática. Um não rotundo à oposição pela oposição.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010


CONTARDO CALLIGARIS

Felicidade nas telas

A necessidade de mostrar ao mundo um semblante feliz é uma das grandes fontes de infelicidade

UMA AMIGA inventou um jeito de curtir sua fossa. Depois de um dia de trabalho, de volta em casa, ela se enfia na cama, abre seu laptop e entra no Facebook.

Ela não procura amigos e conhecidos para aliviar o clima solitário e deprê do fim do dia. Essa talvez tenha sido a intenção nas primeiras vezes, mas, hoje, experiência feita, ela entra no Facebook, à noite, como disse, para curtir sua fossa. De que forma?

Acontece que, visitando as páginas de amigos e conhecidos, ela descobre que todos estão muito bem: namorando (finalmente), prestes a se casar, renovando o apartamento que sempre desejaram remodelar, comprando a casa de praia que tanto queriam, conseguindo a bolsa para passar dois anos no exterior, sendo promovidos no emprego ou encontrando um novo "job" fantasticamente interessante.

E todos vivem essas bem-aventuranças circundados de amigos maravilhosos, afetuosos, alegres, festeiros e sempre presentes, como aparece nas fotografias postadas.

Minha amiga, em suma, sente-se excluída da felicidade geral da nação facebookiana: só ela não foi promovida, não encontrou um namorado fabuloso, não mudou de casa, não ganhou nesta rodada da loto. É mesmo um bom jeito de aprofundar e curtir a fossa: a sensação de um privilégio negativo, pelo qual nós seríamos os únicos a sofrer, enquanto o resto do mundo se diverte.

Numa dessas noites de fossa e curtição, minha amiga, ao voltar para sua própria página no Facebook, deu-se conta de que a página não era diferente das outras. Ou seja, quem a visitasse acharia que minha amiga estava numa época de grandes realizações e contentamentos.

Ela comentou: "As fotos das minhas férias, por exemplo, esbanjam alegria; elas não passaram por nenhum photoshop, acontece que são três ou quatro fotos "felizes" entre as mais de 500 que eu tirei".

Logo nestes dias, acabei de ler "Perché Siamo Infelici" (porque somos infelizes, Einaudi 2010, organizado por P. Crepet). São seis textos de psiquiatras e psicanalistas (e um de um geneticista), tentando nos explicar "por que somos infelizes" e, em muitos casos, por que não deveríamos nos queixar disso.

Por exemplo, a infelicidade é uma das motivações essenciais; sem ela nos empurrando, provavelmente, ficaríamos parados no tempo, no espaço e na vida. Ou ainda, a infelicidade é indissociável da razão e da memória, pois a razão nos repete que a significação de nossa existência só pode ser ilusória e a memória não para de fazer comparações desvantajosas entre o que alcançamos e o que desejávamos inicialmente.

Não faltam no livro trivialidades moralistas sobre o caráter insaciável de nosso desejo ou evocações saudosistas do sossego de algum passado rural. Em matéria de infelicidade, é sempre fácil (e um pouco tolo) culpar a sociedade de consumo e sua propaganda, que viveriam às custas de nossa insatisfação.

Anotei na margem: mas quem disse que a infelicidade é a mesma coisa que a insatisfação? E se a infelicidade fosse, ao contrário, o efeito de uma saciedade muito grande, capaz de estancar nosso desejo? Que tal se a infelicidade não tivesse nada a ver com a ansiedade das buscas frustradas, mas fosse uma espécie de preguiça do desejo, mais parecida com o tédio de viver do que com a falta de gratificação?

Em suma, você é infeliz porque ainda não conseguiu tudo o que você queria, ou porque parou de querer, e isso torna a vida muito chata?

Seja como for, lendo o livro e me lembrando da fossa de minha amiga no Facebook, ocorreu-me que talvez uma das fontes da infelicidade seja a necessidade de parecermos felizes. Por que precisaríamos mostrar ao mundo uma cara (ou uma careta) de felicidade?

1) A felicidade dá status, como a riqueza. Por isso, os sinais aparentes de felicidade podem ser mais relevantes do que a íntima sensação de bem-estar;

2) além disso, somos cronicamente dependentes do olhar dos outros. Consequência: para ter certeza de que sou feliz, preciso constatar que os outros enxergam minha felicidade. Nada grave, mas isso leva a algo mais chato: a prova de minha felicidade é a inveja dos outros.

O resultado dessa necessidade de parecermos felizes é que a felicidade é este paradoxo: uma grande impostura da qual receamos não fazer parte e que, por isso mesmo, não conseguimos denunciar.

ccalligari@uol.com.br